Mesa Da Palavra, 253

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Centro d~ Investigação e Divulgação

Publicações CIO
Exegese/ 3
A MESA DA PALAVRA
Ano B
Coordenadores :
Arcãngelo R. Buzzi
Leonardo Boff O>mentário Bíblico-Litúrgico

[!]
Petrópolis
1983
© 1982, Editora Vozes Lida SUMÃRIO
Rua Frei Luís, 100 ·
25600 Petrópolis, RJ
Brasil

Apresentação .................................................. . 7
8
1ntrodução .......................... · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
Primeiro Domingo do Advento .................................. . 11
Segundo Domingo do Advento ................................. . 19
Terceiro Domingo do Advento .................................. . 26
Quarto Domingo do Advento ................................... . 34
Natal: Vigília ................................................. . 41
Natal: Terceira Missa ......................................... . 50
Festa da Sagrada Familia ...................................... . 53
Ano Novo: Oitava do Natal .................................... . 57
Epifania do Senhor ............................................ . 62
Batismo do Senhor ............................................ . 67
Quarta-feira de Cinzas ......................................... . 73
Primeiro Domingo da Quaresma ................................ . 76
Segundo Domingo da Quaresma ................................ . 84
Terceiro Domingo da Quaresma ................................ . 94
Quarto Domingo da Quaresma .................................. . 102
Quinto Domingo da Quaresma .................................. . 110
Domingo de Ramos ou da Paixão .............................. . 117
Quinta-feira Santa ............................................. . 128
Sexta-feira Santa .............................................. . 134
Sábado Santo: Vigília ......................................... . 141
Domingo da Páscoa ........................................... . 146
Segundo Domingo da Páscoa .......................•............ 153
Terceiro Domingo da Páscoa ................................... . 162
Quarto Domingo da Páscoa .................................... . 173
Quinto Domingo da Páscoa .................................... . 185
Sexto Domingo da Páscoa ..................................... . 194
Sétimo Domingo da Páscoa: Ascensão do Senhor ............. : .. . 206
Domingo de Pentecostes ....................................... . 213
Solenidade da Santíssima Trindade ............................. . 217
Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo .............. . 226
Segundo Domingo do Tempo Comum ............................ . 235
Terceiro Domingo do T·empo Comum ........................... . 245
Quarto Domingo do Tempo Comum ............................ . 254
Quinto Domingo do Tempo Comum ............................ . 262
Sexto Domingo do Tempo Comum ............................. . 271
Sétimo Domingo do Tempo Comum ............................ . 279
Oitavo Domingo do Tempo Comum ............................. . 287
Nono Domingo do Tempo Comum ............................. . 294
Décimo Domingo do Tempo Comum ............................ . 305
Décimo Primeiro Domingo do Tempo Comum .................... . 317
Décimo Segundo Domingo do Tempo Comum .................... . 326
Décimo Terceiro Domingo do Tempo Comum .................... . 333
Décimo Quarto Domingo do Tempo Comum ..................... . 342
Décimo Quinto Domingo do T·empo Comum ..................... .
Décimo Sexto Domingo do Tempo Comum ...................... .
352
359
366

Décimo Sétimo Domingo do Tempo Comum ..................... .
J
o

Décimo Oitavo Domingo do· Tempo Comum ..................... . 374


Apresentação
~~c!~º Nono ~omingo do Tempo Comum ...•................... 383
~g~s~mo D'?nu~go do Tempo Comum .......................... . 391
V~ges~mo Prime.iro Donúngo do Tempo Comum .................. . 397
V!gés~mo Segundo Domingo do T~mpo Comum .................. . 405
V~gés1mo Terceiro Domingo do Tempo Comum ...•..•............ 413
V!g~"!mo Qu~rto Domingo do Tempo Comum ................... . 420
V!ges~o Quinto Domingo do Tempo Comum ................... . 430
Vigésimo Sexto Domingo do Tempo Comum ................•..... 439
Vigésimo Sétimo Domingo do Tempo Comum .................... . 446
V!gés~mo Oitavo Domingo do Tempo Comum .................... . 453
Vigésimo Nono Domingo do Tempo Comum .•.................... 462
Trjgéslmo Domingo do Tempo Comum .......................... . 469
Tr~g~s~mo Primeiro Domingo do Tempo Comum ................. . 477
Tr1gesimo Segundo Domingo do Tempo Comum ............•..... 487 A iWesa da Palavra: Subsídios para a pregação e a liturgia. era o
Trigésimo Terceiro Domingo do Tempo Comum ................. . 4.95 nome de uma secção da Revista EcJesiástica Brasileira, publicada nos
Solenidade de Cristo, Rei do Universo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503 anos de 1977 a 1980. Foi idealizada 'e coordenada por Frei Raul Ruij~
Principais Festas e Solenidades Durante o Ano .............. : .. : : 511 de saudosa memória {t 19-01-1980), no intuito de tornar acessíveis os
Apresentação do Senhor (2 de Fevereiro) ....................... . 511 frutos da nova exegese a camadas mais vastas do Povo de Deus. O
!ão J~sé~ Esposo da Virgem .Maria (19 de Março) ............... . 517 projeto inicial incluía três tipos de suQsídios: pistas exegéticas, sugestões
nunCJaçao do Senhor (25 de março) ........................... . 522 para borniJia e orações. Com o tempo> por falta de espaço físico, as
Sagrado Coração de Jesus (Anos, A, B e C) .................... . 524
orações foram omitidas. ~
~ativid:'de de São João Batista (24 de junho) ................. . 540 Concluído o ciclo trienal dos comentários exegéticos e das sugestões
T ssunçao de Nossa Senhora .......... , ........................ . 547 para a homilia, previa-se a pu blicaçãO de todo ess"t? imenso, variado e
odos os Santos ........................................ . 547 precioso material em três volumes~ para os Anos A, B e C~ respectiva-
Santos Apóstolos P•dro e Paulo (29 de Junho) ............. : : : : : 548 mente. Pois somente em volumes dotados de bons índices as valiosas
Transfiguração do Senhor (6 de Agosto) .................... . 557 contribuições dos quase trinta colaboradores, -entre . exegetas, teólogos
Exaltação da Santa Cruz (14 de Setembro) ................... : : : 568 sacerdotes e leigos, poderiam ser manuseadas com proveito e continuar
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira prlncipal do Brasil prestando um serviço à pregação. N:este sentido, o novo subtítulo da
. (12 de Outubro) .......................................... . 572 obra, <?Da exegese para a pregação»,, quer lembrar que a pregação se
Dia de Finados (2 de Novembro) .............................. . 580 renova, vottando à fonte da n::velaçã~ bíblica, sempre de novo estudada
Dedicação da Basílica do Latrão (9 de Novembro) .............. . 590
lmacu~ada Conceição de Maria Santíssima (8 de Dezembro) ..... . 596 e meditada. ~
No presente volume foram jncluiâas todas as festas e solenidades
Abreviaturas dos livros da Bíblia ......................... . 505 de Cristo, de Maria -e dos Santos. As solenidades da Assunção de Nossa
Outras Abreviaturas ...................................... · · · · · · 006 Senhora e Todos os Santos, no Brasil sempre celebradas nam domingo,
Jndice de pericopes bíblicas ............................... · · · · · · 607 já estão incluídas no volume do Ano A.
lndice de colaboradores ........................................ . 513 Para o Ano B, foram preparados novos comentários exegéticos e su-
gestões para homilia ainda inéditos~ pois vários domingos, que em 1978-
1979 coincidiram com festas e solenidades, não tinham sido comentados.
Para o manuseio mais frutuoso da obra recomendamos o sumário
inicial e os índices finais. O sumário, além de uma breve introdução
ao ciclo litúrgico trienal~ apresenta ps domingos e festas segundo a
ordem do ano lihírgjco: Advento, Natal. Quaresma, Semana Santa, Pás-
coa e Domingos do _Tempo Comum; em apêndice vêm as festas que no
Brasil são automaticamente deslocadas para o domingo seguinte. Os
índices incluem um índice de siglas e abre.viaturas, um índic-e de cola-
boradores e um índice de perícopes \líblicas. O índice de colaboradores
especifica por meio de siglas o tipo de colaboração (homiJia ou pista
exegética) e as páginas onde encontrá-la. O índice de pericopes bíblicas,
disposto segundo a ordem dos livros bíblicos e respectivos capítulos,
indica o domingo ou a lesta em que ~o utilizadas.

• Ludovico Garmus, O.F.M.

..
Os dois critérios são usados conforme os diversos tempos do ano e as
Intródução características peculiares de cada tempo litúrgico.
Assim, se verifica uma ótima composição harmônica entre as leitu-
sua !i:~sa da Palavra pretende prestar um auxilio aos sacerdotes em ras do Antigo e do Novo Testamento, quando ela é sugerida pela
Esta sua ºmi~:ã~r~~:r :e
Palavra de Deus n~ Celebrações Eucarísticas.
própria Escritura, ou seja, quando a f doutrina e os fatos expostos nos
textos do Novo Testamento possuem uma relação mais ou menos explí-
de .um Presbite~o:«Deve:s e~~::;;i~ :~ ~~~~a
ensmar. Transmite a t d p 1
J::osta
tna 0
1 rde_nação
e a ua unçao de
cita com a doutrina e os fatos do Antigo Testamento. No presente Ordo
Lectionum os textos do Antigo Testamento são escolhidos principalmente
Meditando na lei do ~e~~o~ a avra de Deus, que recebeste com alegria. em razão de sua correspondência com os textos do Novo Testamento,
creres, praticar o que ensinâre~rog~!ª crer no que ~res, ensinar o que lidos na mesma Missa, sobretudo com os textos do Evangelho.
para o Povo de Deus e tu . 'd JR, P.ortfnto. a tua pregação alimento A _composição harmônica dos textós de cada Missa a partir do tema
edificares a . a ~1 a estirou o para os fiéis de modo a
E na h~~ ~e ~eusÍ isto e, a Igreja, peta palavra e pelo exempfo. encontra-se patente no tempo do Advento, da Quaresma e da Páscoa,
é uma parte dar~ftur ~~a so~re o M1ssal Romano se diz: «A homilia
isto é, naqueles tempos que possuem um colorido ou característica
para nutrir a vida c~stã.e 2'~~~~~nte reco~endada, se~do _indispensável peculiar.
Nos domingos do Tempo Comum que não apresentam característica
asp~ct!1. das leituras da Sagrada Eic~~tu~!Jªa:m~e exphcaç~o de algum especial, os textos das Epistolas e dos Evangelhos foram dispostos
Ord1nar10 ou do Próprio da Missà d0 d" l d um ou ro texto do segundo o critério da leitura semicontinua-; de tal modo que a leitura
mistério celeb ado ia, evan o em conta tanto o
=. •
do Antigo Testamento se harmonizà com o Evangelho (Cf. Ordo
41) «Ao dr . , como f as neces,~ndades particulares dos ouvintes» (n
Mis~as ce~ebr~~~~gco:rn epar~f:::,Saç:~ J1:ec~~~ ha~ia
homilia e~ toda~ ~~ Lectiorium, lntr.• n. 3).
celebra~te qu~m profere a homiliai. 42).". (n:de regra e o pro-pno
Desta forma. são proclamados os· quatro Evangelhos no curso de
três anos. Mateus, no Ano A; MarcoS, no Ano B; Lucas, no Ano C e
Hoje, mais do que em tempós pass d f • . João, cada ano nos tempos fortes da Quaresma e da Páscoa e no Afio
necessários subsídios para a preiação :o:~iét~~ azegi ::it~1s e mesmo B, após o XVI Domingo do Tempo Comum. complementando o Evan-
de o Lecionário do Missal Romano a, so re o pelo fato gelho de São Marcos com 5 leituras sobre o pão da vida.
pr~funda . na reforma litúrgica i)Ds-~:~cfi~:ad~s P~~·t urna rternodelação Quanto à harmonia entre as leituras, podemos encontrá-la entre as
muito mais abundantes. · t uras ornaram-se tr~s, nas Solenidades e Festas e nos ~domingos dos tempos fortes. Nos
domingos durante o Tempo Comum existe harmonia entre o Evangelho
e a leitura do Antigo Testamento. A Epístola estará ou não em harmonia
1. A reforma do Lecionário com o Evangelho, pois sua escolha _obedeceu também ao critério da
leitura semicontínua. Neste tempo são lidas as Epístolas de Paulo e de
refor~: ~~~~tit~!çã~li~~fs~ó~~a Missa/e Romanum escreve Paulo VI: «A Tiago, enquanto as de Pedro e de joão se lêem no tempo de Páscoa
na Constituição Sacrosanctuman~o~~fi:~ga~:t be~o Concílio Vaticano li, e do Natal.
para os fiéis uma mesa mais abundante d~ a e eceu «que se prepare
largamente os tesouros biblicoS> (Cl SC Pala".:1) de Deus•. abrindo-lhes
pre~crição do Concílio Vaticano II que. ma~dan.Jer a~ P«!!;:1bdee~t' sedgundo 3. A Liturgia da Palavra
per1odo determinado de a rt . ro e um
Escritura» (SC n 5J nos as .Pª .es mais importantes da Sagrada Diz a Instrução Geral sobre o Missal Romano: «Nas leituras expla-
distribuído num' pe~íodj' deto~~s ~n~~nJ~~!º ~:15 leituras d?minicais foi nadas pela homilia Deus fala ao seu povo, revela o mistério da redenção
de festa as leituras da Epístola e do. Ev:~el~~º;~ nos do~~~gos e dias e da salvação, e oferece alimento espiritual; e o próprio Cristo, por
outra do Antigo Testamento ou, no Tempo Pasca1ªºd~:e~~o~ ªJo:e ui:na sua palavra, se acha presente no meio dos fiéis. Alimentado por essa
!~~~~· ~esta ~or~a aparece. mais claramente o de~envolvimento A~~!:
do
palavra; reza na oração universal pelas necessidades de toda . a Igreja
e pela, salvação do mundo inteiro» (n. 33). E continua: «Mediante as
.''' P
riirtueezamd·esal~~~~::t~ b~b1Fc~;1r q::s a:r~~e':t~s a~~veJ~~:s~o~s~~astãf~stf:~~dae
'1 leituras. é preparada para os fiéis a mesa da palavra de Deus e abrem-se
'
ais impor ante da Sagrada E 't . para eles os tesouros da Bíblia> (n. 34).
partes dos Livros lidos em dias n~o f~~vu::.· e completada por outras A . assemblêia litúrgica é fundamentalmente a reunião de fiéis para
ouvir a Palavra de Deus e dar uma _.resposta a ela. Pela proclamação
de sua_ Palavra, Deus continua a fa~11r aos homens, a transmitir-lhes
• 2. Os critérios da disposição das leituras

e fe~~uzOd~ss~s ~r~ncipios foi disposto o novo Lecionário dos domingos


sua mensagem, a reunir o seu povo disperso, propondo sempre de novo
uma aliança à assembléia reunida.
Assim, a assembléia litúrgica constitui o lugar mais comum e ideal
do uso da Sagrada Escritura e é nela que a Palavra de Deus adquire
B e C ºsendo e~1o~nr10Cse desldobra~ n}lm. ~li~lo de três anos. Os Anos A sentido pleno. O objeto central da Sagrada Escritura é o mesmo da
S -· d . 0 • • ~que e que e d1v1s1vel por três. '
• ao ois os princ1p1os que regem a d" . - . Liturgia: o mistério de Cristo: Tendo como sentido responder à reve-
domingos e festas: A harmonização t •t' tspos1çao. das leituras dos lação do mistério do amor gratuito de Deus, que se continua fazendo
ema ica e a leitura semicontínua
8 9
"··----
Primeiro Domingo do Advento
Pistas Exegéticas
Prlmelra Leitura: Is 63,16b·17; 64,1.3b·B
4. A Homilia «Vós, Senhor, sois nosso Pai>

No contexto de fé em que 'p 1 . O trecho proposto para a leitura do I' domingo do Advento faz
é. uma explanação da mesma. Q~~r ªaiª:~:r de Deus e ouvida, a homilia parte integrante de um conjunto maior que abrange Is 63,7-64,11. É
vida. C,9m a Palavra, favorecendo. a . os fiéis a confrontarem sua uma oração muito comovente feita num momento particularmente delicado
prof1ssao de fé, na oração univerSaJ conve_rsão, que se expressará na da história de Israel. A mai0r parle dos especialilitas situa esta oração
de caridade. • na Liturgia Eucarística e ria vida pelo fim do exllio, provavelmente depois mesmo do "edito de Ciro (538
aC.) que permitia aos hebreus retornarem à sua pâtria. Deve ter sido
Mor~ ~~rn~:egr:!.~ ~~erm::: um tratado de Teologia Sistemática, de composta antes da reconstrução do Templo (52D-515) porque supõe
do mi'stério de Cristo. Catequese, mas antes urna contemplação que o mesmo esteja ainda em ruínas (Is 64,11).
A homilia terá que ser com.o a · · E · A oração é um misto de lamentação, de súplica ardente e de ato
viva para uma comunidade ~iva Conv· propr1a scritura, uma mensagem penitencial. O longo exllio com seus sofrimentos e humilhações, as ma-
impi°'tante será, pois, enuclear ~s co~~~d;0: .~~~ili~~." ~j~~~~o vivad O ravilhosas promessas de Ezequiel e do Dêutero-lsafas (Is 40-55) e de
per ar urna resposta viva à mensa.gem proclamada. ' ª es- cuja reali2ação não havia quase sinal, tudo isto fazia a 11lma dos pios
judeus prorromper nesta patética súplica.
5. A lmportância da reflexão exegética O conjunto é considerado uma jóia literária, um dos mais belos
trechos da literatura hebraica. O apelo à paternidade divina dã à perf-
e n_A Liturgia não interessa propriamente a Bíblia como Jivro histórico cope um tom Intimo e familiar e permite que o autor, para expressar
fun:~m::1~o~e~t·ª1 co.m u!11a exegese histórico-cientifica. Esta servirá de os sentimentos de dor e angústia ante o prolongamento da triste situa-
. · i urgia da um passo à frente e faz 11• .
~fs\~:i':;'l d~u C~s:ica, Anuma v!são · unitária da históriau~: :~~;.e;:0 f'~ª~ ção, prorrompa em interrogações a Deus e exclamações. Deus é pai e
só dele pode vir a salvação. Mas então, por que permite Deus que os
. • . ris o. maneira de conhecer é antes d f• d
rn1ster10 q?e se reve1a_ e não tanto a do raciocinio discu~siv~ e, a o corações de seus filhos continuem insensíveis ao seu temor?
Mas a base da interpretação litúrgica da Bíblia estar·· Depois de reconhecer a Deus como pai e único capaz de salvar seu
~entido dos contemporâneos ou o sentid rt 1 E ª. sempre. o povo, exclama o profeta num tom patético: cOh, se rasgásseis os céus
~e~~a'::fj~!~d~ i" aprofu~dado pela comp~ee~s~~a ·do."t~ex~~:t•~o~ ~%~;~ e descêsseis .• .> l'i como a explosão da confiança e ao mesmo tempo
escatológica. E:. d:
Por isso o que mais im or n 1
;ri!t~~eh~ª Ji~~~itreenJão eclesi~l hoje, na dimensão
c~ . e. er e interpretar a Biblia.
da impaciência para que J;>eus manifeste seu poder e seu amor li-
bertador, assim como se manifestou outrora na teofania do monte Sina]
(Ex 19,16-19). A liturgia do Advento, assumindo essas palavras, ex-
é descobrir as situaçõei ~:ma~~so htu!gico das Sagradas Escrituras pressa em nome de toda a humanidade os anseios profundos e vee-
circunstâncias da vida dos cristãos h~j:~ntas pelos textos dentro das mentes para que Deus apresse sua intervenção libertadora.
Ninguém jamais viu nem ouviu alguém intervir e salvar seu povo
6. Sugestões para a homilia como o fez Javé no passado. No pensamento do profeta estão pre-
sentes todas as maravilhas que Deus operou ao longo da história do
As sugestões e esquemas para a h 11 ·1 · - povo escolhido, especialmente a libertação do Egito e a conquista da
Nunca serão copiados pois têm . ca át º1!-1 ~ s~rao sempre relativos. Terra Prometida. Esta mesma expressão é usada por S. Paulo na !Cor
terão que tomar em ~onta o cabedaf cer 1nspirac1on_a!. Necessariamente 2,9, mas de uma forma adaptada e para outra realidade superior. De
a mensagem desvelada pela reflexão exe;l~~ral e esp1r1!uaJ do pregador, qualquer maneira é uma profissão de fé nas intervenções divinas ao
assembléia. Passarão por um prOce ed ca e ~ !ea~dade concreta da longo da história e que fundamenta a certeza de uma nova intervenção
pregador que há de elaborar sua sso e assimllaçao por parte do
experiência de fé e de oração reaJiz :~tese; serão banhadas por sua na dolorosa situação presente.
Ordenação: «Procura crer no' ue 1 a o a .recomendação do Ritual da Nos vv. 5-7 o autor faz uma ~onfissão pública dos pecados do
o que ensinares» A Mesa daq Pa;:es, ensi?ar o que creres, praticar povo. E o reconhecimento duma situação de impureza, de indignidade
auxilio nessa irnp~rtante missão sacer~~~al~era sem dúvida um valioso
diante de Deus, por causa dos inúmeros pecados e infidelidades do
povo. As próprias ações boas, mesmo a prática da justiça, assemelharn-
se a panos manchados pelo sangue da menstruação 1 Imagem !orle to-
Frei Alberto Beci<hãuser, OFM mada da impureza higiênica e legal (Lv 15,19-26), para expressar a
situação do homem diante de Deus. Só Deus pode sanar essa situação!
11
10
O v. 8 retorna ao pensamento inicial, completando-o com a tão - no dia do retorno glorioso
conhecida imagem do oleiro e da- argila (Is 29,6; jr 18,2ss; Gn 2,7). A fidelidade divina é fa~r dde sa1':':,~o final e à vitória dos bons,
A súplica retoma o tom afetuoso e confiante. Verdade é que os peca- de Cristo (vv. 7-~). Paulo. t ~ e 0 ª~ri!tão deveriam esperar confiantes,
dos cavaram um abismo entre o p,evo e Deus, mas Deus continua sendo quando os Coríntios, como o o Ele o~ chamou à fé e os favoreceu

=
Pai, aquele que plasmou o seu povo, como o oleiro moilela um vaso. jâ que Deus é fiel e, uma vez que · sua obra levando-os à
Deus não pode abandonar a obra ile suas mãos. com tantos benellcios, certamente C0'1!f~:::ªo Cristo. ó Apóstolo evo-
glorificação final (vv. 7-9), ao se maru e - (cf Rm 1311-22), como
Blbll.ogr11/la: P e n na, Jsala, MarJettl; Cor d e r o, em "'Blblla Comentada" da ca freqüentemente a parusia em «f~~~~e~~veis; (Fl 1,ÍO; lTs 3,13;
BAC; Pi r o t·C J·a m e r, La Sainte BlbJe, tome VII; S te 1 n m a n n, O livro da também insiste em que permaneç. . lTs 5,24; 2Ts 3,3). A
5 23), advertindo que J?e~ é fiel (cf. 1 ~~ 3 ~chamado à comunhão de
Consolação, Hdfções PauUnas.

Pe. Aguinelo Burin, S.A.C. ~elhor definição de «cnstao> estâ no v. ·~ é chamado a participar
Santa Maria, RS seu Filho Jesus Cristo, n~ss? Senhor> h-:- Ideº vida com Ele, como seu
da filiação do Filho em mtima ~~~~n ª1qui estâ a base, o centro da
membro (Rm 6,3-ll; 8,17; 01 ~d d )Tudo isto graças à união com
vida cristã: fé, esperança, car1 a e. ;
Segunda Leitura: lCor 1,3·9 Cristo (koinonia).
e mentada Vl BAC/Madrld 1965. p.
«Jesus vos confirmará até ao flllJ» BibUografla: TEu r r a dAº'p~::t;!º·E~~~~fa aºos CorlÔtios ·, (tracd. ln~;••E.:_ BJ;.de~l·
315s• Walter, u_gen, Pi era Carta a os or"
T gl·c- r:nm
vozês Petrópolis 19'73, p. 20s~ e a
j
e 'r m 1 J!pltre aux CorlntbJens. XIiJi' '
p.
Paulo, de Éfeso, escreve sua Primeira carta à comunidade cristã de BAC/Áladrld 1962, p. 34lsW; V r Dei IV• Herder 1959 (Barcelona), P· s.
115s, Paris 1951; R e e s, " er um • •
Corinto, fundada por ele no final - da segunda viagem. Faz questão de
firmar-se como «Apóstolo de Cristo por vontade de Deus> - resposta Matbeus F. Giuliani, S-A.C.
tácita a seus opositores. Deseja-lhes bens espirituais: a graça e a paz Santa Maria, RS
de Deus Pai e de jesus Cristo. A «graça. é a benevolência divina, ao
passo que a «Paz» encerra o conjunto dos bens cristãos~ Podem ser
sinônimos, como saudação cristã grega (cháirel) e hebraica (shalôm!), Terceira Leitura: Me 13,33·37
como voto de bênçãos1 desejando uma euforia geral de vida psicossomá-
tica. É uma saudação com dimenSão ecumênica da salvação. A graça
pode também indicar a bondade divina, como causa da paz, ou os dons «Vigiai, pois não sabeis quando o senhor voltará»
messiânicos, cuja fonte última é Deus Pai e jesus Cristo. O possessivo . . . três camadas de tradição e
«meU> Deus jndica devoção e carhJho. A fé cristã associou a Deus Pai Nestes cinco vers1culos distinguem~ . de jesus· a combinação e
o nome de Jesus Cristo, na mesma linha divina. O titulo cSenhor:> in- interpretação, a saber: ~~ )ará~ol"';,a~f!g'~:C.~) comunidade(s) cristã(s);
dica ser jesus Cristo Deus, como o Pai, visto que no AT «K:Yrios> se
atribuía somente a Javé. Além dis$o, «Senhor» considera Jesus em seu
t interpretação destas para o .ru: pa etação das mesmas da parte do evan..
e, por fim, a montagem e tn er r
estado de glória, devida à ressurreição, em oposição ao estado de gelista, no caso Marcos. . . 37 versículos atribuem-se ao
«kênose» (= humilhação, esvaziamento) em que viveu desde a encar..
nação até à morte (FI 2,5-11). o primeiro (v. 33) e 0 ulti~~ (~~ q~e precede para o que se-
evangelista. V. 33 serve de ~'::'"'ç:o Filho do homem ou da volta de
Paulo, feita a saudação, passa a render graças a Deus pelos bene- gue. A cer!eza (v. 31) da vm a : a incerteza quanto ao tempo da
Jesus no( f1~ )d~bri':,:'d~s ~~lst~j. à vigilância perpétua (vv. 33 e :7).
2
fícios sobrenaturais concedidos aos coríntios em abundância, na medida
em que estes cresceram e perseveram na fé. É a maneira de Paulo:
mesma v. . t d om que originalmente errun uas
captar as boas graças dos destinatários. Começa otimista face ao con- Esta vigilância perpétua é .'1us rad a ;. tentos
0
e a Parábola do Porteir_o.
teúdo por vezes desagradável que segue. Nem perde tempo em ·Jouvo- parábolas, a saber' a Parabola ?s a encontram-se combinadas e m1s-
res puramente humanos. Sugere que não se ponha a confiança na su- No texto de Marcos as du'!" P:fábol:"confusão Não tem muito sentido
ficiência humana, mas nos dons de Deus, conferidos em Cristo Jesus toradas, o que causa lambem. gum rando di~ e noite (e!. v. 35c) o
(v. 4), graças aos seus méritos, 'em virtude de nossa incorporação a . que 0 porteiro houvesse de fi~ar es~ d ( J4a). Isto dá mais sen-
Ele (Rm 3,24s; 6,2-11). Semelhantes dons se reduzem aos da «palavra. patrão que viajou por tempo indetertrunasi~o vde uma festa, como é ·o
e aos da «ciência». A «palavra» seria a doutrina, a pregação evangé- tido se ele se tiver ausentadol2 §~40oc~ra também não faz muito sen-
lica (cf. OI 6,6; Ef 1,13; lTs 1,6), enquanto o «conhecimento> re- caso no texto paralelo de Lc ' · ' ·• 0 de uma festa de-
presentaria o conteúdo, urna compreensão mais profunda do Evangelho. - só saía de casa por ocas1a ' f
tido que o patrao, que t .d d e distribua entre eles as tare as
Outros exegetas preferem ver nos dois termos os carismas de cunho leaue aos seus servos a sua au or1 a e ên . Isto dá mais sentido se
literário e intelectual (12,8) de que os Coríntios foram favorecidos na º "das durante a sua aus eia.
proporção de sua fé e adesão ao Evangelho (v, 6), testemunhados pelos a serem cumpri ..: . . por tempo indeterminado e toma, en..
se tratar de um patrao que. ~1a1a . o caso nos textos paralelos
apóstolos. Estes versos são um espelho fiel da oração pessoal do Após- tão as providências necessar1as, co1!1o e )
tolo. útimo expediente que é facilmente esquecido em nosso .relaciomento. de 'Mt 25,14-30 e Lc' 19,11-27 (e!. ainda Mt 24,45 .
12 13

--~·- ..
Marcos lançou mão desta conflação de parábolas para encerrar o D · do no ponto e Rdeixar
Também eles podem estar dormm . passru
discurso escatológico de Jesus sobre a parusia e o fim dos tempos in;~~veltada a hora da chegada do Senhor e do seu em0 .
(13,1-37). A última frase do mesmo: •O que. digo a vocês, digo a todos:
eizer e V. Taylor; J. Luat, em:
Fiquem vigiando I> (v. 37), mostra bem que, na mente de Marcos, o
discurso já não se dirige somente aos discípulos de Jesus mortal ou Oet 14 (1969-1970) 4-5, H. a e
!b
BlbUograJla: Comen'!31"1os Kde hBi ~ 1 J!B. B .3 1 t se b, em: EuB f (1969) 13-22.

aos quatro deles mencionados em 13,3, mas a todos os cristãos. Esta Raul Ruijs, O.F.M.
nova orientação transparece também já em v. 35, onde se exige vigi- Petrópolis, RJ
lância de todo mundo, e não somente do porteiro da parábola.
Qual era a intenção original destas parábolas?
Os ouvintes de Jesus devem ter tido a impressão de que Ele se Tema Principal
referiu aos Jideres espirituais do povo. Todos estes ouvintes estavam
acostumados com certas expressões que jesus usava nestas parãbolijS: TO RELIGIOSO QUE EXASPERA
a nação deles era chamada ca casa» de Israel e os lideres do povo e O CRISTIANlSMO COMHOUMMOAVN~1iN CONVlDA AO HEROISMO
os profetas chamavam-se «Servos do Senhor>. A figura do porteiro eles A ESPERANÇA
podem tê-Ia associado com os fariseus que reivindicavam para si o poder
das chaves como se deduz também de Mt 23,13: <Ai de vocês, profes-
sores da Lei e fariseus, hipócritas! Fecham a porta do Reino do céu aos Sugestões para a Homilia
homens: vocês mesmos não entram e nem deixam entrar os que estão
querendo». Propondo-lhes a parábola do porteiro, Jesus queria chamar
a atenção deles. Deviam ficar de sobreaviso, tão a1ertas como um em- Introdução
pregado ou porteiro que espera a chegada de seu senhor. Somente nesta
hipótese estariam preparados para perceberem a chegada dos tempos t Começo de mais um ano
messiânicos. Em outras palavras, jesus queria lhes dizer: «Vocês, fari .. É o primeiro domingo do Adven o. . M . um Natal
seus e líderes do povo, não estão bastante atentos. Vocês não estão . d ·
um ciclo de leituras. ais
enxergando que já chegaram os tempos messiânicos em que Deus - litúrgico. In!c10 e 1~ais E para bem eelebrá-lo somos convi-
por meio de Mim - leva a história de vocês e do povo à sua plenitude. que nos é dado ce e rar · _ . , . deste periodo, a uma
Vocês estão dormindo no ponto!» (cf. Jo 9,39-41). Os cristãos poste- dados, através das celebraçoes htú1icas Tudo isto envolve um
riores aplicaram esta mesma parábola à sua própria condição e à se- preparação séria, fecund~ e re~ov~l~~ª·de grandioso. TudQ isto
gunda vinda do Senhor. Esta segunda vinda vai completar a obra ini-
ciada por ocasião da primeira vinda. desejo de M~~do;~:~· d:s~:per~nça que sustenta o nosso vi-
A combinação da Pardbola do Porteiro com a dos Talentos prova- ~e~~t;;;a:~ s~~er por algo. maior do que conseguimos até en-
velmente foi feita quando já começou a amadurecer a consciência da tão: o Reino de Deus.
protelação da parusia. Constatando-se que o dia do Senhor não vlria
logo, aproveitou-se da Parábola dos Talentos para dar sentido ao in- Corpo
tervalo enlre a primeira e a segunda vinda do Senhor. Esle intervalo
é a hislória da Igreja e coincide com a viagem do patrão. Antes dela, l. Vós, Senhor, sois nosso Pai
ele delega sua autoridade e distribui as tarefas.
A nova admoestação veic1~ada pela combinação das duas parábolas ito comovente em forma de oração, feito nu~ mo-
pçide ser resumida desta maneira: «Fiquem vigiando, não somente espe..
rando, mas lrabalhando! Vigiem, não porém esperando a volta do Se- ment~s~~fi~I e delicado rÍa história de Israel {Um do e-;; Exil~
nhor de braços cruzados, permanecendo à-toa (cf. 2Ts 3,6-12), mas retorno à pátria. - reconstrução do ~:~º~~é ~~~~ê~~fa par;
trabalhando e valendo-se da «autoridade» que o Senhor delegou aos
seus servos e desincumbindo-se das tarefas confiadas a cada um~ (v.
plosão da con!1ança e ao dmesem~eu amor libertador, assim co-
34b). A mudança dos <bens» ou «!alentos» das parábolas paralelas que Deus mamfeste seu P:
e~ e na conquista da Terra Pro-
Mt 25,14-30 e Lc 19,11-27 em «autoridade» (v. 34) é para vários au-
•' mo o iizera outrora no . x~ ºcéus e descêsseis ..• » Esta mes-

~-
tores sinal de que Marcos, na admoestação com que ele encerra o metida. «Oh, se rasgãsseis s "to de expectativa encontra-
discurso escatológico, pensou em primeiro lugar nos líderes ou ministros ma tônica-esperança, este mdes~~t;:~ de hoje: «Assim, enquauto
da(s) comunidade(s) cristã(s).
mos em S. Paulo! na s:gun ª S nhor Jesus Cristo não vos
Parece, portanto, que as parábolas originais que Jesus dirigiu aos aguardais a mamfestaçao de nosso e t d .nda do Filho
falte dom algum». Já nodEvJangelho~ :i~e~:~unªd~ e a incerteza
fariseus e demais líderes do antigo povo de Deus, em círculos cris,tãos 1

foram aplicadas à lgreja e aos lideres espirituais do novo povo' de do Homem ou da volta e esus n
14 15
quanto ao tempo da mesma colocam o cristão numa situação de Duas conclusões importantes:
vigilância. Não numa vigilância estéril; ociosa; ao contrãrio, - Este projeto de total libertação que Jesus apresenta co-
atuante e fecunda de novidade, preµhe de manifestações históri- mo fundamental em sua pregação e maneira de ser, por Ele
cas e concretas dasta Libertação, deste Reino, do qual Ele tanto chamado Reino de Deus, é algo de utópico, escatológico, de
falou e foi sua inauguração e concreção entre nós, entre os ho- futuro; em última análise: dom, obra do Pai. Mas este abso-
mens. Resumindo poderíamos afirmar que a Liturgia do Advento luto se mediatiza no «aqui» e no «agora» da história dos ho-
está carregada desta esperança; vem de encontro a estes an- mens. Ele se concretiza na história e no modo de como os
seios profundos e veementes de Libertação, de Re.denção, de homens vivem entre si, numa determinada formação social. Ele
Mundo-Novo, de Nova Criação, de Reino de Deus de que tanto é história também! Ou, melhor dizendo, é um processo e se tor-
falou Jesus. Não só falou, explicitou, concretizou, mediatizou na visivel, portanto digno de credibilidade, através de liber~a­
através de sua pessoa, seus gestos (milagres), vida, morte e ções parciais; é obra e fruto também da luta e esforço dos cns-
ressurreição. tãos conscientes e de todos os homens de boa vontade.
Diria até mais: este tempo atiça, acende este princípio-es- - Viver o Advento, celebrar o Natal é alimentar e~te
perança que atormenta o homem, a humanida.de e os torna eter- «espírito», é reavivar esta «inspiração», é reacen~er _este ~pi;i~­
nos insatisfeitos, por vezes, até impacientes: «Venha a nós o cípio-esperança», é concretizar através das mediaçoes h1stor1-
vosso Reino; seja feita a vossa vontade». cas estes anseios e apelos profundos tão vivos nos homens, na
humanidade.
2. O Reino de Deus: o forte na.pregação de jesus Crlslo Conclusão

«Vontade do pai», o seu


.
«Reino» constituem como que o
.
Eis alguns exemplos de como este Reino se mediatiza no
pano de fundo, a força-motora, a ·intenção fundamental de Je- momento histórico como exigência de compromisso do ser-
sus Cristo. A «Vontade do Pai» é o bem do Homem, de todos cristão:
os homens. Portanto este Reino apresenta um caráter de totali- Haverá mais Reino de Deus entre nós na medida em que:
dade, de universalidade. É um pr$>jeto de total libertação de - os lucros sejam repartidos para todos os que trabalhem;
tudo aquilo que oprime, aliena, diminui, nega o homem, os ho- - os salários possam atender às necessidades de alimenta-
mens. Tem assim uma dimensão de absoluto, definitivo, com- ção, habitação, condução, diversão, escola, vestuário, atendimen-
pleto e acabado. Preenche uma exigência de totalidade, de sal- to médico de nosso povo;
vação plena, de libertação integral. Este «Reino de Deus» apre- - haja mais solidariedade, participação, companheirismo
senta-se primeiramente como uma proposição de um projeto de entre todos, particularmente entre os operários, entre os pobres;
total libertação. É o que deixa entrever jesus na sinagoga de - haja mais segurança no trabalho, cuidado com o corpo
Nazaré quando faz seu discurso-programa, apresentando sua
e com a saúde;
plataforma de trabalho. Aí Ele adianta aquilo que pretende fa- - haja locais de trabalho e de moradia mais limpos, sem
zer: Ele fala da utopia do ano da graça do Senhor. Em seguida
pode-se perguntar como esta utopia, como este ano de graça poluição e risco de vida;
- haja trabalho para todos: jovens e adultos, mulheres e
acontece, se verifica? É através de. gestos bem reais, bem con-
cretos de libertação em prol dos oprimidos e cativos; em favor homens;
dos pobres, dos que sofrem, dos que têm fome e dos que são - haja menos horas extras, conseqüentemente menos can-
injustiçados e perseguidos. É neles, que a «Vontade de Deus» saço, fadiga, doença dos nervos, acidentes de trabalho e de-
vai-se revelar. Esta situação de injustiça constitui uma negação sintegração da família;
deste Reino. A superação destas sitl!ações no «aqui» e no «ago- - haja bairros mais limpos, com água, luz, esgoto, escola~.
ra» da vida do homem são concretizações deste futuro absoluto, E por isto mesmo: mais vida feliz, alegria, união, amor, feli-
desta plenitude de libertação, desta .utopia do «ano da graça do cidade.
Senhor». Numa palavra: Reino de Deus no meio dos homens.

16
17
Cada um poderã concretizar estas mediações segundo o seu Segundo Domfugo do Advento
contexto e ambiente. Pistas Exegéticas
Ora, quem crê e Juta para to1nar realidade tudo isto é um Primeira Leitura: Is 40,1-5.9·11
grande, um herói, um cristão consciente e comprometido. «Elevai com força a voz para anunciar a Boa-Nova»
Frei Cristóvão Pereira, O.F.M. Esses versículos, corno todo o capítulo 40, devem ter sido escritos
Vale do jatobá, Belo Horizonte, MO pelo fim do exílio. Quando os profetas !salas, jeremias e Ezequiel nos
falam de seu chamamento profético, mencionam uma visão em que rece-
bem a missão de anunciar urna mensagem de Deus a seu povo. Diver-
samente destes, o autor de Is 40 começa logo a anunciar a pa1avra de
Javé. Não se apresenta, não justifica sua missão. E a palavra de or-
dem de Deus é: consolai! Quem está habituado ao linguajar dos pro-
fetas anteriores: Arnós, Oséias, Isaías, jeremias, etc., em que a pa-
lavra de ordem é a denúncia dos pecados e o anúncio dos castigos,
poderá achar estranha esta linguagem: consolai 1 Aqui Deus ordena ao
profeta que console seu povo porque o castigo que havia merecido por
seu pecado tinha sido descontado. E não só. Mas havia sido pago em
dobro daquilo que merecera. Certamente que há aqui uma hipérbole;
mas podemos ver também a expressão antropomórfica do sentimento de
Deus que se compadece ao extremo diante dos sofrimentos de seu povo.
Nos vv. 3 e 4 é uma outra pessoa que laia. Provavelmente trata-se
de um anjo que grita em nome de Deus. Naquela época os governos
não se preocupavam muito com as estradas. Por ocasião de expedições
militares os habitantes da região eram convidados a consertar pelo menos
sumariamente a estrada para que o exército pudesse passar.
Aqui a -estrada deve atravessar o deserto, ligar Babilônia com jeru-
salém. E o seu conserto não deve ser apenas sumário, mas devem ser
removidos todos os obstáculos a fim de que se torne um caminho reto
e plano e ofereça ao povo de Deus um retorno fácil, rápido e sem
1

perigos. Deus mesmo irá à sua frente e repetirá as maravilhas que


operou na salda do Egito. Ê a maneira mais fácil de suscitar a espe-
rança nas maravilhas que Deus vai operar em favor de seu povo, pelo
grande amor que lhe tem.
Nos vv. 9 a 11 a cena muda repentinamente. Agora o anunciador
está em Jerusalém e ai deve anunciar com voz forte: «Eis o vosso
Deus ... > A experiência dolorosa e triste do exílio fizera vacilar a fé
no Deus de bondade que tantas maravilhas no passado havia feito em
lavor de Israel. Agora se anuncia com júbilo incontido que este Deus
retorna com todo o seu poder e com os frutos de sua vitória. E mais:
ele vem com as demonstrações mais belas e tocantes de seu amor. Será
como um pastor que reúne os animais dispersos carrega ao colo os
1
cordeiros e conduz lentamente as ovelhas com crias: expressões mara-
vilhosas do amor e da ternura de Deus para com seu povo.
Sente:-se a vibração e o entusiasmo do profeta diante da surpresa
do amor de Deus que irrompe nessa nova fase da Revelação.
As palavras do profeta adaptam-se magistralmente ao tempo do Ad-
vento, tempo de uma impaciente e incontida espera, e, simultaneamente,
tempo de consolação e júbilo pela proximidade da libertação que Deus
irá operar.
Bibliografia: Pen na, Jsaia, Marletti; Piro t-C 1 ame r, La Sainte Blbte, t.
Vlll.Letouzey et Ané; Cor d e r o, La Biblia Comentada, t. UI, BAC; S te 1 n ma n n,
O ivro da Consolação, Edições Paulinas.
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
Santa Maria, RS
18 19
Segunda Leitura: 2Pd 3,8-14 gados os pecados, v1rao dias melhores, Deus enviarâ Jesus aos predes-
tinados (AI 3,19s). Os pecados retardam a vinda de Jesus, em virtude
«Esperamos uma nova terra, onde habitará a jusfiç{l';t da paciência divina. A parusia atrasa porque o Povo de Deus ainda
não é santo. O fim do mundo não é simples destruição, mas visa
A 2Pd aborda o problema escatológico. Deixando de lado os fal- manifestar o poder e a glória de Deus em Jesus Cristo (Mt 24,29ss) e
sos doutores (2-3,7), sugere que a demora da parusia faz parte do a salvação dos homens.
plano de Deus e justifica-se por três razões: - a medida do tempo é Com o fim deste século, esperam-se um novo mundo, um novo céu,
diversa para os homens e para Deus (3,8: «... um dia diante do Se- uma nova terra (Is 51,6; 65,17ss; 66,22; Mt 19,28; Ap 21,l; Rm 8,
nhor é como mil anos, e mil anos como um só dia>, evocando o SI 89 19ss), quando se beberá vinho novo (Me 14,25), ter-se-á um nome no-
4); - Deus se guia pela misericórdia (3,9: «0 Senhor não retard~ vo (Ap 2,17), cantar-se-á um cântico novo (Ap 5,9), habitar-se-á na
a promessa, como alguns pensam, mas usa de misericórdia para con- Jerusalém nova (Ap 21,2). Com esta cnovidade> exprime-se o desejo
vosco. . . não quer que alguém pereça, ao contrário quer que todos se de que tudo seja bem diverso de agora e de que o divino absorva o
arrependam»); - a demora de Deus não deve ser motivo para levian... terreno. Reinará então a justiça, far-se-â integralmente a vontade divi·
dades, como se Ele não viesse mais (3, 1O). Com efeito, uma é a medida na (MI 6,10), sem nada de profano. Não é descrição de um paraíso
divina do tempo, outra é a humana. Deus está acima do tempo. Nossa terrestre, mas de uma realidade onde Deus é tudo. Diante do que virá,
esperança foge às categorias naturais de tempo. A «proximidade» da esforcemo-nos na esperança (o «caríssimos> repetido implica em insis-
parusia deve ser vista sob perspectiva divina: um ~dia é como mil anos. tência) para sermos já agora justos, imaculados (IPd 1,19) e irrepreen-
Nossa imaginação revela-se incapaz de representar este acontecimento. síveis (IPd l,19; Ef 1,4; Cl 2,22) no dia-a-dia, qual vitima sem mácula
Hereges parecem censurar a Deus pela demora em cumprir a pro- nem defeito, oferecida a Deus na «paz», isto é, no estado de salvação
messa (3,9). Melhor dizer que estão em equivoco quando esperam para (1,2), na graça de Deus, como quem possui meta elevada e dominou
tão logo a yinda de Cristo. Como os preconceitos humanos perturbam suas paixões. Para participar deste «mundo novo» é preciso ser santo,
a compreensão da revelação! Se a parusia tarda, não é fraqueza ou in- zelar pela justiça com a graça e a paz de Deus.
fidelidade divina, mas paciência, misericórdia (cf. Eclo 35,19-26). Ele Blbl/ografla: S t õ g e r, AJois, A segunda Carta de Pedro Apóstolo (trad. de V.
quer que topos - inclusive os hereges - se salvem e ninguém se do Amaral), Vozes, Petrópolis 19'11; F r a n e o, Ricardo, Cartas de S. Pedro (La
Sagrada Escritura, NT, Ili, BAC/Madrld 1962il· Salgue r o, José, Cartas de San
perca (cf. Ex 34,6; Rm 11,32; lTm 2,4; lJo 2,2). Aliás, aqui o acento Pedro, BlblJa de Salamanca, VII, BAC/Madrl 1965.
recai não tanto sobre a iminência, senão sobre o inesperado da paru-
sia. Como ~ segunda vinda de jesus tardasse, certos cristãos, mesmo Matheus F. Giuliani, S.A.C.
acreditando algo na parusia, passaram a viver como se o Senhor já Santa Maria, RS
não viesse, não estando mais em seus cálculos (3,.2--7). Diante desta
situação, a 2Pd insinua a certeza e o caráter de surpresa desta vinda
recordando a advertência de jesus: «Virá como ladrão» (Lc 12,39.42-46~ Terceira Leitura: Me 1,1-8
17,24-30.34s; MI 24,43s; 25,1-12; At 2,20), quando ninguém o espera. cln/cio da Boa-Nuva de jesus Cristo>
O fim do mundo vem assim explicitado. como o fim do firmamento
com sua estrutura, como o fim dos «elementos» (astros), como fim da Conforme a crítica literária, Me é o mais antigo evangelho. Ele
terra com as obras de sua cultura. Tudo em estilo apocalíptico. Após foi utilizado por MI e Lc. Isto significa que o autor de Me é o idealiza-
haver prenunciado o fim do mundo - juízo e condenação -, passa 0 dor e criador do gênero literário que hoje se indica com a palavra
autor a uma exortação: portanto, deve-se andar vigilante e preparado <evangelho>. É claro que ele não criou do nada. Dispôs de muitas
sem se deix~r desviar da reta doutrina, porquanto tudo isto se reali~ tradições orais e escritas, quando começou a idealizar o seu livrinho
zará. Se há demora, é desígnio divino. A caducidade do mundo e a sobre Jesus. E nem todas aquelas tradições consistiam em trechos muito
certeza da parusia motivam-nos para a santidade. O mundo e os ho- .pequenos e isolados. já houve, antes de Marcos começar a escrever,
mens serão ,transformados. Serão salvos os que temem a Deus como tradições de fatos e ditos de jesus, inseridos em um contexto maior..
outrora ~o ~ilúvio. Tal visão futura deve excitar-nos à santidad~ (lTs Lucas sugere isto muito claramente no prólogo de seu evangelho (Lc
3,13) e a piedade, porque estamos a caminho do juízo quando sere- l,l-4) e nos discursos querigmáticos dos Atos dos Apóstolos, especial-
m?s separados e ~té condenados (Mt 22,14). Devemos ~er irrepreensí- mente em AI 10,34-43. Este trecho representa um pequeno resumo tanto
veis (lCor 1,8), vivendo segundo a reta consciência (Fl 1,10). do conteúdo como da cmontagem> dos tres evangelhos sinólicos.
A relatividade do tempo e a incerteza da hora parusíaca não dis- No cabeçalho de seu livrinho Marcos colocou, quase a modo de
pensam o cristão de orientar-se ativamente para o futuro moral de sua titulo, a expressão «Evangelho de Jesus Cristo (Filho de Deus)>. Deve·
vida (3,12). A vinda do Senhor e o fim do mundo não precisam ater- se dar a esta expressão todo o seu valor origina], que se gastou demais
rorizar-nos, mas despertar em ~ós a esperança e a expectativa alegre, no decorrer dos séculos, a saber: boa-nova. Boa-nova era, naquele tem-
como fossem um banquete festivo (cf. Ap 20-22; At 2,15ss; 3,24ss; 4, po do império romano, a noticia de uma grande vitória, ou do nasciª
3~ss). Recorde-se o «Maranatha» (Vinde, Senhor!) dos primeiros cris- men!o ou da tomada de posse de um imperador. Tal boa-nova era,
por arautos especiais, levada aos mais remotos cantos do império.
taos (Ap 22,20; !Cor 16,22), com o que passavam para segundo plano
os valores da terra a fim de viverem «com Cristo». Santificando-se o
' Na Bíblia a boa-nova é reservada para aqueles arautos que têm
cristão apressa a vinda do dia do Senhor: pela penitência são aPa- a fe]iz incumbência de anunciar que Deus vem salvar o seu povo de

20 21
sua huniilhação, opressão e exploração, como outrora, nos tempos de Tema Principal
Moisés, salvou o seu povo da humilhação, opressão e exploração decor-
rentes da escravidão no Egito (cf. Is 40,9; 41,27; 52,7; 61,1). Espe-
cialmente o texto de Is 40,9 é importante, porque Me 1,3 cita explici- Fala-se muito da missão profética da Igreja, inclusive dos cristãos
tamente Is 40,31 leigos. Ela inspira-se na espe_rança de uma nova terra ~nde h~i~â
a justiça (2' leitura). Encammha-se esta nova terra cheia de JUS~ça
Para Marcos coube a João Batista ser o arauto que recebeu a feliz mediante a proclamação profética da Boa-Nova da chegada do Remo
incumbência de anunciar que Deus estava chegando para salvar. A de Deus (1• leitura) em Jesus Cristo (3' leitura). Por isso escolheu-se
sua pregação é, por isso, o «início da Boa-Nov~ (t,la). Sempre con-
forme Marcos, a pregação da Boa-Nova começa com João Batista (1, como tema principal:
lss), ressoa na pregação de Jesus (l,14s) e pela pregação da Igreja JESUS E OS CRISTÃOS: PROFETAS DO REINO
se espalha sobre o mundo inteiro (13,10; 14,19). «Pregadores> ou
«arautos> desta Boa-Nova são, conforme ele, joão Batista (1,4.7), Je-
sus (1,14.38), os doze (3,14; 6,12) e os missionários e pregadores da
Igreja (13,10; 14,9). A atuação de todos eles faz de todo o período Sugestões para a Homilia
a partir de joão Batista até a Igreja espalhada sobre a face da terra,
tempo de salvação (E. Schweizer). Introdução
«]esuS" Cristo» é para alguns o objeto, para outros o sujeito desta
Boa-Nova, porque Deus opera a salvação através d'Ele. Unia das principais características dos profetas, que fre-
Parece que a caracterização da atuação de joão Batista como o qüentemente encontramos na Sagrada Escritura, é qlje eles nun-
«Início da Boa-Nova de jesus Cristo» determinou a versão que Marcos ca falam por autoridade própria nem se dirigem aos seus
dá das tradições preexistentes a respeito desta atuação. Este. «Início
da Boa--Nova> não se enquadra bem com aquelas tradições que apre- ouvintes por meio de um «Motu próprio». Todos eles declaram
sentavam joão Batista como uma figura muito austera e severa, que xin- que sua mensagem é no fundo a palavra de Deus. Constante-
gava os fariseus e saduceus (Mt) ou o povo (Lc) de «bando de co- mente volta nas profecias a expressão: «Assim fala o Senhor».
bras venenosas» e, em tons de ameaças apocalípticas, predisse o pró- Atrás das palavras de todos eles está o Senhor. E próprio de
ximo fim do mundo pelo fogo, da parte de um Deus irado. Omitindo
todos estes tr.aços da apresentação jâ «tradicional» da figura de João um profeta não chamar a atenção para si mas para a men-
Batista, o evangelista Marcos transforma as associações apoca1fpticas sagem do Senhor. E onde o Senhor não entra no jogo, onde a
ligadas a ela em uma mensagem que realmente merece o nome de palavra humana soa mais que a palavra de Deus, aí aparecem
«Boa-Nova>. Os <moradores da região da judéia e da cidade de je- os falsos profetas.
rusalém» (v. 5), que procuravam joão Batista para ouvir a sua mensa-
gem e receber a graça do arrependimento e do perdão, parecem agora
atender àquela «voz do deserto> (v. 3 e Is 40,3), escolhida por Deus Corpo
«para anunciar a Boa-Nova a Jerusalém» e cpara dizer às cidades de
Judá: 'Eis vosso Deus!'» (Is 40,9). 1. Inicio Profético do Evangelho
Também a «pregação do batismo de conversão para a remissão dos
pecados» aparece na apresentação de Marcos como cumprimento daque- No inicio da Boa-Nova, narrada por Marcos, nos é apre-
la Boa-Nova, prevista por Is 40,2: «Animai jerusalém, dizei-lhe bem al- sentado um profeia muito especial, joão Batista. Para o povo
to... que sua falta está expiada». Aquele cuja vinda João Batista de lsrael ele tinha os traços de Elias. Andava com roupa es-
anuncia não é o Juiz do mundo que batizará com fogo (e!. Mt e Lc), tranha. Não se preocupava com a comida e a bebida. Alimen-
mas o salvador Jesus Cristo, que batizará com o Esplrito Santo (v. 8). tava-se com aquilo que encontrava no mato.
Também na versão de Marcos João Batista permanece uma grande
figura. Merece ser comparado com o anjo do Senhor que acompanhava A reação do povo, que esperava a volta de Elias para o
o povo de Deus no deserto (cf. Ex 23,20) ou com E~as (compare-se fim dos tempos, deve ter sido: «Será que é Elias, o profeta
v. 6 com 2Rs 1,8). Em comparação, porém, com Aquele cujo caminho que voltou?» No entanto, Marcos não parece ter tanto interesse
preparava, ele não passa de um simples escravo, que nem é digno de em joão Batista. Nós o vemos no evangelho de hoje apenas
prestar aquele serviço de escravo, a que não se podia obrigar um es-
cravo hebreu, conforme a tradição da Mishná. na sua função de anunciar um outro, alguém que ele mesmo ca-
Blbllografla: Os comentãrlos de E. Schwelzer e V. Tatylor; H. Kable-
racteriza como mais forte. Diante dele joão é nada, totalmente
f e 1 d-J. Ou n t b e r, em: EuE 1 (1969) 23-30; P. T e r na n t, Le minlstêre de jean,
&ommencement de l'âvanglle (Me 1,1-8), em: AdS 11/6 (1969) 41-53; B. van 1erse1,
insignificante.
TeologJa e o trabalho exegético dos detalhes. Um exegeta e teólogo sobre Marcos
1,1-IS: em: Concl1fum 70 (1971/10) 1242-1249.
E claro que um tal profeta impressionou muito ao povo.
Raul Ruijs, 0.F.M. Mas joão diz: «Vocês vão ver outra coisa. Aquele que há de
Petrópolis, RJ vir, fará coisas muito mais impressionantes que em>.
22 23
\

__ e L
2. /wus, o Profeta do Reino de Deus Se o cristão está cheio do Espírito Santo, vêmo-lo na medi.da
em que ele tealiza uma ação profética a exemplo de ]esns. Não
Jesus, anuuciado por João, continua na linha dos profetas. precisa ir longe para procurar onde atuar profeticamente. A
Foi assim também que o povo o considerou: «um grande pro- nossa sociedade é um desafio constante para uma tal ação
feta veio entre nós». No entanto, Jesus também era diferente profética.
dos demais profetas da história de Israel. Falava de um jeito Alguém poderia dizer: «Mas, o que em dois mil anos os
que não encontramos nos outros profetas: «Ouvistes o que foi cristãos não conseguiram, será que um grupinho de cristãos
dito aos antigos ... Eu, porém, vos digo •.. » Foi justamente este proféticos ou eventualmente uma Igreja profétíca vai conseguir?»
seu jeito que causava tanta admiração e ao mesmo tempo tanta Quem quer animar pessoas para dedicar-se a um ideal não faz
revolta. Por isso não podia escapar da sorte dos profetas, mor- isto com uma exposição científica. Viver, falar e agir profetica-
rendo uma morte cruel. Jesus mesmo reconheceu isto claramente. mente sempre tem algo de ir atrás de uma utopia. É um jeito
Mas, apesar de Jesus falar com uma autoridade extraordi- que contamina os outros.
nária, Ele sempre está numa atitude de escuta de Deus com Se em torno dos cristãos e no meio da Igreja aparecem
quem mantém uma relação intima de filho ao pai. Ele se vê certos traços do Reino, onde há vez para o pecador, para o
como um enviado do Pai e só faz o que Este lhe manda. marginalizado e injustiçado, então poderemos estar certos de que
Mais do. qúe qualquer outro profeta Ele está cheio do Espírito o Batismo com o Espírito Santo se realizou. Se os cristãos con-
de Deus. "1 seguirem assim engajar-se e contaminar igualmente os outros
Estamos aqui diante de um dos grandes mistérios na vida para ir atrás desta utopia e assumi-la, então o Reino está no
de Jesus, o mistério do Pai que O envia e nele fala. Podería- meio de nós.
mos ter aqui a mesma curiosidade ou o mesmo interesse de Geraldo van Buul, O.F.M.
Filipe quando pediu a Jesus: «Mostra-nos o Pai». Mas, parece Santos Dumont, MO
que para Jesus este pedido é meio absurdo, respondendo: «Quem
me vê, vê o Pai». O que se pode saber do Pai, revela-se neste
homem Jesús, o protótipo dos profetas, este que está cheio do
Espírito Santo.

3. Vocação e missão profética dos cristãos

Ê desté Jesus que João Batista diz na sua pregação: «Eu


batizei com "água, mas Ele batizará com Espíri1o Santo». Como
a água do rio Jordão envolvia todos que nela eram submersos
após ouvir a palavra do profeta, assim aqueles que atenderem
à Palavra de Jesus serão envolvidos totalmente pelo Espírito
Santo, o mesmo espírito que envolvia Jesus. Todos que aceita-
rem a palavra de Jesus terão algo daquele jeito profético de
Jesus. A missão deles é, na escuta do Pai, ou em obediência
a Ele, anunciar e realizar, como Jesus, o Reino.
A concretização deste Reino, Jesus realizou-a de uma maneira
especial por seu jeito profético de escolher o lado dos margina-
lizados e menos favorecidos tanto no plano religioso quanto so-
cial. Assim Ele tornava-se realmente instrumento de perdão
para os pecadores; distribuía pão aos famintos; defendia os
injustiçados.
24
25
Terceiro Domingo do Advento eravizadora, as palavras do Profeta soam como um grito de esperança
da próxima vinda do Deus que liberta.
Pistas Exegéticas Blbllograjla: Pen na, Jsata, Marletti; Piro t-C J ame r, La Sainte Bible, t.
VII, Letouzey et Anê; C o r d e r o, La Biblla Comentada, t. Ill, BAC.

Primeira Leitura: Is 61,1-2a.10-11 Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.


Santa Maria, RS
cO Senhor Deus fará germinar a justiçU>
Segunda Leitura: 1Ts 5,16-24
O Profeta se apresenta abruptamente com a missão de anunciar
uma mensagem de libertação aos mais necessitados. E isto como con- «Examinai tudo. Retende o que for bom>
seqüência de uma unção especial do Esp!rito. Usava-se a cerimônia da
unção especia}mente na _entronização dos reis (ISm 9,16; 16,1.12; !Rs Na parte conclusiva da Primeira carta aos Tessalonicenses, Paulo
1>39). O sentido desse rito era marcar com um sinal externo no caso exorta quanto à vida comunitária, explicando o v. llb: «edificai-vos mu-
com o óleo, a estes homens como eleitos e separados por Deus para tuamente». Para tanto é necessária solicitude fraternal, oração, ação de
o governo do povo. Pela unção o Esp!rito de Deus descia sobre o g.raças e alegria de viver, como também o uso correto dos carismas
ungido (JSm 16,13) dando-lhe assim as condições de exercer sua missão. dados pelo Espírito a cada um dos membros da comunidade.
~a nossa perícope a presença do Esp!rito de Javé é tão forte que o O texto pode facilmente ser dividido em três partes, onde cada uma
r·1to do óleo passa para um segundo plano. A consagração a Deus con- sublinha uma realidade da vida em comum. A primeira mostra as qua-:-
fere ao Profeta a missão de ser mensageiro de uma boa-nova. Esta lidades pessoais do fiel, a segunda o discernimento quanto às doutri-
novidade dirige-se em primeiro lugar aos pobres os «anawim»: pes- nas, e a terceira a atitude para com Deus. Os vv. 16-18 mostram as
soas humildes, fié!s _ a Deus. que sofrem por caus~ de doenças, da po- três atitudes do homem diante de Deus e sua vontade. Nenhum sofri-
breza, de perseguiçoes e prisões. A estes todos é anunciado o fim de mento destrói a fonte da nossa alegria, que é a certeza da salvação
seus sofr}mentos, a libertação de sua situação de misér·ia e escravização. em Cristo, ao qual nos unimos pela oração, e a quem devemos render
:B anunciado um ano de graça, um ano de libertação. Há aqui uma graças, também pelas provações e sacrifícios. Só no cristão podem estar
presentes e são possíveis estas atitudes, frutos de privilégios extraor-
alu~ão ao ano sabático, ou ano jubilar (Lv 25,!0ss) em que cada fa-
dinários concedidos por Cristo, morto e ressuscitado, exemplo e fonte
míha retornava a recuperar a posse d~ sua terra que, por acaso, ti- de aceitação da vontade de Deus.
vesse vendido, ano em que os escravos recuperavam a liberdade e as
dívidas eram canceladas. Na segunda parte, Paulo exorta a não criar obstáculos às mani-
festações do Espirita que, como um fogo, abrasa, aquece e não deve
O sentido desses versfcu1os aplica-se perfeitamente ao Novo Tes- ser extinto na comunidade. Fazer isso seria opor-se à graça. Sobretudo
tamento. ~risto _mesmo os aplicou a s~ ao apresentar-se na sinanoga deve-se aceitar as legítimas interpretações dos «Sinais dos tempos>, as
de Nazare: «Ho1e se cumpriu este oráculo que acabais de ouvir> (Lc profecias. Elas são - exortação, edificação e consolação (lCor 14,3)
4,16-21). No tempo do Advento a mesma mensagem é dirigida, com - inspiradas pelo Espírito, embora possam introduzir-se eJementos hu-
toda sua carga de esperança, para libertar os homens sofredores de manos que o discernimento deve saber identificar e afastar (lCor 12,10;
nosso tempo de toda espécie de sofrimento e opressão. 14,29). Discernir é essencial à comunidade, pois a conduz à maturi-
~ conseqüência d~ssa boa notícia é um hino de júbilo e alegria dade, pela qual ela é capaz de perceber o que mais lhe convém. Dis-
que rrrompe no coraçao dos pobres. Apesar de predominar no Antigo cernir é criar uma sensibilidade comum, que inspira, nas situações con-
Testamento as perspectivas e promessas de ordem materia1 nesses vv. cretas, posicionamentos precisos, concordes, exatos e comuns em prol
10-11 o motivo da alegria é totalmente espiritual, é Deus ~esmo. Usa- da edificação dos irmãos (Fl 1,9-11), pelo serviço da Igreja, forta-
se a metáfora, bastante comum, da veste: vestimenta de justiça, manto lecimento da sua unidade (cl. !Cor 12) e submissão à lei mâxima da
de salvação, para significar uma atitude interna de júbilo e festa. Am- caridade (e!. !Cor 13).
bas as expressões querem dizer a mesma coisa. Jndicam a plena liber- Em vários momentos da Igreja a ação do Espírito inquietou seus
tação da penosa situação de outrora. O júbilo e a alegria de que vai dirigentes (ci. !Cor 12-14). Entretanto, Paulo exorta, não a extinguir
gozar o povo eleito são comparados aos que têm os jovens esposos a ação do Espírito, mas a discernir sua presença. Desprezar a profe-
ao vestirem seus trajes de festa para o encontro de amor. E tudo cia, seria um risco demasiado grande, seria empobrecer a Igreja. O
isto não é uma coisa longínqua, imprecisa, duvidosa. O profeta insiste Esplrito é livre, sopra onde e quando quer (cl. jo 3,8), sem ele a Igreja
na certeza da realização de tais promessas. Com a mesma certeza com não existiria, perderia seu dinamismo, sua criatividade. Convém, no en-
que o sol faz germinar os grãos, brotar e reverdecer o jardim, Deus tanto, lembrar que os «dons» não é o todo do cristianismo.
!arâ desabrochar toda a riqueza de sua salvação. A parte conclusiva do texto, w. 23-24, é uma oração paralela à
Para nosso povo, sobretudo para a grande massa dos pobres e de 3,11-13, que conclui a primeira parte da carta. O homem é obje-
sofredores, esmagados pelas engrenagens de uma ordem injusta e es- to do beneplácito divino, e deve-se conservar sem defeito para o Dia
do Senhor.
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O problema suscitado pelo v. 23 é quanto aos três termos que A primeira parte do testemunho de João (vv. 19-23) apresenta joão
Paulo usa para descrever o homem. Não se pode dizer que Paulo como «mera voz>, anunciando o Messias. Vem a ele uma delegação de
adote a tricotomia grega, pois só neste versículo tais termos são usados peso: sacerdotes e levitas de Jerusalém: os dignitários do Templo, em-
juntos. Deve-se dizer que espírito e alma são uma úni-ca e mesma rea- bora as verdadeiras autoridadesJ por enquanto, fiquem ainda nos bas-
lidade, sem necessidade de se apelar para uma parte inferior e outra tidores. O estilo da delegação jã tem características judiciais. O Quarto
superior do homem, para a identificação semântica entre cvosso es- Evangelho é, todo ele, desde o começo, uma evocação do processo contra
pírito» e «convosco» (Masson), ou dizer que se trata do Espírito de jesus. Neste processo, o Batista é urna das testemunhas. Por isso a
Deus no homem (BJ). Paulo não pretende formular nenhuma doutrina solene fórmula judicial ao pronunciar seu depoimento, dizendo o que
antropológica com um só vers!culo, e para ele são duas palavras que ele não é: cEle confessou e não negou; confessou ... » (v. 20). Por
indicam uma única realidade. Ele, de fato, usa indiferentemente os dois isso também a menção deste depoimento no próprio Prólogo (vv. 6-8.
termos (cf. lCor 16,lBi 2Cor 7,13), assim tudo o mais que se con- 15). João não é, em primeiro lugar, o «Cristo», o Messias, o Ungido,
clui vai além do texto. O que Paulo quer afirmar é que a bondade o Enviado de Deus para libertar o povo e instaurar o Reino de Deus.
de Deus invade o homem todo (TOB). Mais ainda, ele não é Elias, que, conforme MI 3,1.23-24, devia voltar
O Deus da paz, invocação freqüente em Paulo (Rm 15,33; 16,20; para preparar a visita de Javé a seu Templo - embora a tradição si-
Fl 4,9; 2Cor 13,11), é a fonte da santidade. Ele escolhe, santifica, con- nótica o tenha apresentado como 1al (MI 17,12s; e!. Me 9,12; e a
sagra, separa os homens que deverão se conservar irrepreensíveis para descrição do Batista como profeta no deserto [Me 1,2--6], precursor
o Dia do Senhor. O homem recebe de Deus um dom - a santificação [7-8], até na sua perseguição por uma princesa [Me 6,17-29] seme-
- e deverá. conservá-lo até o fim. No homem, Deus levará a termo a lhante ao profeta de Tishbe). Jo não menciona o dito que identifica o
sua obra, basta que o homem não crie obstáculos. Ele mantém sua Batista com o precursor apocal!ptico de MI 3,1 (Me 1,2; MI 11,10 par).
palavra, cumpre sua promessa, é misericordioso, é fiel. Cita apenas o texto de Is 40,3 (e!. Me 1,3 par), sobre a voz que manda
Bibliografia: C a n t 1 na n t, J.,, Les :Epltres de St. Paul expliquées, Paris 11>'70;
aplainar um caminho para o Senhor no deserto (Jo 1,23). Esta notá-
Sta -a b, K., Le lettere .ai tessa1onlcesl Brescla 1961; .M. as s o n, e., Les deux vel diferença com a tradição sinótica pede explicação. Talvez o quarto
épltr-es de Saint Paul aux ThessaloniclenS, Paris 1957. Evangelho represente a tradição de uma comunidade onde não foi rea-
lizada a identificação do Batista com o precursor apoca1íptico, o Elias
Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. redivindo. Mais provável, porém, é que jo quer recusar qualquer título
Paulista, PE de teor messiânico ao Batista, mesmo o de precursor, embora seria
a conseqüência natural do dito de jo 1,27 (d. Me 1,7 par). Também
o título de profeta é negado ao Batista (1,21), embora os Sinóticos
Terceira Leitura: Jo 1,6-8.19-25 implicitamente, lho outorgaram (e!. Mt 11,13; 21,16 par). Observe-se,
porém, que se trata do título «0 Profeta», maneira messiânica de en-
«Veio para dar teslemunhU»
tender o texto sobre o surgimento de novos profetas como Moisés, Dt
1. Explicação 18,15. Pois o judaísmo do tempo de jesus interpretava este texto como
!alando não de profetas em geral, mas de um Profeta-Messias (em
Jo 1,6-~ forma um parêntese no Prólogo de João; interrompe a jo 6,14 esta figura é aplicada ao próprio jesus). Portanto: o Batista
seqüência dos vv. 1-5 e 9-14. Alguns exegetas vêem em jo 1,6-8.15 res- não é uma figura messiânica.
tos de um outro texto, que teria sido intercalado no Prólogo original; Vem, depois, o lado positivo de seu depoimento. João testemunha
este texto teria sido um começo de evangelho, semelhante a Me l,lss, de si mesmo que ele é meramente a voz anunciando a glória do Se-
e continuaria, depois de 1,6-8.15 (introdução do testemunho de joão) nhor presente, se se pbde interpretar o v. 23 através da chave dada
com jo 1,19ss (o testemunho propriamente). ~ nesta teoria que se ba- no Prólogo, no v. 15, que relaciona o testemunho de joão com a apari-
seia a delimitação da leitura evangélica do 3• Domingo do Advento. ção da glória de Deus em jesus Cristo.
Fica, porém, muito hipotética. Na segunda etapa do inquérito, os mandantes da deleg~ção são
Os vv. 6-8 explicam que João Batista não é a Luz verdadeira, mas identificados como sendo os fariseus (v. 24). Historicamente, isto é
testemunha da Luz. Suspeita-se que esta afirmação enfática responda à pouco provável, porque, no tempo de Jesus, as autoridades do Templo
opinião de certas seitas, de que João seria o Messias (cf. o testemunho eram os saduceus, sendo que os Sumos Sacerdotes pertenciam a esta
a respeito da. sobrevivência de tais seitas, vários decênios depois da classe. Jo nunca os menciona. Pois não é ptopriamente historiador, mas
morte de Cristo, em AI 18,25; 19,3-4). A própria tradição sinótica atesta evangelista, o que é outra coisa. Escreve para seu tempo, e em seu
o alto conceito do qual gozou o Batista, junto ao povo, a Herodes e ao tempo, no fim do século 1, quem manda no judaísmo são os fariseus.
próprio Jesus (Mt 11,11 par; 14,5-9 par; 16,4 par; 17,13; 21,26). Sem Jo projeta na narração evangélica a situação do fim do primeiro sé-
dúvida, a figura de joão marcou sua época. O Quarto Evangelista pa- culo, quando, depois da destruição do Templo (70 dC), não mais a
rece querer -definir claramente o lugar de joão. Ele não é a Luz, mas aristocracia sacerdotal (os saduceus) e sim os fariseus (chefes das si-
testemunha da Luz. A Luz é o Logos, jesus. João é apenas uma lâmpada nagogas, rabinos, escribas) assumiram a hegemonia do judaísmo* Tais
provisória (Jo 5,33-35). Isto, os judeus o aprenderam de seu próprio projeções aparecem também, em jo 9,22; 12,42s etc. Por isso devemos
testemunho, narrado no evangelho de hoje (jo 1,19ss). suspeitar que a pergunta que os enviados dos fariseus, colocam ao

28 29
Batista reflita alguma atualidade para os leitores de Jo também: por gente, preparação da revelação do Natal. Este suspense provoca uma
que batiza ele, se ele não tem valor messiânico? Pois o batismo é alegria «ritenuta», discreta e misteriosa, prenhe de promessa. Por isso
uma realidade messiânica, pelo menos o batismo pelo Espírito (Jl 3, talvez seja interrompida a leitura (que deveria continuar até o v. 34,
lss; cf. At 2,14ss). O quarto Evangelista encena aqui dramaticamente cf. supra) antes de chegar a completar sua mensagem.
a palavra de João, comparando seu batismo em água com o batismo Johan Konings
em espírito que Jesus realiza. Há duas cenas, vv. 24-27 e 29-34, sepa- Porto Alegre, RS
radas pela transição no v. 28. A primeira fala do batismo em água,
como anúncio daquele que vem depois: é o batismo que João adminis-
trava em Betãnia além do Jordão (25-27 e 28). A segunda (vv. 29-34,
que não deveriam ser separados de 1,19-28) revela jesus como o Cor- Tema Principal
deiro que tira o pecado do mundo (29) exatamente nisto, que ele
batiza com o Espírito que permanece sobre ele (v. 33, peculiaridade OS POBRES AGUARDAM UMA NOTICIA DE LIBERTAÇÃO
de Jo). Enquanto em Me 1,4 par o batismo de joão é caracterizado
como batismo de perdão, em Jo 1,26-27 nem mesmo este sentido lhe é
dado; pois só Jesus tira o pecado do mundo (v. 29). O batismo de
João é mero testemunho daquele que vem e que jâ estã, incógnito, no Sugestões para a Homilia
meio do povo. Isto também é de atualidade no fim do século 1, pois,
na comunidade cristã o Messias está no meio do povo, e o povo não Introdução
o conhece (cf. 1,10).
Em 1,24-34, Jo divide em duas cenas as palavras de Me 1,7-8. Dentro de alguns dias estaremos vivendo a alegria da fes-
Fazendo assim, valoriza muito mais seu sentido. Aparece com maior ta do Natal. Há já sinais de festa no ar e nos corações dos
clareza, sobretudo nos vv. 32-34, o específico de jesus. Em Me (1,9-11),
a descida do Espírito sobre Jesus fica ainda separada da pallvra sobre homens. Alguém está para chegar. João Batista nos diz que Ele
o batismo no Espírito (Me 1,8). Em Jo (1,32-34) é dito que Jesus já está no meio dos homens e Isaías falará desse Alguém como
batiza no Espírito somente depois, e em conexão direta com o teste- anunciador de uma boa noticia aos pobres e aos oprimidos. Não
munho do Batista a respeito da descida do Espírito (e a sua perma- chegou ainda. Mas quem é esse Salvador que está para chegar
nência) sobre Jesus. Por outro lado, a palavra sobre o carãter provi-
sório da atividade do Batista (cf. Me 1,7) recebe em Jo (1,26-27) um e que vem trazer uma mensagem de alegria para esse velho
tratamento à parte, destacando assim a figura do humilde servo, que e cansado mundo?
não se importa com a concorrência que o batismo de Jesus lhe faz
(jo 3,25-28, referindo-se expressamente a l,21ss), mas pelo contrário,
se alegra com isto, porque assim se rea1iza sua missão (3,29-30). Corpo
Resumindo podemos dizer: 1) João era, depois do próprio Deus e
a Escritura, a testemunha por excelência de Jesus Cristo. 2) Ele não 1. O Deus que vem liberlar
possui nenhum valor messiânico em si mesmo, apesar das aparências,
pois «a graça e a verdade vieram em Jesus Cristo> (1,17) e é só
acreditando em Jesus que temos a vida eterna (e!. 17,3; 20,31). 3) O Viver é construir sua história. Viver é sair de uma terra
batismo de Jesus é diferente de todos os outros (batismo dos proséli- de limitações e buscar espaços grandes e largos de liberdade.
tos, batismo de João); mas o batismo de João é um testemunho: dele É catar· o Absoluto no traço das coisas que passam e que nos
saem os primeiros discípulos de Jesus (Jo 1,35ss; e!. At 18,25). amarram ao fugidio. Israel fez essa experiência de catar o Ab-
Nós fomos batizados no batismo de jesus. Testemunhamos do valor soluto de muitas maneiras. Um modo particnlarmente especial
único da realidade que Cristo traz presente, por uma vida Wgna deste
batismo? de encontrar-se com Deus foi através da experiência de escra-
vidão-libertação. Há muitos tipos de escravidão descritos nas
2. Lugar na liturgia páginas da Bíblia. Há o Egito com suas falsas seguranças. Há
Babilônia, resultado do pecado e da miséria espiritnal. Há a
O 3° Domingo do Advento é o domingo da alegria pela prox1m1-
dade do Salvador, o antigo domingo de cGaudete>. A 1• leitura insiste escravidão interior desse mesmo povo denunciada pelos profetas.
no Mensageiro da Libertação (do Exílio); o evangelho apresenta João Todas as vezes em que o povo experimentou a libertação ex-
Batista como mensageiro, dentro dos limites que a exegese apontou. terior ou interior soube atribuir esse fato ao braço forte de
Ele não tem valor messiânico em si. Seu testemunho nos leva ao Sal- Dens. Entregue a si mesmo o povo não poderia empreender sua
vadorª O presente evangelho cria um certo «suspense» no conjunto da viagem através do tempo. Deus se lhes apresenta como o Li-
liturgia do Advento: anúncio do «desconhecido» que está no meio da
30 31

t
bertador que não quer ver o povo errar e arruinar-se. O homem tuais mas também toda essa multidão de famintos do saber e
entregue a si mesmo e levado pelo empenho de buscar-se a do alimento, esses algemados pela dominação de uns e de ou-
si mesmo escraviza-se. Somente quando Deus é acolhido pelo tros, esses sem terra, sem nome, sem amanhã, sem esperança.
coração dos homens e quando Ele mesmo intervém começa-se Não podemos fechar nossos olhos à dura realidade da vida de
a realizar a libertação. Esta é a convicção de todos os pobres muitos de nossos contemporâneos. Homens da Igreja, leigos con-
de Javé na linha dos quais se insere Maria, a Mãe do Senhor. victos e corajosos têm procurado colocar em destaque certas situa-
Nessa mesma linha situa-se João, o Batista, o grande «abri- ções dràsticas nas quais vivem operãrios, empregados, homens do
dor» de caminhos para a vinda do Senhor. Somente quando interior, trabalhadores em construções, vendedores de supermer-
Deus se tornar homem e se vestir da carne perecível é que cados. Hã uma opressão que é resultado da conjugação de in-
processarã a mais total e a mais autêntica libertação. teresses de muitos e que não aparece claramente. A vinda de
Cristo, a chegada de Deus no humano deve provocar nesses
corações um movimento de alegria e de esperança. A ação e
2. Os pobres são evangelizados a atuação de muitos cristãos convictos em prol dos direitos do
homem, da divulgação de toda uma série intentos e projetos
Esse Menino que vai nascer se farã o anunciador de uma internacionais de exploração do pequeno chegam como anún-
boa-nova para o mundo. Um dia, numa sinagoga de sua terra, cio de libertação. Uma certa Igreja se coloca ao lado dos mem-
ele se annnciarã Ungido para a missão de abrir os olhos aos bros das comunidades de base e leva-os a questionar suas
cegos, os ouvidos aos surdos e curar as feridas de todos. Es- existências e buscar as razões por não serem ainda agentes da
perar o Natal é esperar a chegada de Alguém que vem annn- história. Muitos desses pobres começam a se levantar. Fazem-
ciar uma possibilidade de sairmos do mundo estreito e taca- me lembrar o campo de ossos secos descrito no livro do pro-
nho de nosso pequeno universo pessoal. Ele pedirã que arrega- feta Ezequiel. Essa multidão quase seca se levanta na força do
lemos os olhos para ver mais além da vingança e do espírito
espírito e da presença de Deus. Os marginalizados, os peca-
de competição. Ele descerrarã, cortinas e horizontes que encanta-
rão nossos olhos nos serão mostrados. Somente aqueles que dores, os pobres deverão sentir nos próximos anos a força da
reconhecem fundamental e radicalmente sua impotência e aque- Igreja que se encarrega de ser portadora de uma mensagem
les que reconhecerem a escravidão e as trevas em que vivem de libertação. ·
quando entregues a si mesmos poderão acolher a chegada do E todos os satisfeitos exteriormente, os que não questio-
Menino. Terminarão para estes as preocupações fundamentais nam sua maneira de viver e de construir seu projeto de exis-
e as angústias sem respostas. Deus mesmo vem para visitar as tência, os que contam com o valor das cifras e com o peso
estalagens dos homens e proporcionar-lhes a libertação. Liber- do dinheiro, os que dominam pisando deveriam também tornar-
tar-se é abrir-se interior e exteriormente para acolher Deus em se pobres por dentro com a chegada de Deus no humano. De-
nós e nas engrenagens do mundo. Nessa Igreja que é a nossa veriam abrir seus corações porque de outra forma não poderão
homens pequenos que cantam a cantigà da verdade sentirão que acolher a boa notícia. ·
suas algemas se quebram. Mulheres rétas e pobres por dentro Hã uma alegria no ar. É tempo de preparação do Natal.
podem dançar de alegria. E o Sermão das Bem-aventuranças é Não bastarã fazer uma sacola de presentes que serã dada aos
vivido. Os fqne choram, os famintos, ()S sedentos, os persegui- pobres. Não serã suficiente fazer um presépio. Essa alegria que
dos por cansa da justiça, os puros verão a chegada da salva- estamos vivendo antecipadamente com i próxima chegada de
ção que vem no rosto de um menino que nasce na pobreza de Deus no humano faz com que tenhamos a coragem de saber
uma gruta. · que o Messias jã veio e estã entre nós e que continua atuando
pelo seu Espírito e pelos braços e empenhos dos cristãos.
3. As engrenagens da libertação
Almir R. Guimarães, O.F.M.
Os cristãos são portadores de uma mensagem de liberta- Petrópolis, RJ
ção para os pobres da terra. Não somente os pobres espiri-
32 33
Hb 1,5; Ap 21,7) e em textos como Is 16,5; 37,35; 55,3; jr 33,14-lô.
Quarto Domingo do Advento 22-26; Ez 34,24; Zc 6,12). ,
Estas intuições teológicas chegam ao seu auge· em textos do Novo
Pistas Exegéticas Testamento como jo 1,14: «0 Verbo se fez carne e armou a sua tend.a
entre nós>; jo 2,21: <0 templo do qual jesus falava era o seu pro-
Primeira Leitura: 2Sm 7,1·5.8b·11.16/1 prio corpo (ressuscitado)»; cf. ]o 4,20-26; !Cor 3,16-17. Em Cristo
todos são assumidos na aliança filial entr7 Deus e os ho1:11ens, . que
cSeu trono está firme para sempre> n'Ele o descendente de Davi por excelência, se tornam Pai e filhos
e m~rada de Deus viva.
Toda a passagem (7,1-16) está moldada em um jogo de palavras. Bibllografla: Os comentários rle van den B o r n e T u r r o (em: JBC); ]. de
V. 5: «Eis o que diz o Senhor: Não és Tu quem me edificará uma v 1 Maison de Davld Malson de Dleu em: A'dS IJ,{,8 (1912) 28-33; X., em:
casa para eu habitar>; v. 11: •O Senhor anuncia-te que Ele quer fazer- Oe~ u14x, (1969-1910) 14--17{ H. A. H o f ir{ e r, artigo bajit", em: TbWzAT, 1
(1972) 629-638.
te uma casaJ>; v~ 16: cTua casa e teu reino estão estabelecidos para
sempre diante de Mim>. Casa significa alternadamente templo, descen- Raul Ruijs, O.F.M.
dência e dinastia. Todo este jogo de palavras é usado para ensinar, Petrópolis, RJ
de um lado, que Deus é totalmente independente da dinastia davldica e,
de outro lado, que a dinastia davídica, a partir de seu fundador (cf. Segunda Leitura: Rm 16,25·27
vv. 8-91), é totalmente deptndente de Deus. Deus não precisa de uma
casa ou de um templo para estar presente entre seu povo ou para cO mistério agora manifestado»
manifestar esta presença.· Sua ação na história não está ligada a um
lugar santo e não é de nenhum modo geograficamente limitada. Um \ O texto é urna doxologia, isto é, uma concl~o litúrgica, e i;or
templo não servirã a titulo nenhum de garantia da presença de Deus, isso considerado por muitos como não sendo paubno, mas. tendo sido
nem de meio de pressão para obrigá-lo a agir (cf. !Rs 8,27; Is 66,lss; acrescentado depois de escrita a carta. De qualquer maneira o texto
At 7,48). Para tirar qualquer dúvida ou equivoco a respeito alegam- reflete o pensamento paulino expresso na missiva, retomando os temas
se alguns fatos da história de salvação que possam evidenciar esta essenciais e como tal deve ser considerado. ,
doutrina: a libertação do Egito (v. 6), a posse da terra prometida (v. Num~ frase solene, mas de ritmo quebr.ad.!' e conteúdo. complexo,
10), o tempo dos juízes (v. 11) e, ultimamente, a promoção ao poder Paulo louva a Deus que confirmará os cr1staos na doutr~na - no
do próprio Davi. A intenção das referências ao passado desvenda-se Evangelho mensagem de Cristo - anunciada a todas as na_çoes. O que
nesta frase, que diz respeito à ascensão de Davi: <Eis o que diz o Deus tinh~ a comunicar aos homens já fora reve1a~o parcialmente pe-
Senhor todo-poderoso: Eu tirei-te das pastagens onde guardavas tuas los profetas, mas só em Cristo tornou-se revelaçao total (Ef 3,5~;
ovelhas, para fazer de ti o chefe do meu povo Jsrael::t>. Em outras pa- Hb 1 J-2). Trata-se de uma revelação nova, enquanto completa e mais
lavras: Davi chegou ao poder por pura graça divina. E para sublinhar prof~da, mas não de ruptura no plano divino. O desígnio ~e Deus
mais, que a construção de um templo não diminui em nada a inde- é sempre o mesmo, salvar todos os homens (cf.!Tm 2,4), pms Deus
pendência ou transcendência de Deus, nem o caráter gratuito de sua é fiel Essa realidade Paulo chama de MISTÉRIO. O termo é comum
presença e a liberalidade de sua ação salvífica, nega-se a proposta à filo~ofia popular, n~ entanto a terminologia paulina encont~a respaldo
de Davi e comuta-se a mesma em uma nova prova da graça divina: na apocalíptica judaica (B]). Mistério corresponde à Sabedoria de Deus
a de fazer para Davi uma casa, isto é, de estabelecer a dinastia da- (v. 27; JCor 2,7; Ef 3,9; CI 2,2-3) escondida e agora revelada (v. 25;
vídica.. Para este fim Deus «compromete-se~ por o que se chama a !Cor 2,7.IO; Ef 3,5.9s; CI 1,26). .
«aliança davldica. (cf. 2SJD 23,5; SI 88,35). Esta aliança representa um Agora, este mistério de Deus, isto é, sua vo~tade salvífica pa~a
ponto muito importante na história de salvação. Esta é, em grande par- com judeus e gentios, que sendo revelada e comu~1cada revela a pro-
te, , uma história de eleições, confirmadas por alianças. Conhecem-se a pria pessoa de Deus em Cri~to, tornou-s~ .c?nhec1do dos homens. Os
eleição e a aliança com Abraão, que marca o início da história de homens poderão então andar a luz do rn1steno revelado por Deus em.
salvação. A libertação do Egito e a aliança com as tribos de Israel Cristo, isto é, viver na esperança-certeza de que Deus quer salv~
no Sinai é_ o segundo grande evento da história de salvação. O ter- todos os homens, viver na fé, que sendo res_posta ao i::van.gelho enga1:i
ceiro, que marcará profundamente o futuro modo de agir de Deus na
0 homem todo e por isso é sempre obediente, obed1ênc1a 9ue é fe.
história humana, é a eleição e a aliança com a easa de Davi. Nesta Ela exige que o homem se submeta e confo.rm~ su~ vontad~ a vontad~
ocasião, a fórmula da aliança cEu serei o vosso Deus e vós sereis o de Deus que se revela como verdadeiro, m1ser1cord1oso e fiel. É a fe
meu povo> (cf. Ex 6,7; Lv 26,12; 2Sm 7,24; Jr 7,23; 24,7; 31,33; 32, que, renovando o homem, o faz obedecer à vontade de Deus (cf.
38; Ez 34,24.30; 36,28; :>1,27; Os 1,9; 2,25; . Zc 13,9; !Pd 2,10; Ap Rm 6,15-20 e 10,9). . .
21,3) é modificada e especificada em favor de Davi e da dinastia da- Os homens vivem um momento de decisão. Agora Deus se man1..
vfdica, tornando-se: «Eu serei para ele um pai, e ele será para mim festa e exige a obediência da fé. O agora do v. 26 é do mesmo teor
um filho> (v. 14). Esta «aliança davldica. é uma das fontes da pos- do de AI 17,30, onde Paulo convida os habit~tes_ de Atei!ª~ _à co!'·
terior esperança messiânica como ela se expressa em 1Cor 17,13; SI versão. Diante do mistério revelado, só há acedaçao ou re1e1çao, nao
2,7; 88,27-30, textos onde se usa a fórmula da aliança especificada (cf.
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34

i
hã meio-termo. E a decisão deve ser tomada agora, não pode ser de Deus para com Israel, Seu servo (Lc 1,54) e Seu povo, que Ele
deixada para amanhã. Cristo, chave da história e do destino dos ho- libertou do Egito e conduziu à Terra Prometida (2Sm 7,6.23). A pre-
mens, coloca todo e cada homem -em crise, quando se tem de se de- sença de Deus no meio do Seu povo sob a tenda e sob um taberná-
cidir a favor ou contra _ele. Na comunidade vive-se um momento de culo (2Sm 7,6) é agora ultrapassada pela presença de Deus em Maria,
decisão, mas também de alegria por saber-se que nela, naquele mo- indicada nas palavras: <0 Senhor está contigo» (1,28) e «a força do
mento - agora - Deus salva. A comunidade sente-se como um sinal Altíssimo te cobrirá com a Sua sombra» (l,35; vê-se, nesta formula-
de salvação entre os homens. ção da presença divina, uma alusão à tradução grega .de textos como
Na conclusão da doxologia, em paralelismo com o hino à Sabe- Ex 40,34-35; Nm 9,18-22; 2Cr 7,2).
doria de Deus de 11,33-36, rende-se glória a Deus como sabedoria su- 5. A saudação a Maria <Alegra-te, cheia de graça> (Lc 1,28) é
prema e fonte de toda a sabedoria. A comunidade adota assim o estilo interpretada como alusão ao início das profecias messiânicas de Sf
de bênçãos e doxologias do Antigo Testamento, chamando, porém, Deus 3,14-17; Jl 2,21-27 e Zc 9,9-10. A saudação <O Senhor estâ contigo>
de Pai e colocando Jesus Cristo como único mediador da glória e ação (Lc 1,28) parece o eco e o cumprimento das expectativas da pre-
de graças dadas pelos homens a Deus. sença messiânica de Deus entre Seu povo, expressas nestas mesmas
Bibliografia:. C a n t 1 n a n t J., Les Epitres de St. Paul expliquées, Paris 1970; profecias: <0 rei de Israel que é o Senhor estâ no meio de ti> (SI
B ar t h K., The Epistle to the romans, London 1968. 3,15); cSabereis, então, que estou no meio de Israel> (Jl 2,27); «Eis
Carlos Alberto da Costa Silva, S. C.J. que vem a ti o teu rei» (Zc 9,9).
Paulista, PE 6. A questão da historicidade da narração da anunciação é hoje
em dia muito discutida. Tenta-se resolver esta questão difícil pelo es-
Terceira Leitura: Lc 1,26-38 tudo do gênero literârio. A solução haverei de respeitar um princípio
básico do modo de agir de Deus, expresso em palavras como esta: «0
«Eis aqui a serva do Senhor» Senhor Javé nada faz sem revelar o seu segredo aos seus servos> (Am
3,7). O fato da concepção virginal supõe que Maria tenha sido inicia-
1. O evento narrado em Lc 1,26-38 é proposto como a realização da no mistério do fato de um modo e em uma linguagem acessíveis
perfeita e definitiva da promessa feita a Davi em 2Sm 7 e de muitas a ela. A linguagem mais adequada tem sido, sem dúvida, a do An-
outras profecias messiânicas. Esta ligação entre a promessa e sua rea- tigo Testamento, isto é, aquela que também Lucas usou para relatar
lização é sugerida por muitas citações implícitas e alusões a textos do e interpretar o fato.
Antigo Testamento. Alguns deles aparecem no comentário que se segue. O modo de comunicação deve ter sido o de um diâlogo com pro- .,
2. Parece-nos .que Lucas, em 1,26-58, segillu também a estrutura posta e resposta, que deixasse margem ·para uma resposta livre, para
literária de 2Sm 7,1-29. Existe nos dois textos uma subdivisão quase urna atitude de fé e de entrega, porque Deus não age na história de
igual em duas partes. - 2Sm 2,1-17 contém a promessa do prufeia salvação senão por meio de seres humanos livres que n'Ele crêem e se
Nalan a Davi, Lc 1,26-38 a anunciação do anjo Gabriel a Maria (com- colocam confiadamente a Seu serviço.
parem-se especialmente 2Sm 7,12s.16 e Lc 1,32-33). - 2Sm 7,18-29
Bibliografia: A mesma de A 1\Jesa da Palavra, Ano B, p. liOI; R. L a u r e n ti n,
relata a reação de Davi à promessa, Lc 1,39-56 a reação de Maria à Structure et Thiiologie de Luc 1-11, 1964; G. Lo h 1 i n k, A Anunciação do Nascimento
anunciação. - Ambas as reações têm a forma literária de uma ação de jesus, em: ld., Agora enteni.lo a Bíblia. Para você enteni.ler a Critica das Formas,
de gratas e J.oJIVação em que se -celebram as grandes coisas ou mara- S. Paulo 1978, p. 110-121.
vilhas que Deus fez seja a Davi (2Sm 7,18b-21.25-29), seja a Maria Raul Ruijs, 0.F.M.
(Lc 1,46-49), seja ao Povo e/eito (2Sm 7,23-24; Lc 1,54-55).
3. A afirmação básica das duas partes, tanto de 2Sm 7 como de
Petrópolis, RJ 1
J-i
Lc 1,26-56, diz respeito 'à gratuidade absoluta da ação de Deus ao
escolher seu servo Davi e sua serva Maria e em realizar suas ma- Tema Principal !

ravilhas. N-a promessa de Natan, Davi é lembrado de que Deus o ti-


rou das pastagens onde cuidou do rebanho (2Sm 7,8). Davi começa MARIA, MODELO DE FÉ, MODELO PARA TODO CRISTÃO
sua prece reconhecendo:· «Quem sou eu, Senhor, e quem é a minha
familia, para que me tenhais trazido até aqui?» (2Sm 7,18). O anjo Sugestões para a Homilia
Gabriel é enviado a Nazaré, aldeia ·sem importância no interior da Ga-
liléia (cf. Jo 1,48; Me 6,lss), a uma moça que se admira demais da Introdução
escolha de Deus. Por isso ela diz na sua prece: «porque Ele se lem-
brou de mim, Sua humilde serva» (Lc 1,48). O evangelho da anunciação (Lc 1,26-38) nos permite dois
4. Natan e Gabriel situam as suas mensagens nas grandes pers- tipos de reflexão: um acentuando as grandezas de Maria, a
pectivas da história da salvação. Davi e Maria fazem o mesmo nas
suas preces. Este contexto da história da Salvação revela a importância da cheia de graça, a mãe de Deus, a esposa do Espírito Santo,
promessa a Davi e da concepção virginal de Maria. Faz-se uma re- a figura feminina central na história da Salvação: outro su-
ferência às promessas feitas aos patriarcas (Lc 1,55), à misericórdia blinhando a pequenez de Maria, a serva do Senhor, a mulher
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que se perturba, que tem de crer. Ambas as perspectivas são gem conceberá; a força geradora será o Espírito Santo; o filho
verdadeiras à condição de serem sempre pensadas juntas: aque- que nascer, Jesus, será por um lado seu filho, mas também
la que é a serva humilde, mulher simples do povo é também Filho do Altíssimo; será o Messias cujo reino não terá fim.
aquela que é a plena de graça, a bendita entre as mulheres e Como crer em tudo isto? Não seria alucinação? Onde estão os
a mãe do Altíssimo. Hoje em dia somos mais sensiveis aos sinais que tiram a dúvida? Poderá Deus fazer tais e tantas ma-
traços simples e humanos de Maria porque estamos interessados ravilhas numa simples mulher do povo, vivendo na província,
numa piedade mariana baseada não tanto na exaltação e no no anonimato de toda a história? Maria se perturba (Lc 1,29)
culto mas na imitação e seguimento. Nesta perspectiva quere- e tem medo (v. 30). Mas não duvida. Apenas pergunta pelo
mos meditar na fé de Maria. Aqui ela aparece como compa- como se fará isso (Lc 1,34). Ela ouve promessas, escuta a
nheira em nossa caminhada e nos serve de modelo luminoso. linguagem do futuro, aceita coisas que não se vêem. E ela creu,
pois para Deus nada é impossível (Lc 1,37). Não consiste exa-
tamente nisto a fé, como a epístola aos Hebreus o explica tão
Corpo bem? (Hb 11, 1) : "ª fé é a antecipação das coisas que se es-
peram, a prova das realidades que não se vêem».
t. Maria primeiro concebeu no espirito, depois no corpo Maria creu sem dar-se conta de toda a profundidade da-
Ao contemplarmos Maria, corremos o risco de imaginar que quilo que ouvia; certamente possui uma consciência real de sua
nela tudo era fácil e transpareute. Ela sabia de tudo, de ser a maternidade ligada ao Espírito Santo, dá-se conta de que a sal-
Mãe de Deus, de que o Menino Jesus era o Messias e o Filho vação dos homens está vinculada ao filho que começa a nascer
do Altíssimo, de que ela era a bendita entre todas as mulhe- em seu seio, mas de forma imprecisa e obscura. A vida vai
res. Os evangelhos não nos transmitem semelhante idilio. An- tornando manifesto aquilo que lhe era confuso. É próprio da
tes pelo contrário, mostram-nos Maria, andando na obscuridade fé viver no lusco-fusco, criar luz na medida em que acolhe e
da fé, nem sempr~ entendendo os caminhos misteriosos de se entrega ao plano de Deus. Este foi o caminho de Maria;
Deus. São Lucas nos conserva o testemunho de Isabel acerca é o caminho de todos os homens de fé. A fé convive com a
de Maria: «feliz aquela que creu» (Lc 1,45) e aquele dele perplexidade mas não pode subsistir com a dúvida. Deve-se su-
mesmo ao comentar as palavras de Jesus após o reencontro, perar a dúvida. Zacarias duvidou da palavra do anjo: «Como
por ocasião da perda na peregrinação a Jerusalém - «Não terei certeza de que Isabel, já velha, vai conceber?» (Lc 1,18).
devo tomar conta das coisas que são do meu Pai?» (Lc 2,49) É punido, pois o anjo lhe diz: «Porque não creste, ficarás mu-
- : «José e Maria não compreenderam o que ele lhes dissera» do» (Lc 1,20). Maria creu e recebeu o louvor de Isabel quando
(Lc 2,50). Estes testemunhos nos revelam a real grandeza de foi visitada por Maria: «Feliz porque tiveste fé .. "' (Lc 1,45).
Maria: sua vida de fé, de entrega humilde e confiante aos
designios de Deus. Esta atitude de Maria aproxima-a de nos- 2. Crer é dizer: Eis-me aqui, faça-se/
sa própria vida que é um andar no sofrimento da obscuridade
que se desfaz somente mediante a fé. Duas coisas transparecem Que significa crer? Olhando para o exemplo de Maria po-
de Maria nos evangelhos: sua vida de fé que não entende tudo demos discernir três pontos fundamentais. Em primeiro lugar,
mas confia (Lc 1,38) e sua fé que cresce mediante a reflexão crer é um confiar e um confiar-se a um outro. Quem sabe, vê,
e a meditação (Lc 1,29; 2,19). O evangelho de hoje é explí- conhece e anda na luz não precisa crer. Crer significa confiar
cito: «Maria refletia no que poderia significar a saudação (do apesar da obscuridade; acolher apesar de não ver claro por-
anjo)» (Lc 1,29). E após esta reflexão, depois de ter ouvido que é Deus quem está falando; entregar-se e arriscar na espe-
as palavras (Lc 1,29), ela superou a perturbação inicial e dis- rança de não ser defraudado pelo outro. É uma atitude que
se: faça-se! .Como diziam os Santos Padres: primeiro Maria exige pobreza interior, desapego das próprias seguranças, li-
concebeu em .seu coração, depois em seu seio; primeiro con- berdade para o novo e o inaudito. Em segundo lugar, crer sig-
cebeu no espírito mediante a fé, depois no corpo. nifica um abrir-se aos planos e à verdade de um outro. Não
A anunciação mostra a dinâmica de fé em Maria. O anjo basta confiar. Importa assumir a mensagem do outro, embora
comunica coisas inauditas: ela é cheia de graça; embora vir• não se veja a lógica e a transparência desta mensagem. Maria,

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por exemplo, acolhe o conteúdo das palavras do anjo: de ser Natal: Vigília
virgem e mãe, de o Filho ser Deus, Messias e Salvador. A fé
implica um abrir-se a um Maior que_ tem os segredos de todos Pistas Exegéticas
os caminhos e sabe melhor o sentido impenetrável que Deus Primeira Leitura: Is 62,1·5
' confere ao caminhar humano. Crer é poder dizer fiai/ faça-se!
não conforme a minha compreensão e os meus desejos, mas cNão me ralarei. . . até que a justiça brilhe como a aurora>
1
conforme a palavra e os desígnios do Altíssimo. A unidade literária a que pertencem vv. 1-5 vai até v. 9 inclusive.
Por fim, crer significa obedecer. Obedecer é oferecer-se para Não seria totalmente sem sentido ler toda a profecia. Pois o que a
primeira parte (vv. 1-7) diz em termos abstratos (justiça; salvação; vitó-
realizar os planos do outro; obedecer é ouvir a palavra do outro, ria), poéticos (as esponsálias entre Deus e Seu pr>Vo) e simbólicos ( co-
acatá-la e cumpri-la. Foi o que fez Maria. Ela simplesmente roa; diadema) e em imagens bonitas e até comoventes (noivado), a
diz: Eis-me aqui (Lc 1,38) ! Crer e obedecer é aceitar entrar segunda parte (vv. 8-9) transpõe em termos diretos. Lendo a primeira
no des!gnio de Deus, estar pronto para realizá-lo, embora não parte (vv. 1·7) pergunta-se: o que é que significa justiça, salvação, vi-
se vejam todos os seus passos. É ser servo do Senhor, como o ex- tória (vv. 1-2), felicidade (v. 5), glória (v. 7) em concreto? O que
corresponde na realidade a esta linguagem abstrata e poética? Ou, pior
• primiu excelentemente Maria (Lc 1,38). Ser servo de Deus não ainda, não se pergunta isto, pensando que já se saiba o que aqueles
" significa ser escravo; Deus não quer escravos, mas livres. Por termos e aquela linguagem poética significam. Neste caso, em vez de
isso, não invadiu o seio de Maria; pediu licença e ofereceu sua interpretar devidamente o texto, começa-se - na exegese, na homi-
proposta de salvação. Maria responde na liberdade. Ser servo lia ou no circulo bíblico - a expor, desenvolver e remastigar idéias
significa prontificar-se a realizar úma missão que é de grandeza e conceitos próprios - pré-conceitos - de justiça, salvação, felicidade,
!' etc., que talvez reflitam uma certa carga de conceitos tradicionais aéreos,
i e dignidade. Maria fez-se serva, no sentido de assumir a dig-
nificante tarefa de oferecer a carne humana ao Verbo eterno;
mas não têm contato com o texto bíblico nem com a realidade que
este interpreta.
1
. de ser o h1gar onde Ele se enraizou no meio de nós e começou É importante prestar atenção àqueles detalhes no texto bíblico em
' a nos libertar. que transparece a realidade e através dos quais se tem contato com
Maria, por sua palavra e por suas atifüdes, fez-se modelo ela. Pode-se dizer que, no caso de Is 62,1·9, encontram-se estes deta-
para todos os que crêem. O Antigo Testamento começa com a lhes em vv. 4a.8-9:
fé de Abraão (Gn 15,6): «esperando contra toda esperança, e. . . não mais serás chamada a desamparada,
ele creu e tornou-se assim pai de uma multidão de povos» (Rm nem tua terra a abandonada ... > (v. 4a)
cNão deixarei mais teus inimigos alimentarem..se de teu trigo,
4, 18). O Novo Testamento começa com a fé de Maria. Ela é nem os estrangeiros beberem o vinho, produto de teu trabalho.
a mãe e o exemplo de todos os membros da Nova Aliança, Aqueles que colherem o trigo o comerão / louvando o Senhor
assim como Abraão foi pai e exemplo dos crentes de Israel. aqueles que vindimarem beberão o vinho / no átrio do meu san-
Somente nela a Igreja, comunidade dos fiéis, se realiza plena- tnário> (vv. 8-9).
mente, porque sua fé foi completa e perfeita. Crendo como ela, Em v. 4a - a parle negativa dos contrastes que segnem em v.
se constrói a Igreja e a fé traz novamente o Verbo entre os 4b - escuta-se ainda um eco do gênero literário das lamentações so·
homens para iluminar e libertar. bre a jerusalém destruída e sua população desterrada pelos babilô-
Leonardo Boi!, O.F.M. nios. O profeta deduziu dos sinais dos tempos, isto é, do soerguimento
Petrõpolis, RJ de Ciro, rei da Pérsia, em detrimento do império babilônico, que para
o povo de Deus as coisas iriam mudar. Vv. 1-7 são a verbalização
poética ou a transposição Jingü!stica da certeza desta esperança; vv.
8-9 são a transposição Jingillstica do conteúdo ou do objeto desta es-
perança, em v. 8 - como em v. 4a - em forma negativa e em v. 9
- como em v, 4b - em forma positiva. A injustiça, percebe-se aqui,
é o roubo do produto do trabalho pelos imperialistas estrangeiros. A
justiça, a salvação, a vitória, a fellcldude ou a concretização histõriea
do amor de Deus pelo Seu povo consiste e se revela no pleno gozo
do produto do trabalho.
Em termos de análise estillstica, é muito significativo que o au-
tor. enriquece a repetição positiva (em v. 9) da situação negativa des-
' crita em v. 8 com os acréscimos: louvando o Senhor / no dtrio do meu
1

1 40 41

'1
judeus de caso pensado. O verbo grego <égagen» é suscetível de duas
santuário. A euforia sobre a felicidade jã prevalece tanto na mente do significações: «suscitou» e «ressuscitoU». Paulo serve-se da anfibologia
autor que em v. 8 já não se lembra do gemido do povo sob o jugo na sua argumentação: a Promessa se realiza na ressurreição de Je-
da opressão (em v. 4a ainda escuta-se um eco desta lamentação!). Em sus (v. 32s), quando se constituiu Salvador (cf. Rm 5,9s; Fl 3,20; Gl
?· 9 _o Io.uvor. do Senhor no Seu santuário é o eco da reação do povo 3,29). No v. 22 o verbo tem senHdo de «suscitar», ao passo que no
!' açao s,'.'1vlflca .de .Deus. Es!e louvor supõe a salvação do povo e a v. 30 significa «ressuscitar». Entretanto, no v. 23 assume os dois sen-
1mplantaçao da JUStiça. Convidar o povo castigado pelas injustiças e tidos. Davi é o tipo do .Messias e sua elevação ao trono antecipa ou
pelo roub? . do pro.dut~ de seu trabalh~ a _celebrações litúrgicas solenes prefigura a ressurreição de jesus e sua ascensão ao céu... Os prosé-
em santuar1os nac1onrus certamente teria sido para os hagiógrafos um litos e pagãos presentes encheram-se de alegria, glorificando a Pala-
contr'!-senso de mau gosto. Exaltar o matrimônio perfeito como reflexo vra de Deus, que lhes oferecia salvação, e fazendo um ato de fé (At
da ahança de De1;15_ com ~ Seu poyo, a partir de v. 5, esquecendo-se 13,48).
d~. qu~ es~a perfeiçao supoe o mínimo necessário para sobreviver, sig- Pauto explicitou que o Deus de Israel se revelou como quem dirige
n1f1car1a distorcer o texto sagrado. a história e, não obstante as limitações humanas, o conduz ao portador
Raul Ruijs, O.F.M. da salvação, Jesus Cristo. Abertamente coloca-se Paulo na história da
. Petrópolis, RJ salvação, dentro da qual sente-se ligado a seus ouvintes judeus. Partindo
desta comunhão, procura despertar a atenção deles para o «salvador
Jesus», realizador da Promessa. No contexto subseqüente, Paulo demons-

l
Seguoda Leitura: At 13,16-17.22-25 tra a rnessianidade de Jesus Cristo pela sua ressurreição, predita pela
«Da descendência de Davi Deus fez sair o Salvador fe= Escritura (Sl 2,7; 15,10; Is 55,3) e atestada pelos Apóstolos. Como
conseqüência, surge séria advertência: faz-se mister crer n'Ele para ser
. Paulo es!â _em Antioquia de Pisidia, na sinagoga judaica, onde ou- justificado (Hab 1,5; Rm 3,21-26; 11,7-27; Gl 3,11; lTs 2,16).
vm,_ como cnstao, as leituras da Lei (parashá) e dos Profetas (haph- Observe-se que Paulo, nas Cartas, nunca alude a João Batista com
tara) daquele sábado, quando lhe foi oferecida a palavra (vv. 14s). seu batismo de penitência. Lucas, como João, dá-lhe grande realce.
Pr~ocupava-o so~remaneira a salvação de seu povo, mais do que a Imitando Estêvão, omite ao longo dos séculos o que não vem ao caso.
s_ohdanedade n_ac1onal. Sabia como, por experiência, no passado resis- Apressa-se em chegar à realização da promessa, passando de Davi,
tira ao .c~nhectmento e à f.é em jesus ·Cristo, extremamente zeloso pe- tipo do Messias, a João Batista, seu precurso,r, cuja fama já havia
las trad1~oes pater.nas (Gl 1,14). Agora, porém, testemunha aos judeus atravessado as fronteiras. Aduz o testemunho joanino relativo ao Cristo,
a salvaçao em Cristo jesus, entende as Escrituras de outro modo (cf. por sinal semelhante ao dos Evangelhos (cf. Jo 1,27ss; Lc 3,16; Me
2Cor 3,6ss). Apesar do ambiente externo israelita, o Apóstolo interior- 1,7; Mt 3,11), como um argumento de peso: <não sou eu o Messias .. .
~e!lte sente bem outra realidade. Aproveitou a oportunidade para di- virá depois de mim ... será muito maior ... batizará no Espírito .. .
rigir-lhes alguma exortação (v. 16). O «sinal ~om a mão (erguida)~ fará justiça e salvará (Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do
1 era metáfora hebraica para denominar o poder de Deus. Pelo contexto
s~be:-se que havia .ouvintes israelitas, prosélitos (já circuncidados) ~
mundo) ... importa que Ele eresça e eu diminua ... ».
" ~ª?:JU~eus;_ estes cnam no verdadeiro Deus e simpatizavam com a re-
Blbllograjla: K fi r z 1 n g e r, Josef, Atos dos Apóstolos (trad. de Irene e José
Któh), Vo-zes. Petrópolis 1973: Turra d o, Loren-zo, Hechos de tos Apóstoles (Bi·
bg1ao 1uda1ca, aguardando a salvação. O auditório não podia ser me- biia de Sa.lamaoca. VI), BAC/Madrld 1965; L e a 1, Juan, Hechos de Jos Apóstoles
lhor, já que. J".a?lo sentia-se_ enviado para os gentios (At 13,46s). Exa- (La Sagrada BscrJtura, NT. JJ), BAC/Madrid 1963.
r«;>u _?reve h~stona da salvaçao em três seções, balizadas pelos vocativos Matheus F. Giuliani, S.A.C.
«Irmaos», «filhos de 1sraeb e «tementes a Deus~ - corno o haviam feito Santa Maria, RS
Estêvão diante do Sinédrio (At 7,2-53; 1' seção) e Pedro no dia de
Pentecostes (At 2,14ss; 2' e 3• seção).
Terceira Leitura: Mt 1,1-25
É o primeiro discurso de Paulo que Lucas nos eonservou · bas-
tant~ extenso, pareceria ser um discurso-modelo, resumido, da pr~gação «]osé, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher,
pauhna aos judeus. O exórdio só podia agradar aos ouvintes ainda pois o que nela foi gerado vem do E~pirito Santo»
mais que o Apóstolo omitira de acusá-los de ingratidão com~ o fez
Estêvão (At 7,5lss). A leitura litúrgica aduz apenas a Primeira parte, Mateus inicia o seu evangelho com a apresentação da genealogia
onde ele fez um retrospecto dos fatos salvíficos em favor do Povo (1,1-17) e do nascimento de Jesus (1,18-25), passagens que fazem par-
E_Jei:o~ libert?do da escravidão do Egito (cf. Ex). Apresentou a linha
te de um contexto mais vasto, o assim chamado «Evangelho da Infân-
histor1co-~alvd1ca qu~ conduz ao verdadeiro salvador, jesus, passando
cia» (Mt 1-2 com seu paralelo em Lc 1-2). Tal titulo conferido a estes
por Abraao, por Moisés, por Josué, pelos Juízes por Saul e Davi ehe- dois capítulos (por J. Daniélou, P. Benoit, X. Léon-Dufour, D. Stanley)
gando até João Batista: Saul, _rej~itado por su; infidelidade, é ~agem se deve ao fato de encontrarmos aqui a síntese de todo o Evangelho,
do Israel de dura ce~iz. Dav1, fiel, chamem segundo o meu coração, uma antevisão da rejeição de Jesus pelos judeus e da admissão dos
que fará todas as mmhas vontades» (v. 22) é figura típica do Mes- gentios no Reino, um pré-anúncio da paixão e morte de Cristo.
sias (cf. JSm 13,14; SI 88,21; Is 44,28). O primeiro evangelista, conformando·se ao uso oriental,. começa a
sua história pela genealogia do personagem principal. Genealogia seme-
1 A história ·pré-cristã patenteia-se como passageira e mutável. A Pro-
messa do Salvador, descendente de Davi (v. 23), é apresentada aos
lhante se encontra em Lc 3,23-38, com as seguintes diferenças: Mateus

" 42
43

l'
,.

cita 42 nomes, Lucas 77; Mateus remonta a sua genealogia até Abraão, As listas genealógicas, tão freqüentes na Bíblia C,Gn ~; 10; 36; l~r
o pai dos crentes, Lucas a remonta até Adão, o primeiro homem; o 1-9) contêm ainda um outro ensinamento: a predominância do conceito
primeiro evangelista apresenta a sua lista de nomes em ordem descen- da ~ornunidade sobre o conceito do indivíduo. O indivíduo conta apenas
dente (de Abraão até o Cristo), o terceiro evangelista em ordem as- corno um elo na totalidade do povo. Ele entra em contat~ .com Deus
cendente (de Jesus até Adão). tornando-se membro do povo da aliança. Ele se faz participante das
1 O autor do primeiro evangelho divide a sua genealogia em três
ciclos de quatorze gerações correspondentes a -três etapas importantes
promessas divinas se inserindo na totalidade 1 do grupo .. E. Deus, por
sua vez, estabelece a sua aliança com um povo, pro~ete f1~el1?~de a ~m
.1 da história de Israel: de Abraão até Davi, de Salomão até o exifo, do povo, guia e defende o seu povo. No mundo bíblico, o md1v1duo. i:1~e
firmemente enquadrado em seu povo. Quando ele se torna sohtar10
1 exilio até o Cristo.
(exceção feita de um caso de eleição), ~lgo anormal o~ m_esn;~ amea-
A primeira vista, a leitura desta 011 outras genealogias parece árida çador acontece, tanto assim que no hebra.1co ? termo ~so». s1gn1f1ca nor-
e pouco instrutiva. E no entanto, quanta riqueza elas contêm. Atra- malmente miséria ou calamidade. Este pr-1n.cíp10 de sol.1dar1edade se ma-
i vés dela, Mateus vincula o Cristo com toda a tradição histórica véte- nifesta em cada página da Sagrada Escr_itura, em viyo .contraste com
. ro-testamentária. O Cristo é o ponto rlefinitivo de toda a história da
'
salvação que inicia exatamente com Abraão (Gn 12-25). No Cristo o 0 individualismo, o egocentrismo ou. o_:; s:stemas total1tá~1os do mundo
ocidental. Através do batismo, o cr1stao se torna tambe~ membro _de
passado se realiza e o plano divino chega à sua plenitude. No Cristo, uma comunidade, a Igreja. Somente enquadrado na comun1dad~ . e apoia-
a história do povo eleito encontra o seu sentido e coroação. do e inspirado por ela, poderá ele viver a mensa~~~ evangel1ca. _
Com efeito, a partir de Abraão a história, ioda ela, se volta para o O relato do nascimento de jesus (1,18-25) m1cia com expres~ao
futuro, para a realização das promessas. Ela obtém um objetivo, uma idêntica ao da lista genealógica: «A gênese de Jesus aconte~eu asstm»-
finalidade: a posteridade, a terra, a descendência. Mateus, escrevendo (2 18) Isto significa que o evangelista estabelece um paralehsmo entri;
1 1
;.1
como o faz para judeu-cristãos, quer sublinhar esta continuidade e di.. 1 l-17 · e 1,18-25. Como notou A. Voegtle nós nos confrontamos aqui
i reção. O Cristo é para ele o princípio e o fim da história. Nele o pas- c~m duas partes da mesma argumentação. Mateus desenvolve os mes-
sado recebe o seu significado. Ele é o ponto para o qual marcha toda
'' a história do povo eleito. E mais, para o autor do primeiro evangeJho,
mos temas que já apresentara em 1,1-~7. . .
Observa-se, de imediato, que a figura pr1nc1pal do rel~to nao ~
_ •

" o Deus bíblico não é o Deus dos filósofos, a força primordial ou a Maria (como em Lc 1,26-38), mas José, descendente de Abraao e Davi.
causa primeira das coisas, mas o Deus de Abraão, Isaac e jacó, o É a ele que o anjo aparece quatro vezes (qiO; 2,13; _2,19 e 2,~). O
Deus que irrompe na história e a conduz ao seu destino, aquele que anúncio do nascimento é feito a José (1,20.:21)! e nao a M~ria (Lc
realiza a salvação por meios desconcertantes à mente humana. 1 3()..33). Este anúncio tem lugar após a concepçao (1,18~, e nao antes
Esta continuidade com todo o Antigo Testamento é uma das ten- dela (Lc 1,31). O que significa esta mudança ~e perspectivas?
dências marcantes do primeiro evangelho. Entre os evangelistas é Ma- Mateus acentua a continuidade entre o Ant.1go e o No_vo Testa1!1e~t?,
teus quem mais freqüentemente cita o Antigo Testamento (43 vezes) continuidade garantida através de José. A inserção do Cristo na h1stor1a
ou alude a ele (130 vezes). Para exprimir este tema dil continuidade, de seu povo é assegurada por José, muit~. embora ele nada t~nha a ver
ele emprega Onze vezes a fórmula introdutória «a fim de que se cum- com 0 fato da encarnação, pensamento Jª express~ no yers1culo 16 e
prisse ... » (1,22; 2,5; 2,15; 2,17; 2,23; etc.). Para Mateus, Jesus é o retomado no versículo 25: «Ele não a conheceu ate. o dia. em que ela
Novo Moisés e a comunidade por ele fundada é o Novo Israel.
. Em Mateus, porém, o Cristo não é apenas o cumprimento das Es-
deu à luz um filho». Ao mesmo tempo, o evan~elista afirma tem:i º.
da descontinuidade: Jesus nasce por intervenção direta .de Deus, isto e,
crituras. Ele mar~a também um novo começo. As palavras iniciais do por obra do Espírito Santo (1,20: <pois ~ que !'".!~ f01 gerado vem do
evangelho <livro da gênese de Jesus Cristo» aludem a Gn 5,1 («Este é Espírito Santo»). O Cristo é o Novo Adao, o 1n1c10 de uma nova hu-
o livro da gênese de Adão»). Desta forma, o primeiro evangelista es- manidade. Em resumo, Jesus é relaci?nado. _com todo o passado do
tabelece implicitamente um paralelismo entre a criação de Adão e a povo eleito e, ao mesmo tem~o, Ele e o. F·d~o de Deus. . .._
origem de Jesus (Lc 3,38). O Cristo é o Novo Adão. Como Adão Esta breve exposição exclui a tese rac~onahsta que nega ~ p_oss1b1li
marcou o começo da humanidade, assim o Cristo é o inicio de uma dade de uma intervenção divina na hist?r1.a: .Tal tipo ~e ob3e~ao con-
nova humanidade. Como Adão foi obra direta de Deus, assim o Cristo traria todo o conjunto da mensagem b1bhca. Ela exclm lambem q~al­
não possui outro Pai a não ser Deus. Esta afirmação é explicitada no quer tipo de exegese comparativista do texto, como se o evangelista
versículo 16 em que Mateus diz: «]acó gerou José, o esposo de Maria, estivesse sob o influxo de lendas orientais . ou helenistas co!1cern:_ntes a
da qual nasceu - note-se o emprego do passivo - jesus, chamado c:nascimentos virginais»: Nada há de maIB estranho às mtençoes de
o Cristo>.
Um terceiro tema presente na genealogia mateana é o universa- Mateus.
fi . J o a n 1 ê 1 0 u Os Evangelhos da Jnfãncla, Etl. Vo2es, 1969;
lismo da mensagem evangélica. Mateus acentua este universalismo men-
cionando em sua Jista três mulheres estrangeiras: ~ute, a rnoabita (veja
X flfl~o:~fj uªf o Ü r, Etudes d'E;angi1e (Parole
L·a u r e n ti n, Structu~; et Tbêologle ~~.Lu~eJ~e'
te PDJ~), Jf! 1 5c 1 ~ I g·q 41; 8~~ep~·
1
1 Bi1:;1'1Jque 1i (1004) 206-214; A:1
V3~ e ~~1 ~'e eM:stslaJu:tf1gU~~l J1·~ lStudl Biblicl 35), BrescJpa 1976;J3ar~s ~e r{tº 1;
9
o livro de Rute), Raab, a cananéia (Js 2) e Betsabé, a hitita (2Sm
11-12). Este universalismo, já presente na ascendência do Messias, ior- Les rêcits 'de l'enfance de Jêsus (Cahiers Evanglle 18), arf~s1 ; •
w 0 J f f, Antropologia do Antlgo Testamento, Ed. Loyo1a, •
ª e
nar-se-ã uma das notas dominantes do evangelho, expressa especial-
mente no mandato final: «Ide, portanto, fazei que todas as nações se Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
tornem discípulos» (Mt 28,19). Rio de janeiro, RJ
"" 44 45
Tema Principal radas, nós cristãos estamos fazendo também. Cada ano come-
moramos com várias festas os principais fatos da história de
~a Missa da Vigília lê-se a genealogia de Jesus. Por Sua ascen- Jesus de Nazaré. Na festa de Natal, o Seu nascimento; nos
dência carnal o nosso salvador é realmente homem como nós filho de domingos durante o ano, a Sua vida pública de pregador da
Abraão (Mt I,!) ~ de Adão (Lc 3,38), <tornando-se em t~do seme-
lhante ª.Seus umao5'> (~b 2,17). Reconhecemos no menino Jesus re- Boa-Nova e salvador dos necessitados; na Semana Santa, Pás-
cé~-nasc1do a ~ossa fragilidade. Por Sua ascendência espiritual - con- coa e Pentecostes, a Sua paixão, morte e ressurreição e o dom
cebido do Espinto Santo nasceu da Virgem Maria - o mesmo menino do Espírito. Nestas festas os primeiros cristãos narravam estes
Jesus é ta~bém sfmbolo, penhor e princípio vital de todas as forças fatos e explicavam o sentido dos mesmos aos seus filhos e
boas que Vtvem em todos nós, mas numa condição precária e frágil.
Estas forças frágeis hão de ser liberadas e dadas à luz. No menino- aos judeus e pagãos que queriam ser cristãos. Também estas
Deus reconhecemos um salvador capaz de salvar estas forças frágeis narrações e explicações foram posteriormente anotadas por es-
por um nascimento novo que nos torne crianças, aptas para o reino crito em algumas comunidades. E assim surgiram os Santos
dos céus.
Evangelhos.
Sugestões para a Homilia 2. Os Evangelhos da Infância
Introdução A Festa de Natal e a Semana Santa sempre atraem mais
Comemorar gente do que as outras festas, - para nem falar dos domingos.
Qual será a razão disso? Por que tanta gente e por que nós
Quem conhece um pouco a Bíblia sabe que o povo de Deus mesmos viemos hoje aqui para celebrarmos a Festa de Natal
cada ano celebrava várias festas: Páscoa, Pentecostes, a Festa
e para ouvirmos mais uma vez a narração do nascimento de
dos Tabernáculos. . . Cada festa tinha o seu ritual e o seu sen-
tido próprios, comemorando-se nelas a libertação do Egito, a Jesus de Nazaré? Por que deste homem de Nazaré, e não de
Aliança de Deus no monte Sinai com a entrega dos dez man- um outro homem ou de um outro deus? Por que não de um
damentos escritos nas tábuas da Lei, a posse da Terra Pro- herói que venceu na vida, em vez de uma criança que morreu
metida, a inauguração do templo de Jerusalém. . . Deus quis na cruz? Nós nos colocamos hoje estas questões. Amanhã se-
que Seu povo celebrasse estas festas para que não se esquecesse remos interrogados a respeito por nossos filhos e filhas e por
d'Ele e de Seus feitos em favor do povo. Deu a ordem: «Con- todos para quem a nossa fé ou deve ser absurda ou ter um
servareis a memória deste dia, celebrando-o como uma festa em sentido muito profundo. Por quê? Para quê?
~on_ra. d_? Senhor: fareis . isto de geração em geração, pois é uma
mstitmçao perpétua» (cf. Ex 12,14.17.24). No dia da festa os 3. São Mateus e São Lucas
filhos deviam perguntar ao pai a explicação do ritual e o sen-
tido da festa: «Por que a gente faz hoje isto ou aquilo?» ( cf. Somente São Mateus e São Lucas nos narram o nascimen-
Ex 12,26; 13,14). O pai de familia respondia a esta pergunta to de Jesus. Os dois evangelistas dão uma genealogia de Jesus.
explicando a seus filhos e filhas os pormenores da festa, con~ A genealogia de Mateus começa com Abraão e atravessa todas
tando de novo a antiga história de como o povo foi libertado as gerações do povo de Deus, até chegar a Jesus. A genealogia
da escravidão do Egito, passou a pé enxuto pelo mar, foi ali- de Lucas não pára em Abraão, o pai do povo de Deus, mas
mentado no deserto ... (cf. Ex 12,27; 13,3.8.14). Grande par- regressa até Adão, o pai da humanidade. Os primeiros cris-
te da Bíblia devemos a estas narrações contadas nas casas de tãos usaram estas genealogias para mostrar que Jesus é ho-
família, transmitidas de uma geração para outra (cf. SI 77, mem mesmo, membro da humanidade e do povo de Deus, que
1-8), e posteriormente anotadas por escrito em algum santuá- carrega na Sua pessoa a história de todos e de cada um. Não
rio do país. somente carrega, mas também recapitula, refaz e corrige a his-
Corpo tória de todos nós. Porque Jesus não é somente apresentado
J. Os Santos Evangelhos como filho de Adão e Abraão e como descendente de Davi e
O que fez o povo de Deus do Antigo Testamento desde a Salomão ... , Ele é também visto e apresentado como novo Adão
libertação do Egito e a primeira Páscoa anualmente comemo- em que se realizam as promessas feitas a Abraão e à casa de
47
46
' Davi. Ele é, pois, filho do antigo Adão e habitante do paraíso 1,23), porque «ficará conosco todos os dias até o fim deste
" perdido; mas também é o novo Adão de quem surge uma hu-
manidade renovada e que do alto da cruz declara: «Hoje estareis
mundo» e o início do mundo novo (Mt 28,20).
comigo no paraíso». Jesus é descendente do antigo rei Davi,
mas ao mesmo tempo é o novo Davi de quem Deus diz: «Eu Conclusão
hoje te gerei».
Diante do presépio, contemplando com os olhos da fé o
4. jesus, um de nós menino-Deus, não é difícil reconhecer a nossa duplicidade de
coração, nem entregar-nos a Ele como ao nosso salvador.
Este corte entre o antigo e o novo, entre a queda e o É certamente por isso que esta Festa de Natal reúne um maior
soerguimento, entre a Lei que escraviza e a graça que liberta, número de fiéis. Que não seja somente para matar sauda-
encontra sua expressão perfeita na concepção virginal do Espí- des de uma inocência perdida, mas para iniciar uma vida no-
rito Santo. Esta duplicidade em Jesus o faz um de nós. Nós va, renascida, e alimentada pela prâtica da fé. O menino-Deus
nos sabemos fracos, frustrados, iludidos, cheios de saudades de no presépio é um espelho de todos nós: de nossa fragilidade
i chances perdidas, saudades da inocência que se foi. . . Carrega-
1· e de nossa inclinação para o bem. Ora, olhar neste espelho de
mos conosco o nosso passado que pesa e que nos paralisa e maneira fugidia, somente para matar saudades, não adianta mui-
arrasta para a morte, o fim da vida e do mundo, o nosso e o to. Lembremo-nos da palavra de São Tiago: «Sede cumpri-
de todos. . . Mas sabemos também que somos mais do que isso. ilores da palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós
Não somos somente vítimas de nosso passado. Carregamos co- mesmos. Pois quem ouve a palavra e não a pratica é seme-
nosco também esperanças, abertas para um futuro melhor. Es- lhante a alguém que olha num espelho seu rosto e, mal se viu,
tamos cheios de anseios, de sonhos, de expectativas, de planos, vai-se embora para logo esquecer como era. Quem se aplica em
de boa vontade. . . Não nos damos por vencidos. . . Experi- meditar a lei perfeita da liberdade e nela persevera, não como
mentamos, porém, que o que dentro de nós nos puxa para o ouvinte que facilmente esquece, mas como cumpridor, este será
bem é muito frágil, muito vulnerável. Sabemos perfeitamente que feliz em seu proceder» (Tg 1,22-25). É neste espírito que ofe-
estas forças frágeis e vulneráveis que nos atraem para o bem recemos a todos os nossos votos de um Feliz Natal.
dos outros seriam esmagadas por um tratamento indelicado,
duro, sem respeito e tirânico. Para poderem crescer e se desen- Raul Ruijs, O.F.M.
volver dentro de nós e darem frutos através de nossa vida, es- Petrópolis, RJ
: tas forças frágeis e vulneráveis que em nós experimentamos
!.
hão de ser respeitadas, liberadas e dadas à luz por um espí-
rito novo, manso e humilde, suave e leve. Sabemos perfeita-
mente que somos tão frágeis e vulneráveis que precisamos de
um salvador como Deus nos deu em Jesus de Nazaré. Um sal-
vador que não disputa, não eleva a sua voz nem grita em pra-
ça pública; não quebra o caniço rachado nem apaga a mecha
que ainda fumega (cf. Mt 12,19s). Precisamos de um salvador
que compreende, que perdoa, que é manso e humilde de co-
ração, cujo jugo é suave e cujo peso é leve. Um salvador que
nos alivie, libertando-nos de nosso passado e abrindo-nos para Natal: Primeira Missa
um futuro novo (cf. MI 11,25-30). Um salvador, pois, que nos Tudo como na Mesa da Palal'ra, Ann A. p. 52-56.
faz nascer de novo.
Um tal salvador somente poderia ser um recém-nascido, a Natal: Segunda Missa
quem se daria o nome de Jesus «porque salva o seu povo de
seus pecados» (Mt 1,21) e 4e Emanuel, «Deus-conosco> (Mt Pistas Exeg1'ticas como na Mesa da Palavra, Ann A, p. 57-60.

48 49

1
i.
--------------- - - -~

a revelação plena e definitiva do Pai. Ele é a palavra que Deus nos


Natal: Terceira Missa dirige. Ele é o Verbo, a Boa-Nova, o Evangelho. Através d'Ele, Deus
nos mostra a sua verdadeira face ccheia de misericórdia e fidelidade:i>
Pistas Exe~éticas da l' e da 2' Leitma como na Mesa da (Jo 1,14), de tal forma que Jesus poderá responder a Filipe: «Quem
me viu, viu o Pai> (Jo 14,9).
Palavra do Ano A. p. 64-66.
No primeiro versículo, o evangelista ajirma não apenas que Jesus
Terceira Leitura: ]o 1,1·18 é o Verbo, mas também indica a relação de comuphão existente entre
o Verbo e o Pai («e o Verbo estava junto de Deus>), idéia retomada
«E o Verbo .se fez carne e ergueu sua tenda entre nóS> no versículo 18 (<O Unigênito que está no seio do Pai ... >), tema este
que se torna central através do livro. Nenhum evWgelista afirma tão
Autores antigos' e modernos exaltam a sublimidade do prólogo do incisivamente a intimidade entre o Pai e Filho como o qq,arto evan..
quarto evangelho. Já Santo Agostinh? afirmava . q~e o homem_ entregue gelista. No quarto evangelho, Jesus se dirige a Deus com o tiiulo «Pai>
117 vezes (apenas 67 vezes nos três primeiros evangelhos). Apenas no
às suas próprias forças não poderia se exprimir como Joao o faz
nesta passagem. E se o quarto evangeJista é simbo~izado pela cá~ia quarto evangelho, Jesus é designado como o «Unigêµito>, isto é, o filho
em vôo» (Ap 4,7) e é qualificado como o contemplat1vo por excelência,
único e bem-amado (Jo 1,14.18; 3,16.18). E esta união entre Pai e Filho
isto se deve em parte, às palavras iniciais de seu livro. Com efeito, tão claramente expressa na oração sacerdotal (Jo 17) torna-se o modelo
estes dezoito' versículos são considerados «a página mais preciosa jamais da comunhão que deve existir entre o Cristo e o cristão e os cristãos
escrita> (A. Durand) «D mais belo dos hinos cristãoS:;. (L. Bouyer), «a entre si. Para joão, o disclpulo é aquele que permanece no Cristo,
pérola do Evangelbo':P (R. E. Brown). Recitado nos primeiros séculos verbo este empregado 40 vezes no quarto evangelho, de forma especial
como bênção sobre as crianças recém-nascidas, a partir de 1570, por através de todo o capitulo 15. Somente esta permanência no Cristo e
prescrição do Papa Pio VJ foi lido no final de cada celebração eucarística. esta comunhão com a sua pessoa poderá transformar a nossa vida, fa-
zer-nos verdadeiros discípulos de Cristo e modelar a nossa convivên-
O início do quarto evanuelho não é propriamente um prólogo, mas cia fraterna.
pode ser comparado à abe;tura de uma sinfonia (]. Konings), pois Ainda no primeiro versículo do prólogo, joão afirma claramente a
apresenta os temas que serão desenvolvidos através de todo o Evan- divindade de Jesus: ce o Verbo era Deus>, o termo cDe~ sendo usado
gelho. Assim, ele afirma a preexistência de Cristo (1,1; 17,5); o Cristo aqui como predicativo, indicando a natureza divina de Jesus. E con-
• como a vida (1,4; 11,25 e 14,6), como a luz dos homens (1,4.9; 8!12; tudo, no versículo 14, ele escreve que este Deus se fez carne, isto é,
9,5; 12,46), como o Unigênito (l,14.18; 3,16.18). Pode-se mesmo d1~er assumiu plenamente a nossa natureza humana com toda a sua fragi-
que Jo 1,11 (<Veio para os seus, mas os seus não o receberam>) sm- lidade e perecibilidade~ Tal afirmação, tão óbvia para nós, soava como
tetiza a primeira parte do evangelho (1,1!1-12,50) que nos fala da um absurdo para os filósofos gregos e seus seguidores. Estes con..
rejeição de jesus pelos judeus, enquanto que Jo 1,12 (<111as a todos os sideravam o corpo o cárcere da alma e, por conseguinte, jamais pode-
que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus: os riam admitir a encarnação de Deus. Através de todo o evangelho, João
que crêem em seu nome ... ») resume a segunda parte do Evangelho insiste na corporeidade do Cristo (4,6; 11133-35; 13,21; 19,17; 19,34): O
(13,1-20,29) na qual o Cristo se dirige especialmente aos seus discípulos. Jesus humano do '.quarto evangelista sente sede, fome, fica emocionado e
Começando o seu evangelho com as palavras «No principio era perturbado, chora, carrega sozinho a sua cruz (a figura de Simão Ci-
o Verbo» o autor estabelece um paralelismo entre o seu livro e o Gê- reneu é eliminada), do seu 1ado jorra sangue e água. E nas duas pri-
nesis («No princípio Deus criou o céu e a terra»}. Est~ paralelisJ?lO meiras cartas joaninas, o autor polemiza aqueles que negam que o
se' torna mais evidente nos temas que aparecem nos vers1culos seguin- Cristo veio na carne, chamando-os de «sedutores e anticristos» (l]o
tes: a criação (1,3), a luz (1,4.9), a oposição entre a luz e as trevas 4,1·3 e 2Jo 7-11).
(1,5) e a apresentação dos seis dias da criação (1,29.35.43 e 2,1). Para Através da encarnação, Deus, que tantas vezes se manifestara na
João, com o Cristo inicia um novo Gênesis, uma nova criação, uma história do povo eleito, tomou a condição humana e se fez semelhante
nova humanidade. O cristão vive porque nele vive o Cristo. O Cristo a nós em tudo, exceto no pecado. Fez-se homem, o homem perfeito no
é doravante «a nossa vida» (Cl 3,4) ou na formulação paulina.: «Não qua1 não existem ambigüidades ou al:enações, tornando-se assim o in-
vivo mais eu mas o Cristo vive em mim~ (Gl 2,20). Este homem novo, centivo e a orientação do esforço daqueles que lutam pela humaniza-
o ser-em-Cri;to, deve tornar-se o objetivo e ideal da vida cristã. ção sua e dos outros. O fato da encarnação é também um convite a
O termo cVerbo» aplicado a Jesus é exclusivo da literatura joani- encarnarmos em nossa vida a mensagem de Cristo~ Um cristão que
na. Aparece apenas no quarto evangelho (Jo 1,1.14)" na primeira carta não assume o seu compromisso no cumprimento das tarefas terrestres
de João (1,1) e no Apocalipse (19,13). A origem. do termo d~ve ser e na humanização do mundo ou restringe a sua religião a fórmulas
buscada provavelmente no Antigo Testamento. No livro do Oênes1s (1,3. vazias nega na prática a realidade da encarnação. A vida de Deus
6.9.ll), a palavra de Deus é criativa e dinâmica; o mesmo sucede no feito homem é uma crítica de todas as situações que não se harmo-
SI 32,6 (<Pela palavra de Deus foram feitos os céus~): .Em jo 1,3 s~ nizam com a medida em que Cristo viveu e nos deve levar a um
lê: <Tudo foi feito por meio d'Ele e sem Ele nada f01 feito do que foi esforço contínuo contra tudo que faz do homem menos homem. O
feito>. Também no Antigo Testamento, a palavra de Deus é reveladora Cristo é o modelo do homem, meta e inspiração de todo o movimento
e ativa (Jr 1,4; Ez 1,3; Am 3,1): No quarto evangelho, o Cristo é que busca a realização do homem.

50 51
O evangelista ainda afirma no versículo 14: <E o Verbo... er- Festa da Sagrada Família
gueu sua tenda entre nós». Aqui, o autor translitera um verbo hebraico
do qual provém o substantivo Shekina que designa a presença de Deus
no Antigo Testamento. Durante a peregrinação pelo deserto, Deus, fiel Pistas Exegéticas
às suas promessas.. de acompanhar o seu povo, ordenou a Moisés que Primeira e Segunda leituras, ver A J\'Iesa da Palavra, Ano A, p. 69.
construisse urna tenda que seria sua casa no meio do povo eleito. Deus
permanecia com o povo, morando com ele, sob uma tenda. Daí por que
a expressão «habitar sob urna tenda» tornou-se o termo habitual para Terceira Leitura: Lc 2,22·40
indicar a presença divina em Israel (Nm 12,5; SI 78,16). Mais tarde,
o rei Salomão colocou a tenda da aliança no templo em jerusalém «Os pais levaram o menino jesus ao tempio'il-
(lRs 6,8). Desta forma, o templo tornou-se o lugar privilegiado de
presença de Deus para onde acorriam os judeus três vezes ao ano. Após A passagem divide-se em quatro partes: a apresentação de jesus
a destruição de Jerusalém e do templo no ano de 587, os profetas pos- no templo de jerusalém (vv. 22-28); o cântico de Simeão (vv. 29-32);
teriores anunciavam que Deus viria de novo erguer sua tenda no meio as profecias de Simeão e Ana (vv. 33-38) e uma breve indicação sobre
de seu povo (Zc 2,14; JI 4,17-21). a vida de jesus em Nazaré (vv. 39-40).
;
Em Jo 2,14, o evangelista afirma que estas profecias se cumprem: Jerusalém desempenha um papel muito importante no terceiro Evan-
A humanidade do Cristo é a tenda de Deus entre nós, o lugar por gelho. Lucas propositalmente vela todas as precisões topográficas, exceto
excelência da presença de Deus. Jesus é Deus presente entre nós, «Deus as que se referem a jerusalém. Em 5,17 e 9,46 Lucas não menciona
conosco:.1>. Ele é o novo templo (Jo 2,21 : «Ele, porém, falava do tem- Cafarnaum (cf. Me 2,1; 9,33); em 5,Tl; 6,17; 9,43b não informa que
plo do seu corpo»). Doravante, Deus será adorado «nem neste monte os fatos se situam na Galiléia (e!. Me 9,30); em 8,39 não laia da De-
(Garizim), nem em jerusalém», mas «em espírito e verdade» (jo 4, cápole (cf. M:: 5,20). Do mesmo modo não tem, como Marcos, o cui-
21-24). A humanidade de Cristo é a manifestação permanente da pre- dado de locahzar cada uma das narrações: na Cesaréia de Filipe (Me
sença de Deus e o centro do culto cristão. 8,27), no monte das Oliveiras (Me 13,3), em Getsêmani (Me 14,32).
O acontecimento da encarnação, fato central na história da hu- Além destas supressões de dados topográficos, constatam-se modifica-
manidade, diz o evangelista, é o fruto da «graça e verdade» de Deus, ções. As tentações de jesus não culminam sobre a montanha, -como em
isto é, conseqüência de sua misericórdia e fidelidade. Deus se m~nteve Mateus, mas em jerusalém (4,9-12). O encontro na Galiléia, marcado
fiel às suas promessas a despeito das fraquezas humanas. Ele nao se por Jesus para depois da ressurreição (Me 14,28; Mt 26,32) e recor-
desmente. Suas promessas são para sempre. O Cristo encarnado é a dado pelo anjo (Me 16,7; Mt 28,7), é assim transformado em Lc 24,6-7:
mais perfeita manifestação deste amor e fidelidade de Deus, ou como «Lembrai-vos de como Ele vos disse, quando ainda estava na Gali-
diz joão: .::Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigê- léia~. e o encontro realiza-se em Jerusalém (diferentemente de Mt 28,
nito para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida 16-201)~ Por outro lado, Lucas menciona não menos de trinta vezes o
'' eterna> ()o 3,16). nome de jerusalém. A narração da infância começa em Jerusalém (Lc
1,8-22) e culmina em duas idas do menino jesus a jerusalém (2,22-38;
Bibliografia: A. F e u 1 t J e t, O prólogo do quarto evangelho, Ed. Paulinas,
1971; M.. -É. B o 1 s mar d, Le prologue tlu quatriême évanglle, Paris 1953; J. 2,41-50). E aquela parte que Lucas tem própria em comparação com
K o n 1 n g s, Encontro com o quarto evangelho, Ed. Vozes, 1975. Confira os co- Mt e Me (Lc 9,51-19,27) apresenta-se como uma decidida subida de
mentârios sobre o quarto evangelho de R. H. L l g h t f o o t, J. i\'l ar s h, A. jesus a Jerusalém (cf. Lc 9,51.53; 13,22.33; 17,11; 18,31; 19,11.28). Si-
Durand, L. Buuyer, J. N. San ders, R. E. Brown e R. Schnacken-
b ur g. tua-se em Jerusalém a principal aparição de Jesus ressuscitado (Lc
Pe. Gabriel Selong, S.V.D. 24,33-49). E o Evangelho de Lucas termina onde começou: no templo
Rio de janeiro, RJ de jerusalém (Lc 24,53; cf. 1,8-22).
A primeira ida de Jesus a Jerusalém é de grande importância teo-
lógica para o evangelista Lucas. Nela culmina o Evangelho da Jnflincia.
Isto conclui-se da cronologia que une as diversas etapas deste Evange-
lho. Desde a aparição do anjo Gabriel no templo para a anunciação do
nascimento de João Batista até a concepção de jesus por ocasião da
Anunciação a Nossa Senhora decorrem seis meses ou 180 dias (Lc
1,26); da concepção de jesus até o nascimento passam nove meses ou
270 dias. Do nascimento de Jesus até a purificação de Maria, conforme
Lv 12,2ss, mais quarenta dias. Isto faz um total de 490 dias. Este
1 número indica o significado da apresentação de Jesus no templo. Neste
' momento completaram-se as 70 semanas de anos até a unção do Santo
(oo Stllltuário?) por excelência, mencionadas por Daniel (Dn 9,20-27).
Realiza-se também a profecia de MI 3,1: O próprio Senhor vem ao
Seu templo.

52 53
Que o autor interpretou assim o evento à luz do Antigo Testamento Sugestões para a Homilia
é confirmado por várias outras alusões. Por exemplo, a menção do
anjo Gabriel, como em Dn 9,21; do sacrifício de incenso (Lc 1,9; em Introdução
Dn 9,21 fala-se da oblação da noite); a alusão a MI 3,1.23s em Lc 1,17.
A importância atribuída ao evento narrado transparece na circuns- A festa da Sagrada Família lembra que o mistério da En-
tância de que o menino jesus é recebido no templo por um profeta
e uma profetisa que respectivamente esperam a consolação de Israel carnação do Verbo foi vivido na realidade do cotidiano de uma
(v. 25) e a redenção de (ou em?) Jerusalém (v. 38). família. Ainda que adjetivemos com o termo «sagrado», não ti-
A profecia de Simeão sobre o menino Jesus está contida tanto no ramos a esta família o mundo natural dentro do qual estava
Cântico (vv. 29-32) como nas palavras dirigidas à mãe do menino (vv. mergulhada, nem a influência do mundo sobre ela, nem dela
33-35). Nela toca-se nos dois eixos da obra da salvação: na sua meta sobre o mundo. Porque o papel da família é inserir-se no mun-
que é a salvação. Através de altisões implícitas a textos como Is 42,6;
46,13; 49,6; 52,10, esta salvação é desdobrada em «luz das nações» e do e quem se insere, verdadeiramente, sofre e exerce influên-
«glória de Israel» (v. 32). Esta meta será alcançada pela sorte con- cias. Por isso, ao meditar sobre a família deve-se pensar num
1 trovertida do salvador, que para uns será causa de salvação, para ou- apostolado familiar para com a família e o apostolado feito
tros de desgraça. A atitude a respeito da pessoa do salvador e de pela família. Ela não é apenas um núcleo importante com o
."
i Seu modo de salvar porá às claras os pensamentos e motivos latentes
que dominam os homens. As tentativas para apagar esta luz ferirão
qual nos devemos ocupar, mas é também uma extraordinária
como uma espada afiada o coração da Mãe de que nasceu esta luz. fonte de energias espirituais, das quais anda tão necessitado
Ela será testemunha e vitima da hostilidade que a pessoa de seu Filho o nosso mundo.
provocará. Nisto mostrar-se-á discípula perfeita d' Aquele que dirá mais
tarde a Seus discípulos: «Não pensem que Eu vim trazer paz ao mun- Corpo
do. Não vim trazer paz, mas a espada> (Mt 10,34; ci. Lc 12,51). Do
Evangelho de São João sabemos que ela permaneceu fiel a Seu Filho 1. Os pais levam jesus ao templo
e estava ao pé da cruz quando «um dos soldados abriu o lado de je-
sus com uma lança> Uo 19,34).
A apresentação de Jesus no templo lembra um costume do povo Levar ao templo significa o primeiro reconhecimento de que
de Deus do Antigo Testamento que era praticado uma só vez na vida o filho veio de Deus. Do amor abençoado aos pés do Senhor.
de cada familia (no caso de poligamia por ocasião do primeiro filho Fruto de um desejo a dois. Reconhecimento da missão continua-
de cada mãe), a saber, a consagração do primogênito ao Senhor. Mes- dora .da criação. Cada criança que nasce é um primeiro dia
mo assim é fácil imaginar como este costume, repetido em todas as da criação. Apresentar o filho a Deus é dizer, por um gesto,
famílias, marcou profundamente a mentalidade das famílias do povo
eleito. Também no caso de Maria e josé este acontecimeto deve ter que assumimos a história, sempre feita por homens, nascidos
influenciado demais a educação de seu Filho recém-nascido. Como pais de mulher, como fala S. Paulo de Cristo.
eles se dirigem ao santuário nacional de jerusalém para observar a Toda iniciação religiosa deve ser provocada pelos pais, con-
lei de Moisés (v. 22), que para eles é a lei de Deus (vv. 23 e 24).
Chegados ao santuário são recebidos por duas pessoas idosas, Simeão tinuada na escola e na igreja e levada à plenitude pelo indi-
e Ana, que, graças à sua dedicação a Deus (vv. 25 e 37), lhe servem víduo. A fase familiar é decisiva: deixa as marcas leves e fá-
i
1 de intermediários junto a Maria e José. As duas esclarecem os pais ceis de apagar, ou profundas e indeléveis, capazes de superar
a respeito do mistério de seu Filho; isto é, a respeito de sua dig- as poluições da vida em pleno mundo, quando a materialidade
nidade - Ele é o messias prometido (v. 26); a respeito de sua vo-
se planta como um desafio ao homem que deseja conquistar
cação - Ele é o libertador de Israel (v. 38); e a respeito de seu
destino - Ele tornar-se-á um sinal de contradição (v. 34). sua posição ao sol.
,. A luta não é apenas penosa à criança. Aos pais também,
BlbliogFajia: Os comentârios de Re n g s to r f, Se h mi d; W. K n õ r z e r-W.
,.i· B las l g, em: EuE 1 (1969) 83-90; C. C a 11 ma n, O Projeto Teológico do Evan- e por isso, haverá sempre espadas penetrando corações e machu-
gelista Lucas, em: Atualização 2 0971) 503-515; J. K o d e 11, La Tbéologle de Luc
cando afetividades, obrigando os pais a possuírem energias ar-
1

1' et la Recherche Récente, em: BTS 1 {1971) 119-149; J. Na v o n e, Three Aspects


:i of the Lucan Theology oi History, em: BTB 3 (1973) 115-132.
mazenadas, para permanecer, longe ou perto, na vigília amo-
,.
1

Raul Ruijs, 0.F.M. 1 rosa de quem assumiu uma missão que transcende as etapas
1 í
Petrópolis, RJ cronológicas de uma vida humana.

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11

li
2. O homem se estrutura no seio familiar
Ano Novo: Oitava do Natal, Solenidade
Os pais e o Filho mergulham no silêncio de Nazaré, mas é da Santa Mãe de Deus, Dia Mundial da Paz
como a semente: o silêncio fecundo que faz rebentar a vida
esconilida. Por isso, o evangelista registra que o menino cres- Tudo como na Mesa da Palavra, Ano A, p. 76-82. Dentro
cia fisicamente, em conhecimentos e em graça. É na família das Sugestões para a Homilia encontra-se uma exegese da bên~
que o homem atinge a maturidade humana, adquire os conhe- ção aarônica da I • Leitura. Para uma Pista Exegética do Evan-
cimentos fundamentais da comunhão com os outros, descobre gelho (Lc 2,16-21), cf. a do Evangelho da 2• Missa de Natal
sua vocação e amadurece seu relacionamento com Deus e com (Lc 2,15-20).
sua manifestação histórica, onde colocou os elementos para o Recomenda-se uma leitura do número especial da Revistµ
crescimento espiritual: a Igreja. A família deve oferecer um am- de Liturgia «A Vida em Cristo e na Igreja» 4 (1977/24), todo
biente propício: o amor mútuo, a compreensão, a fidelidade, o ele dedicado às «Bênçãos», entre outros artigos, estes de Pe.
trabalho, um horário, a disciplina, a oração, a higiene, o lazer, João E. M. Terra, S.J., A Bênção na Sagrada Escritura (p. 9-
o estudo e sobretudo a presença amiga, em todas as horas, 19) e de Pe. Francisco Viana Pires, C.S.R., Sociologia da Bên-
para explicar mistérios da vida, afastar os elementos poluido- ção (p. 20-29). Também os verbetes «Bênção» no Dicionário
r"es, ajudar cada vez que o relógio da vida bate horas, saber Enciclopédico da Biblia e Vtx:abulário de Teologia Bíblica da
o que fazer do tempo e das forças que palpitam num homem. Ed. Vozes, «Ano Novo», «Tabernáculos. Festa dos» são muito
Por isso, cabe aos pais a fidelidade a Deus, a fidelidade interessantes.
um ao outro, a fidelidade aos filhos. Os pais se doam um ao
outro e juntos se doam aos filhos e esta doação se consuma Tema Principal
quando têm a coragem de doar o filho a Deus. Assim, a fa-
As leituras da Missa convidam a ·:meditar sobre a Plenitude dos
mília é apóstola em seu seio, apóstola em sua vizinhança, após- Tempos trazida por jesus (2' Leitura). Ela vem à humanidade como
tpla na Igreja e com a Igreja. uma bênção de Deus que encerra uma proposta de paz (!' Leitura).
O homem acolhe esta proposta divina através do Espírito de filiação
que formula em nós a resposta adequada à proposta divina, fazendo-
nos invocar a Deus corno «Abba! Papail:i> Somente seremos capazes de
irradiar a paz divino-humana que nos é dada corno graça, em redor
Conclusão de nós, quando a conservarmos. cultivando-a dentro de nós e meditan-
do-a no coração (e!. 3• Leitura). Somente assim o Ano Novo serâ um
Como Cristo quis retormar todas as coisas, levando-as ,de ANO DO SENHOR, CHEIO. DE PAZ E AMOR
volta ao seu primitivo fulgor, assim agiu assumindo uma famí-
lia, santificando a familia e encarregando-a de uma missão
àpostólica. Os tempos de hoje, tão repletos de visões de desa- Sugestões para a Homilia
mor e desesperança, esperam ver na familia uma afirmação de
fé, de amor humano, de confiança em Deus, de esperança no Introdução
homem. O laboratório extraordinário, onde os seres explodem
no maravilhoso mistério da vida, crescem na configuração hu- Somos seres mortais
mana, estabelecem os relacionamentos sadios com os homens
e com a estrutura social, amadurecem no contacto com Deus, Sempre estamos nós, seres mortais, em encruzilhadas de
assumem sua vocação e marcam presença na história, porque encontros e desencontros. Encruzilhadas de dia e noite, luz e
toda história mergulha suas raízes f111 familia. trevas, bem .e mal, frio e calor, saítde e doença, fome e fartura,
pobreza e riqueza, juventude e velhice, força e fraqueza, pais
. Fr. Hugo D. Baggio, O.F.M. e filhos, homens e mulheres, empregadores e empregados, pro-
Rio de janeiro, RJ prietários e proletários, superiores e súditos, médicos e doentes,
militares e civis, governo e povo. Em última análise toda a
56 57
existência humana e todos os caminhos de nós, mortais, estão encontrassem o seu sentido na própria esperança de serem um
marcados pela encruzilhada do encontro ou desencontro da vida dia libertados da vaidade e futilidade e de chegarem a esta
e da morte, do ódio e do amor, do egoísmo e do altruísmo. plenitude almejada.
~ tudo indica que, mesmo que nesta encruzilhada sempre ven-
cesse a vida, o amor e o altruísmo, estaríamos fatalmente sub- 3. <Abba! Papai!»
metidos ao ritmo implacável destas forças hostis e seríamos ví-
timas inevitáveis da lei do '.mais forte que rege a evolução da São Paulo liga esta plenitude dos tempos ao homem Jesus
natureza, em que uma parte vence porque outra parte perde,
uma parte cresce porque outra definha, uma parte vive porque
.
de Nazaré nascido de uma mulher humana e nascido sob o
domínio da' lei que rege a sorte dos homens. Mas ao mesmo
.

a outra está morrendo. tempo afirma que neste homem Jesus de Nazaré estourou-se
esta lei e rebentaram as cadeias de seu domínio sobre os ho-
mens e a humanidade. Este estouro expressa-se naquela pala,-
· Corpo vra que nos Santos Evangelhos e nas Cartas de São Paulo se
1. Prop{JS/a div.ina - resposta humana
conservou na língua materna de Jesus: «Abbal Papai!» Esta
maneira de Jesus invocar a Deus ·é o mais convincente teste-
Comemoramos hoje também uma encruzilhada a do ano munho de que a nossa existência humana já não é mais um
findo e do ano novo. Iniciamos este ano dando-Ih~ um nome, beco sem saída, um remar contra a maré, uma Juta sem chance
marcando-o como sendo o ano de 1979 depois de Cristo e de- e uma busca sem objetivo. Em Jesus, Deus - a fonte da luz,
nominando-o a partir daí como Ano do Senhor. Nesta nossa do bem do calor, da saúde, da juventude, da força, da vidà,
assembléia iniciamos este ano com preces, com bênçãos, com do amdr e do altruísmo - tornou-se acessível a todos nós,
esperanças e votos e, também, prestando atenção à Palavra de porque também a nós deu o Espírito que em nós e através de
Deus que nos é proposta nas três leituras desta Santa Missa nós se dirige a Deus com a mesma palavra, clamando: «Abba !
do ~no Novo e do Dia Mundial da Paz. Proposta divina que Papai!»
anseia por uma resposta de nossa parte. Esta invocação de Deus como Papai é a resposta humana
à proposta divina. É a resposta perfeita, que «não caiu do céu»,
2. Somos cristãos
mas estava sendo preparada há muito tempo na alma do povo
de Deus do Antigo Testamento. Acabamos de ouvir na primeira
Nesta encruzilhada do ·ano findo e do ano novo fazemos leitura a bênção que Deus confiou a Moisés, a Aarão e aos
questão de nos encontrarmos aqui, nesta assembléia de oração. sacerdotes para, com ela, abençoar o povo. E uma bênção mui-
Por quê? ~ão será porque sabemos que somos mais do que to bonita e solene, cheia de sentido também para nós cristãos,
seres mortais, entregues à fatalidade das forças hostis da na- apesar de ser mmto. antiga.
. '•·
!~reza? N~o será porque spmos cris\ãos que acreditamos que
Jª fomos hbertados desta lei do mais forte que nos arrasta ir-
re~istiv~J~ente par~ a morte, sem retorno (cf. Rm 7,21-25)? 4. A bênção aarônica
Nos cnstaos acreditamos que já não somos meros joguetes sem
apelo das forças internas (imanentes) da natureza. Para nós a Esta bênção era usada para abençoar o povo to,do, reunido
n?ssa existência já não é dominada por um destino cego. Acre- em assembléia no templo de Jerusalém por ocasião das gran-
ditamos que Deus entrou na vida dos homens e transformou des festas, em que se comemoravam os grandes feitos de Deus
a sorte e o destino humanos em uma história divino-humana em favor de Seu povo. Celebravam-se a libertação do Egito
i~trojetan~o nela forças novas que libertam da fatalidade porqu~ nos dias da Páscoa, a Aliança no monte Sinai no dia de Pen-
sao supenores (transcendenles) às forças naturais. São Paulo tecostes, a posse da Terra Prometida e a inauguração do Tem-
o proclama com toda clareza: chegou a plenitude dos tempos. plo na Festa dos Tabernáculos e também o dia de Ano Novo.
Isto. é o mesmo que afirmar que, antes, os tempos estavam Apesar de ser coletiva, esta bênção dirige-se no singular a ca-
vaz10s, carentes de sentido. A não ser que os tempos antigos da membro do povo individualmente. Ela é dividida em três

58 59

1
i'
1.
~ :i
frases que, em um crescendo, expressam o cuidado e o amor teúdo desta paz pode variar conforme a situação em que se
de Deus para com o povo e cada um de seus membros. Ve- encontra o homem por ela beneficiado. Mas sempre permanece
jamos estas três frases mais de perto. uma benevolência de Deus em favor do homem.
Esta bênção, sempre repetida nas grandes festas do povo
cO Senhor te abençoe e te guardei> de Deus, atualizava-lhe a proposta divina, contida nas fórmulas
Nesta primeira bênção proclama-se que Deus é o criador da Aliança já citadas: «Eu serei o vosso Deus e vós sereis
e o protetor de Seu povo. Ela confirma a Aliança para com o o Meu povo» e «Eu serei para ti um pai e tu serás para 'Mim
povo todo e cada um de seus membros. Ela atualiza; cada vez um filho». A resposta adequada a esta proposta divina de amor
que é pronunciada, a fórm~la da Aliança na sua forma cole- e de benevolência, de graça e de paz, é o nome que Jesus deu
tiva: «Eu serei o vosso Deus e vós sereis o Meu povo»; e a Deus, invocando-O como «Abba! Papai!»
11ª sua fotma individualizada: «Eu serei para ti um Pai e tu Papa Paulo VI, de grata memória, proclamou o primeiro .
s,erás para mim um filho». dia do ano Dia Mundial da Paz. Daquela • divina e humana
paz entre os homens que está arraigada na paz que Deus ofe-
<0 Senhor te mostre a Sua face e conceda,.te Sua graça!> rece. Aquel:i paz, portanto, que é resposta humana à propos-
ta divina. Aquela paz que é .capaz de transformar todas as
Nesta segunda bênção menciona-se a face de Deus. Ela encruzilhadas da existência humana em encontros de luz que
representa a glória divina que guiava o povo de Deus no de- dissipa as trevas, do bem que vence o mal, do calor que que-
serto. Atravessou-se este deserto para percorrer o caminho que bra o gelo, da saúde que cura as doenças, cja fartura que ali-
separava a terra da escravidão, Egito, da Terra Prometida. menta os famintos, da riqueza eqüitativamente distribuída. . . Se
Nesta caminhada a glória de Deus guiava o povo, tomando a nós acreditamos realmente nesta paz não ser~ difícil irradiá-la.
dianteira; e o protegia, cuidando da retaguarda. Também mais Mas para que realmente brilhe em redor de nós através de
tarde esta glória divina continuava a acompanhar o povo na
nossos gestos, palavras e pensamentos, precisa-se que, primeiro,
sua história movimentada. Deus faz brilhar a glória de Sua
a guardemos e meditemos em nosso coração. Senão, ela será
face para cada fiel e se lembra de cada homem que compar-
tilha da Aliança. Oferece-lhe a Sua graça como um pai que muito fugidia. Ela nos escapará. E cairemos de novo no ritmo
zela pela felicidade de seu Filho. da luta sem chance e sem consideração; da vitória a preço da
destruição do outro; da vida que se conquista, matando. Nós,
«0 Senhor volva o seu- rosto para ti e te. dê a paz!»
cristãos, acreditamos que Deus, em Cristo, parou este combate
sem sentido, porque enviou o Espirito de Seu Filho também
Nesta terceira bênção expressa-se a presença e . proximi- sobre nós. Este Espirito reza agora em nós: «Abba! Papai!»
dade de Deus. Deus volve o Seu rosto para quem n'Ele confia. e nos faz irmãos uns dos outros. Este novo relacionamento de
Deus olha para cada um com carinho. Volver o rosto e olhar nós para com Deus e para com os demais homens modifica
para alguém é a relação mais íntima e acolhedora entre Deus tudo. São Paulo: declara isto da seguinte maneira: «Já não há
e o homem. Deus não olha o homem de cima ou de lado. Ele judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mu-
se entreolha com o homem de uma maneira pessoal e cheia lher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus» (Gl 3,28). Ou
de carinho e afeto. nestas palavras: «Ninguém de vós ponha sua glória nos ho-
Liga-se à bênção toda, mas especialmente ao olhar de Deus mens, pois tudo é vosso: - o mundo, a vida, a morte, o pre-
para cada um, a doação da paz. Esta paz é abrangente. En- sente e o futuro: tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo
cerra o bem-estar do homem, uma vida feliz. É a shâlom das é de Deus!» (lCor 3,21-23). Hoje queremos incluir neste tudo
profecias messiânicas e da promessa do Reino de Deus. Como também o Ano Novo. Que também ele seja de Cristo e de
tal inclui a felicidade terrestre, mas ao mesmo tempo a ultra- Deus, cheio de paz e de amor.
passa porque emana da fonte da paz e somente é autêntica Raul Ruijs, O.F.M.
quando e à medida que é expre$são de algo muito mais pro- Petrópolis, RJ
fundo, a saber, da benevolência e do amor de Deus. O con-
00 61
Epifania do Senhor deus e ao mundo dos pagãos ou então, diríamos nós, ao mundo
dos crentes e ao mundo dos infiéis. O rei Herodes, os príncipes
Tudo como no Ano A. Veja A Mesa da Palavra, Ano A, p. dos sacerdotes e os escribas que moravam na capital da nação
83-90. Para uma Pista Exegética do Evangelho, cf. as Sugestões Jerusalém e se encontravam no palácio do rei, representam o
para a Homilia que seguem e: L. Boff, «Jesus Cristo Libertador», mundo judeu ou o mundo dos crentes. Alguns magos, que vieram
Petrópolis 1972 ', p. l 88s e a bibliografia na p. 173. do Oriente, representam o mundo pagão ou ·dos descrentes. A
estes dois munct'os é apresentado o jesus Salvador.
A Igreja continua a ler esta narração antiga ainda hoje
no ano .de 1979 depois de Cristo, porque a acha válida em
Tema Principal vista de sua missão perpétua de apresentar e manifestar Jesus
Epifania é manifestação, celebração da manifestação de jesus ao
como Salvador aos fiéis e infiéis e ao mundo crente e descren-
muodo. A apresentação de jesus ao muodo como clibertadol'> dâ nova te de hoje.
relevância à mensagem de sempre. Esta nova relevância não é fruto
da imaginação fértir de alguns teólogos, mas de uma releitura da men-
sagem bíblica e doutrina da Igreja à luz da perguota: cComo a Pa- 2. jesus Cristo Libertador
lavra de Deus é Palavra de Salva,ão aqui e agora, no Brasil de
hoje?>.. . Transmitir esta nova relevância da revelação de sempre não M:.s como jesus é apresentado a estes dois mundos?
é um hobby deste pu daquele bispo, teólogo ou padre, mas um dever 1
da parte dos prega\lores e um direito da parte do povo de Deus, es- ( A resposta a esta pergunta é ao mesmo tempo fácil e di-
pecialmente dos que mais precisam desta salvação. Uma • ez que o fícil. E difícil porque muita gente pensa que já sabe quem é
Evangelho de hoje ·oferece uma oportuoidade excelente para descorti- Jesus. Esta gente considera uma explicação a respeito como
nar a cristologia da, Igreja primitiva como uma cristologia de libertação, tempo perdido ou até como uma humilhação. Responde que
escolheu-se como tema principal:
' sempre foi católico e que não se precisa «ensinar o pai-nosso
JESUS CRISTO LIBERTADOR ao vigário». Para eles Jesus é nosso pai; um santo muito gran-
de; um santo milagreiro; o Filho de Deus e de Nossa Senhora;
o nosso redentor que morreu na cruz. Certamente é muita coisa
Sugestões para a Homilia boa. Mas não é tudo que se pode dizer sobre Jesus. E o Evan-
Introdução gelho de hoje diz muito mais! Ele nos ensina que jesus Cristo
é um libertador!
Palavra de Salvação?
Hoje a Igreja celebra a manifestação de Jesus Salvador
ao mundo. Para este fim lança-se mão de uma antiga narra- 3. jesus, um novo Moisés
ção, conservada no Evangelho de São Mateus, que acabamos de
ouvir. Terminou-se a leitura desta narração com a frase: «Pa- Todo povo tem, na sua história, grandes figuras cujos fei-
lavra da Salvação!» Isto suscita a pergunta: «Aquela narração tos são glorificados e cujas vidas são contadas de geração em
antiga pode ter alguma força de salvação para o mundo de geração. Na história pátria temos Álvares Cabral, Padre An-
hoje?» A resposta somente pode ser afirmativa à medida que chieta, Aleijadinho, Tiradentes, Rui Barbosa.,. . O povo judeu
se percebe que aquilo que acontece nesta narração é represen- tinha e tem também as suas grandes figuras históricas: Abraão,
tativo para aquilo que acontece no nosso mundo de hoje. Moisés, Davi, Salomão, os profetas Elias, !saias, Jeremias ...
No tempo de Jesus ·e nos tempos em que se começou a
Corpo narrar a vida de jesus, falava-se muito em Moisés. O motivo
disso era que voltaram os tempos da escravidão e da explora-
!. Manifestar jesus ao mundo crente e d"1crente ção. O país era dominado pelos romanos. As forças armadas
No Evangelho de hoje narra-se a manifestação de Jesus de Roma cuidavam da segurança do império e arrecadavam
Salvador ao mundo daquele tempo, a saber, ao mundo dos ju- pesados impostos para o imperador de Roma. O povo não
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J
agüentava mais esta humilhação e começou a pensar em li- Depois da morte do rei Herodes também josé recebe um re-
bertar-se daquela dominação. Para animar o povo contaram de cado de Deus que, em um sonho e através de um anjo, avisou:
novo a antiga história de Moisés. Moisés era a grande figura «Levanta, toma o menino e a mãe e volta para a terra de Js-
do passado, o grande libertador que libertou o povo da escra- rael. Pois já morreram os que procuravam matar o menino».
vidão do Egito. Mas não era somente ele que libertou o seu Lançando mão de todas estas comparações, os primeiros
povo. Deus estava com ele. E Deus estava com ele desde pe- cristãos narraram a vida de Jesus-menino. Não podiam expres-
queno, desde que nasceu. Contaram que o próprio faraó do sar de uma maneira mais clara e sugestiva que, para eles, jesus
Egito tinha medo das familias numerosas do povo judeu. Ele era um novo Moisés, um libertador, enviado por Deus para li-
queria limitar os !ilhos dos judeus e mandou matar todos os bertar o seu povo.
recém-nascidos. Ora começa a história de Moisés.
O faraó, isto é, o rei do Egito, soube através de magos
que nasceu um menino que seria o futuro libertador de seu po- 4. Quem aceita este jesus Libertador?
vo. Sabendo isso, o faraó e todo o povo do Egito ficaram
preocupados. Corriam perigo de perder esta mão-de-obra ba- Há, no entanto, uma coisa muito angustiante na narração
rata de que se serviam como escravos para construir os seus dos Santos Evangelhos. Nesta narração jesus Salvador é apre-
palácios e palacetes e lavrar os campos. . . Por medo deste fu- sentado ao mundo dos judeus e ao mundo dos pagãos; ao
turo pouco atraente, por medo daquele libertador que acabava mundo dos crentes, que adoravam o Deus único e verdadeiro,
de nascer, o faraó mandou matar todas as crianças ri cém-nas- que receberam as Sagradas Escrituras com as profecias; e ao
cidas. O menino Moisés, porém, escapou a esta mata iça. E o mundo dos infiéis, que adoravam ídolos, acreditavam em astro-
pai de Moisés, contava-se, soube através de um sonho que Deus logia. . . Ora, jesus é mal-entendido, denunciado e perseguido
destinou o !ilho dele para se tornar, no futuro, o libertador do pelo seu próprio povo, pelo rei, pelos príncipes e pelos escribas,
povo. Mais tarde Moisés fugiu para longe do faraó. Mas a isto é, pelos poderosos e os letrados de seu povo. E Ele é pro-
mesma história narra que, ·após a morte do rei do Egito, Moisés curado, encontrado e adorado pelos representantes dos infiéis,
foi avisado por Deus que lhe disse: «Volta para o Egito, pois que são os magos. E o pior é que continuou assim, porque du-
morreram os que tramavam contra tua vida». A esta revelação rante toda .a sua vida terrestre jesus foi mal-entendido, de-
Moisés tomou a sua mulher e seu filho e regressou. nunciado e perseguido pelos mesmos príncipes dos sacerdotes,
Assim contava-se a antiga história de Moisés nos tempos escribas e herodianos, até ser morto e crucificado ...
de jesus, quando os judeus do primeiro século depois de Cris- E se a gente coloca isto no mundo de hoje? Quem aceita
to esperavam a libertação de Roma e do imperador romano. e quem rejeita jesus como libertador de Seu povo? Não há
Ora, os cristãos estavam convencidos de que jesus era este nenhuma dúvida de que também agora existe um povo escra-
novo Moisés, o libertador esperado. Ele não somente veio li- vizado, explorado, humilhado, privado dos bens materiais e es-
bertar o Seu povo da exploração terrestre mas veio também pirituais de nosso mundo moderno. Quando a Jgreja hoje, neste
trazer o Reino de Deus. Por isso narraram a vida do menino segundo domingo do ano de 1979, celebra a manifestação de
jesus igualzinh·a à vida do menino Moisés. Agora não é mais o jesus Salvador ao mundo, é claro que Ela seria muito hipó-
faraó, o rei do Egito, mas Herodes, o rei de jerusalém que, crita se não pregasse jesus como salvador e libertador justa-
através de magos, recebe informações acerca de jesus. Como mente desta parte do mundo que precisa mais de libertação e
outrora o faraó e' o povo do Egito, agora o rei Herodes e o de salvação.
povo da capital Jerusalém ficam preocupados por causa de seus
poderes e privilégios. E como outrora o faraó do Egito assim Conclusão
agora o rei Herodes mandou matar todas as crianças recém-
A .história se repete
nascidas da cidade de Belém e redondezas. Como o menino
Moisés, também o menino jesus escapou a este morticínio. E Quem é sincero não precisa de muita fantasia para reco-
como outrora o pai de Moisés, assim josé sabe através de um nhecer que a história ainda se repete. Que existem ainda mui-
sonho que jesus será o salvador de seu povo (cf. Mt 1,21). tos recém-nascidos como os meninos Moisés e jesus. Muitos
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,--·---

pais de família como o pai de Moisés e São José. Muitas mães,


como Nossa Senhora, preocupadas com a sorte de seus Batismo do Senhor
filhinhos. Que ainda existem faraós do Egito e reis como He-
Pistas Exegéticas
rodes; matança de muitas crianças inocentes; vítimas de morta-
lidade infantil desnecessária; criminosa retenção de salários ... Primeira e Segunda Leitura, ver A Jlfesa da Palavra, Ano A, p. 91-95
Não pensemos que já sabemos quem é Jesus. Justamente os Terceira leitura: Me 1,7·11
que pensam que já sabem quem é J~sus e que pertencem aos
grupos da sociedade que na narração evangélica representam 1. Entre ~~ primeiros cristãos, j!1deus de expres~ão grega_. utiliz~v.a-se o term~
pais, que sigmf1ca ao mesmo tempo dbo e servo. Dai o conceito de filho de Deus
o mundo dos crentes, correm perigo de se enganarem de novo. ser Inspirado tanto pelos textos que falam de ufilho" fpovo. rei, messias) quanto
pelos que falam de "servo". Em Sb 2, o "filho" ê o justo. Aqui, em i\1.c 1, predomina
a dimensão do rei-messias. combinada, porêm. mediante a citação de Is 42. com a
Raul Ruijs, O.F.M. idéia do servo; esta combinação atravessa de modo misterioso todo o Evangelho d~
Petrópolis, RJ Me (por exemplo, a Entrada em jerusalêm).

1. - O batismo de Jesus no inicio do Evangelho de Arfe

Me 1,7-11 faz parte do «início» da Boa-Nova segundo Me. o Evan-


gelho de Me inicia com a atividade de João Batista. Esta não é, como
em Lc por exemplo, um mero prelúdio, o fim do Antigo Testamento.
É a própria hora da salvação, o kairós, que aparece na atuação do
Batista. Me atribui pouca autonomia à tr.adição referente a João Batista.
Falando no Batista, já fala em Jesus. Mesmo o episódio da morte de
João tem seu ensejo na pergunta de Herodes a respeito de jesus, na
ocasião da atuação missionária dos discípulos deste (Me 6,14-29). O
movimento de conversão articulado pelo Batista (Me 1,5-6) é kairó.ç,
tempo de salvação. Sua atuação é cumprimento da escritura (Me 1,2-3),
portanto, tempo da intervenção de Deus. Forma o quadro para o «inicio»,
que é a investidura de jesus como Filho de Deus, ou seja, executivo da
obra escatológica de Deus. Neste quadro, Me resume toda a tradição
profética exortando o povo a «vo1tar::1> (= converter-se) para Deus,
para que Deus se voltasse novamente para ele (cf. Zc 1,3 etc.). A inves-
tidura de Jesus é ao mesmo tempo um ato soherano de Deus e o termo
de uma caminhada histórica de seu povo.

2. - Me 1.7-11

A pericope de hoje é constituída de duas" unidades menores: uma


sentença do Batista, expressando sua relação com o Cristo que vem
depois dele, e a narração do batismo de Jesus, ou melhor, da epifania.
de Deus para Jesus na hora de seu batismo por joão. O laço que une
as duas unidades é de natureza dupla: 1) apologética: procura definir
o lugar certo do Batista no Evento Jesus Cristo; isso era um problema
para os primeiros cristãos (cf. não só Jo 1,6-8, mas também Mt 3,13-14
e Lc 3,21, que nem sequer diz que foi joão que batizou Jesus); 2)
histórico-salvífica: a sentença do Batista prepara a epifania como acon-
tecimento escatológico.
Na sentença do Batista (v. 7-8) delineia-se uma relativa oposição
(relativa,_ porque dentro da oposição existe uma certa continuidade).
João prepara o caminho P.ara um «mais forte», tão forte que ele nem
mesmo é digno de lhe preStar um serviço de discípulo (desamarrar suas
sandáJias). A diferença entre João e o que vem depois riele é dita no

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67
v. 8: João batiza com água, mas o que vem depois dele batiza com o
Espírito Santo. joão realiza a preparação humana, a conversão, enquanto Deus mediante o derramamento de ungüento por Samuel (cf. batismo)
jesus reaJiza a parte divina, a efusão escatológica do Espírito (cf. jl 3,1-5). e imediatamente «possuído» pelo Espírito (1Sm 16,13). Jesus é agora
Reconhecemos nestas palavras um reflexo da experiência eclesial. A <ungido> (khristos) como Davi, ungido pelo Espírito (cf. Is 61,1). Ele
piedade antiga, levada à plenitude no batismo de joão, é o <voltar» é o Ungido escatológico. Continuando a narração, Me frisa apenas a esta-
humano a Deus; e este, em jesus, se «volta» para seu povo, comuni- dia de Jesus no deserto, para mostrar que em torno dele Satanás fica
cando-lhe o dom escatológico, o Espírito divino, assinalado pela imagem sem poder e se reconstitui o paraíso, como anunciava também a pro-
da efusão-imersão (batismo), sinal desta realidade na comunidade cristã. fecia de Is 11,1-9 a respeito do príncipe sobre quem repousaria o Espírito
Quando comparamos o texto de Me com Mt e Lc, constatamos que do Senhor (Is 11,2). A narrativa chega apenas a um certo descanso em
estes dois transmitem· uma interpretação apocalíptica da obra do <!mais Me 1,14-15, quando jesus proclama a presença daquilo que o Batista
forte» que vem depois do Batista: ele batizará, não só ·com Espírito anunciou corno iminente: o Reino de Deus.
Santo, mas com fogo (Mt 3,llc-12; Lc 3,16c-17). Embora escrevendo Esta <pressa escatológica», sensível em Me 1,1-15, continua ainda
depois de Me, i\'lt e Lc acolhem no seu escrito uma palavra da tradição na vocação dos discípulos e na descrição da atividade de Jesus na região
mais antiga, descrevendo a obra do Messias em termos de purificação de Ca!arnaum (1,16s).
e juízo, semelhantes a MI 3. Não se sabe se Me conheceu esta palavra, Como todo o Evangelho de Me, a pericope de hoje é uma «epifania
mas mesmo se a tivesse conhecido, não a precisava transmitir, porque velada». O ser filho e eleito de Deus está envolto no véu do «segredo
não lhe interessa descrever o Evento jesus Cristo como evento apoca- messiânico». Por isso, inicialJÍ1ente, a voz se dirige só a Jesus. Mas,
Jíptico e sim anunciar a Boa-Nova de que com Jesus iniciou a efusão depois de que Pedro proclamou sua fé messiânica em Jesus e este a
escatológica do Espírito de Deus ( cf. At 2, discurso de Pentecostes e corrigiu pela predição da Paixão (Me 8,27-33), os discípulos da primeira
h~ra (Pedro, Tiago e joão) podem presenciar a manifestação da proxi-
também At 10, 2' leitura de hoje). Esta nova realidade - o Reino' de
Deus - é, no início, uma realidade escondida e o é ainda no tempo midade de Deus para jesus (a Transformação) e ouvir, dirigida agora
do 21) evangelho, pois exteriormente o rumo da História não mudou. a eles, a voz proclamando: <Este é meu fiJho muito amado, ouvi_-o»
jesus porém conhecia o Reino como realidade presente. Trazia-a em si (9,7). Porém, somente depois de levado a termo o caminho que os
d_i~cipulos trilharam sem o compreender, não os discípulos, mas o centu-
mesmo. O Reino de Deus estava agindo enquanto as pessoas deitavam
e se levantavam, sem ter consciência do que estava acontecendo (cf. riao romano, prefigurando a Jgreja liberta das categorias judaicas, pode
Me 4,26-29). proclamar: «Verdadeiramente, este homem era filho de Deus» (15,39).
Ora, esta presença escondida do Reino na pessoa de Jesus é o que O pleno significado da filiação divina de Jesus e da missão com a qual
Me expressa na segunda parte do evangelho de hoje, a narração do ele é investido na hora do batismo, só aparece na hora da cruz.
batismo de jesus. Embora a investidura de Jesus seja descrita por Me como experiência
«Naqueles dias» (em que joão proclamava sua mensagem de con~ pessoal do mesmo, não podemos esquecer que, na primeira parte do
ver&ão), «aconteceu» (v. 9a): jesus veio de Nazaré da Galiléia e foi evangelho de hoje (a sentença do Batista), ele foi anunciado como
((~quele que batiza c_ofl! .º Espírito Santo». Isto implica que outros parti-
batizado por joão no Jordão. Mas «logo», saindo da água, ele (Jesus,
e nenhum outro) viu os céus se rasgarem (lOa). Conforme Me (não cipam do mesmo m1ster10 que se revela nele na hora do batismo. Os
conforme Mt e Lc) esta visão é exclusiva de Jesus: só ele sabe onde que recebem o batismo cristão participam de sua missão de filho de
está o Reino: em si mesmo. Reino que irrompe através dos céus rasga- Deus. Nós também deveremos .passar pelo «segredo messiânico», ou
dos (cf. Is 63,19). Desce a bath qol, a voz de Deus personificada em seja, a revelação do insondável plano de Deus na realização de nossa
forma. de uma pomba, e lhe revela, de modo estritamente particular (em missão histórica.
Mt se dirige aos circunstantes): <!TU és meu Filho predileto, em quem
e.aloco me~ agrado». Este texto, inspirado em Is 41,1; 44,2; SI 2,7, signi- 3. - Lugar na Liturgia
fica a eleição de Jesus. 1 O filho predileto não é o queridinho da lingua-
g~m sentimental É o eleito do beneplácito de Deus, responsável pela
R No contexto das leituras de hoje, o lugar de Me l,7ss é claro. As
m1ssao que este lhe confia e herdeiro de sua glória. Assim como Javé duas primeiras leituras oferecem, por assim dizer, as coordenadas para
escolheu Israel por filho, assim seu beneplácito determina agora esta o evangelho: o conceito de Servo/Filho de Deus conforme o AT (Is 42,
escolha de modo mais preciso: Jesus é, em Israel, o eleito por excelência, cântico do Servo) e o anúncio apostó1ico da investidura de Jesus como
em quem as promessas se encontram cumpridas e com quem Deus estará Filho de Deus e Messias a partir do batismo por João, como inicio da
para sempre. nova e definitiva fase da econon1ia salvífica (At 10).
Está narração impressiona por sua concisão, característica que marca Mas devemos observar tambén1 o contexto 1itúrgico mais amplo: a
também todo o contexto deste «início». Ao ler o 19 cap. de Me, tem-se festa do batismo de Jesus é um corolário da festa da Epifania. Por isso
a imp.ressão de uma verdadeira irrupção. A narrativa é apressada, quase insist;mos, no comentário acima, no caráter de epifania que reveste ; a
frenética. A longa citação anunciando a plenitude do tempo (v. 2-3) narração do batismo. É urna· manifestação da irrupção do Reino de
transf?rma-se, sem um momento para respirar, em descrição do Batista Deus em Jesus, porém, descrita do modo característico de Me, ou seja,
ª!1~nc1ando o «mais forte». Então «acontece» (v. 9). O espírito escato- como manifestação velada, porque só à luz da cruz seu pleno sentido
log1co vem, de fato, sobre Jesus, que é investido com ele e por ele fica visível.
levado ao deserto (v. 12-13), exatamente corno Davi foi escolhido por Johan Koníngs
Porto Alegre, RS
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69

j
Bibliografia significado maior. Marcos representa a tradição mais originária
e, nesse sentido, é oportuno circunscrever a ele as presentes
Bibliografia: E. Se hw e 1 z e r, Das E11angelium nach .uarkus (NTD), Ootlnga u considerações. A narrativa abre-se com a proclamação da supe-
1968; J. K o n i n g s, Espirita e iUensagem da Liturgia Dominical, Porto AJegre, EST,
1982; p. 74. rioridade de jesus em relação a João, o que introduz a superio-
ridade do seu batismo em relação ao deste e a um título de
Tema principal batismo no Espírito Santo por oposição . à água. A idéia é
simples, lapidar: radicalmente, espirito quer dizer vento, mas
O batismo de conversão também alento; donde, alento vital, princípio de vida. Este é o
significado pleno que a palavra adquire no Antigo Testament~;
Sugestões para a homilia por oposição à carne, basar, e à alma, nephesh, também consti-
tuintes do homem, o ruah designa o prinéípio divino da vida;
O Batismo de João é um marco: ele conecta e separa a no caso do batismo, é ele oposto ao simples elemento, a água.
Antiga e a Nova Aliança. Vindo como Precursor, João é o anún- Eis no que consiste a superioridade do batismo de Jesus.
cio vivo de uma nova era: a sua palavra e o seu batismo são o Evoca-se On 1,2, mas a um titulo de superação. Introduz-se,
desvelamento que este anúncio tem por conteúdo. A sua missão, em vislumbre, a idéia de uma nova criação.
assim como a sua vida, perde-se na penumbra da história: é Ora, Aquele que batiza no .Espírito vem ao que batiza na
ele vislumbrado apenas através do Novo Testamento que o visa água para ser por este batizado. A tradição cristã, certamente
em seu confronto com o Cristo. A Festa do Batismo de Jesus por oposição à dos discípulos do Batista, viu neste gest~ uma
é um momento da leitura cristã deste confronto; em si, a Festa forma de jesus ser fiel à sua missão, ao seu ser em humanidade.
é de jesus, mas, nela, João é um. sinal que o desvela. Marcos apenas menciona o fato. No contexto de seu evangelho,
O batismo de joão é batismo na água e é batismo de con- este só pode compreender-se a partir do Batismo de João, visto
versão. Estas duas determinações o definem. Batismo na água, este como precursor e profeta da conversão face à iminência do
é ele a imersão no elemento vital: com freqüência, os intérpretes Reino. Batismo no qual alguém batiza - o que, para o tempo,
minimizam este dado. Batizar na água significa imergir no ele- era novidade - , a imersão no Jordão era, nesta interpretação,
mento vital, fazer remontar às origens da vida, restaurá-la em iniciática: como a circuncisão o iniciara no destino total do povo,
si ou em alguns de seus aspectos. Com isto, dissipa-se a idéia esta o inicia à iminência histórica do Reino e à conversão por
segundo a qual o Batismo de joão seria meramente ético: não, ela exigida. A teofania que se segue à saída das águas o con-
ele é ontogenético na medida em que visa a Vida, ainda que firma: ao sair do elemento vital, jesus vê pairar sobre sua
não se proponha valer o seu dom, mas, nos termos do Novo pessoa o Espírito, o princípio da Vida. O batismo de jesus por
Testamento, tão somente o prepare. E ele o faz a um título de joão era a necessária superação da passagem por ele próprio
batismo de conversão: em hebraico, esta palavra expressa uma representada, era a passagem vital ao batismo no Espíri.to.
radical mudança de caminho; em grego, significa uma profunda Acrescente-se ser esta interpretação coerente com todos os sig-
transformação do espírito humano. Trata-se de um transcender-se nificados que se possam atribuir ao simbolismo da pomba:
do homem no que este tem de mais propriamente humano. nuvem luminosa, imagem da esposa, anúncio da Aliança. E a
Proclamado na iminência da manifestação de jesus, é ele prepa- um título de primogênito e, portanto, na qualidade de povo
ração definitiva e remata a Antiga Aliança. Proclamado como escatológico que jesus recebe o Espírito. E o que expressa a
batismo de conversão, ele impõe ao homem um autotranscen- voz que se faz ouvir: o dom da Aliança Nova é o dom da
der-se que esgota as suas possibilidades imanentes e abre-se filiação.
J ao Dom do Absolutamente-Outro. E a este batismo que, com
·1 O Espírito paira sobre Jesus como Servo de Javé, como
certo número de seus contemporâneos, jesus acorre.
1
;
Povo que, chamado à justiça, é Luz das Nações; paira sobre
Ele como sobre as águas originárias, gerando no homem que
O Batismo no. Espírito Santo Ele é a filiação como 1iliação do Povo. Com isto, ele está pronto
para a sua missão; com isto, igualmente, cumpre o Evangelho
jesus veio a joão para ser batizado. Os evangelhos conferem a sua: anunciar jesus de Nazaré como a Boa-Nova, aquele que
a este fato distintas conotações, mas preservam todos o seu

70 71

j
instaura o Reino. Isto vale especialmente para Marcos.
Quarta-feira de Cinzas do Ano R
htício da Campanha da Fraternidade
Conclusão
Pistas Exegéticas
A celebração do batismo no Jordão desvela ao homem a
Como na Mesa da Palavra, Ano A, p. 101-104.
sua condição, mostra-lhe o que é chamado a ser. É necessário
que ele passe do batismo de João ao de Jesus; ao ser batizado,
este opera sacramentalmente esta passagem, que subsiste na
conversão inerente a todo bastismo cristão. Os antigos rituais Tema Principal
assinalaram a seu modo esta necessidade, demarcando os suces-
sivos momentos da conversão, desde a apótaxis à syntaxis, tor- QUARESMA, TEMPO DE CONVERSÃO
nando-se, assim, a sua consciência prática. Ruptura e conversão
são, para o homem de hoje, a mais atual questão, tão radical
é a necessidade de uma opção. Convertido, imerso no Espírito, Sugestões para a Homilia
cabe ao cristão ser luz das nações e é este ser luz que é a
universalidade em sua essência histórica, constituindo a antítese Introdução
de toda a relação de poder e dominação, abrindo-se na comu-
nhão ao Homem segundo o Espírito. A Igreja dá ao dia de hoje um significado que não interessa
às agências de publicidade, aos cartazes de propaganda e aos
Francisco Benjamin de Souza Netto valores da sociedade capitalista em que vivemos. A lembrança
São Paulo, fevereiro de 1981 de que somos pó, de que não temos morada certa neste mundo,
de que a morte é a única realidade inevitável no futuro de nossa
existência, é uma lembrança incômoda para quem acredita que
e> presente histórico é absoluto.

\
Corpo
1. O caráter subversivo da vida cristã

O cristão, ao testemunhar o absoluto de Deus em sua vida,


relativiza todas as outras coisas. Por mais que as ditaduras
queiram eternizar-se, às custas de leis de exceção e da força
das armas, o cristão sabe que, no rumo do Reino de Deus, a
história caminha engravidada pelos germes da libertação. Por
não acreditarem no caráter divino do Império Romano, os cristãos
eram chamados de «ateus». Hoje, ao recusarem aceitar que o
Estado está acima da vontade popular, os cristãos são tidos
como «subversivos e comunistas». Ora, as instituições, como o
Estado, a Pátria, a Nação, são posteriores à comunidade humana
e por ela foram criadas. Da mesma forma, por ela devem ser
modificadas, quando já não correspondem às necessidades de um
tempo ou de um povo.
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1

1
. ••
>.

Cristo, para renascer com ele. Com a ajuda de sua graça, deve-
Sob o sinal das cinzas, os cristãos reafinnam hoje a sua mos combater tudo aquilo que, em nossa vida, impede o nasci-
liberdade de filhos de Deus. Como tal, não têm compromisso mento do homem novo anunciado pelo Evangelho: nossas ten-
definitivo com nenhum sistema, nenhum regime, nenhum partido. dências burguesas, nossos pequenos apegos, o comodismo ou o
O compromisso fundamental dos discípulos de Cristo é com aque- medo que nos impedem uma atuação mais eficaz, nosso fari-
les que mereceram preferencialmente o seu amor: os pobres, os saísmo em só querer fazer aquilo que nos dá vantagem ou pres-
oprimidos, os condenados da terra. tígio, nossa dependência. da televisão, desperdiçando um tempo
que poderia ser útil em outras coisas.
2. O compromisso cristão com os pobres Muita gente acha que a Quaresma é apenas um tempo em
que não se come carne às sextas-feiras. Ora, em nosso país, a
O Evangelho de hoje diz que não devemos ficar contando grande maiória não come carne dia nenhum e, por isso, a Igreja
o que fazemos em benefício dos mais necessitados. Não devemos já nos liberou da obrigatoriedade do jejum e da abstinência
ser como esses velhos políticos que fazem coisas para o povo, de carne. Mas aqueles que não passam necessidade, devem,
em busca do maior número possível de eleitores. Devemos fazer mesmo por uma questão de solidariedade aos necessitados,
com o povo, participando de sua caminhada, vivendo os seus privarem-se da carne hoje e às sextas-feiras. E que façam isso
problemas e ajudando-o a encontrar a sua própria alternativa sem essa atitude farisaica de quem, não comendo carne, enche
política. Nem devemos ser como essas elegantes senhoras que a mesa de peixes e camarões sem compreender o sentido da
não sabem dar ao pobre sem a compensação de um sortido abstinêucia.
chá ou de um variado desfile de modas. O povo não precisa Contudo, o jejum que agrada a Deus, diz o profeta Isa.ias,
de quem dê coisas a ele. Está cansado desse paternalismo que é quebrar as cadeias injustas, libertar os oprimidos, reahzar
passa mel na boca de quem tem fome. Precisa é de quem se dê a justiça. A Quaresma, nesse sentido, é o tempo em que reassu-
a ele, seja solidário às suas esperanças, participe de suas lutas, mimos a nossa vida cristã como um engajamento efetivo de trans-
sirva à sua busca de libertação.

l Uma árvore é conhecida pelos seus frutos - e não pela


sua casca. Todavia, para poder dar bons frutos, é preciso que
ela possua boas raízes. Uma das principais raízes da vida cristã,
formação do mundo, em vista do Reino. Para tanto, mantemos
viva a certeza de que Deus é a nossa única segurança: nem
perseguições, nem prisões, nem a morte, poderão. arr~car-~os
desse Amor que inunda o nosso ser e fermenta a h1stóna atra1da
que nos ajuda a sugar a energia inesgotável do Amor divino, por sua promessa.
é a prática da oração. Essa oração, diz o Evangelho, não deve Frei Betto •
ser feita com alarde, como esses moços de gravata e cabeça Belo Horizonte, MO
i raspada que andam pelas ruas com estandartes coloridos, em
1 defesa de uma Igreja que morreu com o fim da Idade Média.

~
Nossa oração deve ser como o nosso serviço aos pobres: dis-
creta, vivida na intimidade de nosso coração, repleta de silên-
cio capaz de perceber as insinuações do Espírito. Mas, assim
i como só se trabalha efetivamente pelos mais pobres, engajando-
se numa atividade concreta, só se cresce na vida de oração,
reservando a ela, diariamente, o mesmo tempo, pelo menos, que
reservamos às refeições que nutrem o nosso corpo.

3. Quaresma, tempo de conversão

Iniciamos hoje a Quaresma, o período de quarenta dias que


antecede à celebração da morte e da ressurreição de jesus Cristo.
Nesse período litúrgico, devemos também aprender a morrer com
i· 75
74
1
--.::·.,.-· ....


unilateralmente a obrigação de não mais devastar a terra com outro


Primeiro Domingo da Quaresma dilúvio. Mesmo o sinaJ, o arco-íris, depende só de Deus. Manifesta
isto mais uma faceta do conhecimento que o redator bíblico tem de
Pistas Exegéticas Deus, de seu amor compassivo e perdoador.
Bibliografia: P l r o t - C 1 a m e r, La Sainte Blble, t. 1, 1, Paris, Letouzey et
Primeira Leitura: 6n 9,8·15 Anê; C o r d e r o, Max. G., Bib'.ia Comentada, l\ladrJd, BAC.

O redator, ou redatores, do Gênesis certamente tiveram conheci.. Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
mento de mtútas versões de um dilúvio catastrófico. Conhecemos hoje Santa Maria, RS
algumas dessas narrações da antiga Babilônia tm que a lenda se
mistura ao mito e ao politeísmo. '
.. O auto~ bi~lico assume essa história antiga e no-la apresenta des- Segunda Leitura: 1Pd S,18-22
m1tizada e Ilummada por outra teologia, de acordo com a compreensão
que ele tem de Deus e da história dos homens. E como a experiência No contexto anterior (vv. 1-17) aparecem várias exortações às es-
fundamental da história do povo hebreu com Deus se dá através de posas, aos maridos. Os cristãos são intimados à caridade e a serem
uma Ali~nça, o ~utor bíblico nos apresenta Deus fazendo uma Aliança constantes, cheios de esperança e brandura, mesmo nas perseguições,
com Noe, seus ftlhos e com todos os seres vivos, após o dilúvio. fazendo sempre a vontade de Deus. Os apóstolos em suas cartas, quando
exortam, procuram motivar com o exemplo de Cristo. Aqui (v. 18)
• A narra_ção do dilúvio de Gn &-9 resulta da fusão de duas tradi· Pedro continua expondo a idéia de sofrimento e seu sentido redentor
ç?e~: a ]avista e a Sacerdotal. Este trecho, Gn 9,8-15, pertence à tra-
d1çao sacerdotal (P) e reflete a mentalidade do autor e do grupo em Cristo. Para tanto apela para as atitudes de Jesus e para as pro-
sacerdotal. messas do batismo. Cristo, inocente, morreu vítima de nossos pecados.
Como em 2,21-25, alude-se à profecia do Servo de Javé (Is 53). A
É a_ primeira Aliança que a Bíblia apresenta de forma expHcita. morte- de cruz foi um sacrifício pelos pecados dos outros, garantindo
Nela estao presentes alguns elementos sobre os quais será interessante grande descendência e prosperidade no Reino de Deus. Da mesma forma,
refletir. Esta Aliança, situada pelo autor sacerdotal no fim do dilúvio os cristãos, quando perseguidos, devem oferecer suas vidas à justiça
manifesta o amor que Deus tem pelo homem e por todas as demai~ divina, qual vítima de pecados pela injustiça dos outros. Assim sendo,
criaturas. A Aliança não é feita só com Noé e seus filhos mas «:com conduzirão homens a Deus e terão descendência. É morrendo que jesus
todos. o~ seres vivos» (v. l_O). É aJgo um tanto estranho, ~o conjunto
1 da B1bha. Fala-se nela mudas vezes de Aliança com os homens mas
abre caminho a uma atividade maior - a da ressurreição (v. 18b).
aqui é a única vez que se fala de uma A1iança de Deus també~ com Não se preocupem os cristãos com substitutos, pois, sacrificando a
i os animais. Certamente o n1otivo é porque, juntamente com o homem
os animais também foram atingidos pelo castigo do di1úvio. Em tod~
vida, inauguram uma atividade mais frutuosa. Enquanto desfalecia no
corpo, no espirito Jesus atraia todos a si (Jo 12,32). O mártir e
o· caso, a compreensão que o autor bíblico tem do amor de Deus semente de cristãos. A morte do cristão faz maravilhas no campo do
c?mprensão que ele hauriu sobretudo ao longo das experiências histó~ espírito. Cristo tornou-se o modelo para os mártires: com sua morte
ricas de seu povo, faz que ele nos mostre Deus inclinando-se com deu a Deus a devida satisfação por nós, inaugurou uma atuação espi-
compaixão, misericórdia e amor para com o homem e os animais E ritual mais. vital, atingindo, entre a morte e ressurreição, os que esta-
mais: não ~ó se inclina com amo~1 mas compromete-se com uma Ali~nça vam no «cárcere» (v. 19; «infernos»), segundo cria a Igreja primitiva.
(o que equivale a um juramento) a não mais destruir os homens e os Naturalmente Pedro emprega imagens do Judaísmo tardio. Tal «cár-
animais com -outro dilúvio. cere» seria talvez um lugar central da terra - o «sheol» (o «limbo»
E como sinal e garantia desse compromisso de benevolência toma dos Santos Padres, o «seio de Abraão» do NT), lugar tenebroso, para
o arco-íris. Este sinal, que periodicamente aparece no céu, desPertará onde Jriam as almas dos bons e dos maus. Posteriormente os rabinos
nos ho_mens a memória da benevolência divina. dividiam o sheol em duas seções: uma, de terror e penas para os maus,
H~bitualm~nte a Ali~nça é ligada a nm sinal externo que serve de
- outra, de esperança para os bons. Jesus teria descido para esta
...r memonaJ. Assim na Ahança de Deus com Abraão o sinal é a cir-
cuncisão (Gn 17,1-14); na Aliança entre jacó e L~bão, o sinal é um
última, a fim de levar noticias de si, de sua morte e ressurreição.
Não transparece com segurança do texto, se o fez para redimir ou para
~o~te de pedras (Gn. 31,43-54); na Aliança do Sinai, segundo a tra-
julgar. O contexto sugere antes a boa-nova da salvação (kerYssein).
d1ç~o sacerdo~a!, o smal é a observância do sábado (Ex 31,12-17).
Cristo desceu aos 4'.infernos» em sua alma humana, já gloriosa, unida
Assim o arco-1r1s, que era um fenômeno naturfil assume aos olhos dos à divindade, mas separada do corpo, o qual jazia no sepulcro. De tal
hebreus, um valor e um sentido religioso. Qu ando eJ~ aparece, após
1
figura depreendem-se duas verdades:
a tempestade e a chuva, é visto com alegria como anúncio de bom - A salvação de Cristo, sacrifício único e suficiente, atinge todas
tempo e sinal da benevolência divina em relação aos homens. as esferas do mundo, concretizando o juízo e a graça de Deus;
Outr~ elemento a considerar nessa Aliança é a unilatera1idade do - Cristo é testemunha fiel que anuncia o fato da. redenção misericor...
compron:1ss~. Em todas as demais Alianças sempre há uma obrigação diosa de todos, inclusive dos inimigos; é o justo (At 3,14; 7,52; 22,14;
que se tmpoe ao homem. j\qui Deus toma a iniciativa e também assume cl. Is 53,11) que nos leva a Deus.
i; 77
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.:·'
'
1
A menção da morte e ressurreição de Cristo deu ensejo a uma Terceira Leitura: Me 1,12·15
digressijo dogmãtica sobre a sua cdescida- aos infernos» (v. 19) sobre
o sentido típico do dilúvio (v. 20) sobre a ascensão de CrisÍo e a «Está próximo o reino de DeuS»
subord!nação a Ele de todos os e;pfritos bons e maus (v. 22). Hã
paralelismo com Ef 1,20-22. 1. No inicio de seu evangelho o evangelista fornece logo a chave
:; Não s~ trata de anjos decaidos, mas dos homens, porquanto se
alude aos. mcrédulos d?, te!"po de Noé. Pedro passa da situação geral
para entender o resto do livrinho. Todo ele há de ser entendido a
partir de duas dimensões. Uma dimensão «horizontal» em que aparecem
'I
,,:1
da humamdade para .eptSód10s concretos da História da Salvação, quando
Deus, antes de castigar, espera benignamente: o tempo de descrença
homens mortais como João Batista, os habitantes de Jerusalém e da
Judéia e Jesus de Nazaré da Galiléia, em um cenário de realidades e
~ue. Prec~~eu u . dilúv!o e no final dos tempos. Naquele, o arauto da eventos que pertencem ao nível do mundo e da história humanos (Me
1ust1ça d1vma fo> Noe, - neste, Jesus. Portanto há possibilidades de 1,1-9). E uma dimensão «Vertical» em que aparecem seres de um outro
",, conversão para quem quiser. Como Noé e Cristo' também aos cristãos mundo, não-histórico, sobrenatural: o Espírito Santo, uma voz celeste,
assiste o dever de apregoar a justiça divina. EnÍre os pecadores JPd Satanás, anjos (Me 1,10-13). Mais do que por um interesse puramente
discerne o grupo dos que viveram no tempo de Noé (v. 20). 'Fã-lo histórico, a seqüência em que aparecem estas duas dimensões parece
para realçar a eficácia da morte redentora de Jesus, a qual abrangeu inspirada por uma teologia e cristologia; ou, então, por uma «crono-
tam?~m. os grande~ pecadores de outrora, dignos do maior castigo - logia» da ordem da História de Salvação que apresenta o conteúdo do
o .diluvio. Com efeito, enquanto Noé fabricava a Arca eles se mostra- evangelho que segue como a realização escatológica das esperanças
ram tot~Imente incrédulos, - mas ao ver o castiio, já inevitável, e profecias do Antigo Testamento (cf. Me 1,2-3) na figura histórica
arrependeram-se e pediram perdão, aceitando a morte como expiação concreta de Jesus de Nazaré da Galiléia. Deus age no mundo através
de seus pecados. d'Ele. Por isso chama-se o conteúdo do livrinho que apresenta a ação,
A imagem da arca transportada pelas águas na qual se salvou Noé paixão e ressurreição deste homem Jesus de Nazaré «início da Boa-
com sua familia sugere a Pedro um paralelismo com o batismo cristão Nova de Jesus Cristo, Filho de Deus».
que nos salva «passando pela água». Esta, motivo de ruína para 2. O Espírito que Jesus recebeu no batismo impeliu-O para o
muitos, foi também meio pelo qual Deus salvou a Noé e os seus. deserto. Em Me o deserto é o lugar onde a gente se encontra com
Nas águas do dilúvio o Apóstolo vê uma figura da ãgua do batismo Deus (e!. 1,35; 6,31). Na Biblia é o lugar onde se tomam as grandes
que salva os que o recebem. «Preparar» a Arca é mais do que «fabricã- decisões. Este aspecto é acentuado pelo número 40. Durante quarenta
la». .É agir de acordo com um plano sábio. O número 8, como coroação anos Israel foi provado no deserto (Dt 8,2s.15s). Quarenta dias e qua-
da semana (7 dias), tornou-se símbolo de duração infinda. Aliás os renta noites Moisés permaneceu na montanha (Ex 24,18), orando e
batistérios eram antigamente octogonais. ' jejuando (Ex 34,28). No deserto Jesus defronta-se com o grande adver-
A água é instrumento de salvação pela qual os cristãos foram sário do reino de Deus, Satanás. O detalhe de que «vivia com as feras
conduzidos ao Lenho. A «arca> não é tanto símbolo da Igreja, quanto e os anjos o serviam» pode ser interpretado como sinal da vitória de
do Lenho redentor da cm, (2,24). Em IPd 3,21 não se refere direta- jesus sobre Satanás e da inauguração da era messiânica. Certamente
mente ao tempo de Noé, mas à realização do batismo. O importante na medida em que evocam traços da narração do estado paradisíaco
não é a semelhança exterior - a aplicação da água. Conta mais o de Adão antes da queda, lembrados em várias profeclas messiânicas
interior: Os homens obedecerem a Deus. O batismo é sobretudo uma como Is ll,6s; SI 91,11-13 e o Testamento de Neflali (livro apó-
promessa, um contrato, um «obedecer de coração à regra de doutrina çrifo, n• 8).
na qual fostes instruídos» (Rm 6,17). O principal compromisso do ba- E. Schweizer, autor de um comentário de Marcos, muito conceituado,
tismo é a promessa de acolher sempre f' em tudo a santa vontade de escreve a respeito da passagem: «Decisivo não é, quantos deta1hes são
Deus e, assim, forjar uma boa consciência. históricos e o que se passou na alma de Jesus. Decisiva é a pergunta
O v. 22 mostra como Jesus, antes, se submetera às autoridades que a comunidade e Marcos nos propõem: Em jesus veio realmente o
humanas, entregando-se à morte. Agora, é glorioso, subiu aos céus novo Adão que desfez a queda original? Em Jesus veio realmente o
e está junto a Deus Pai. Tudo lhe está sujeito: os Anjos as Potes- prometido do Antigo Testamento através de quem o céu e a terra se
tades e as Virtudes - os espíritos bons e maus. ' reconciliam? Em outras palavras: Deus agiu realmente através de jesus?
Somente a fé pode responder a estas perguntas, como o tentam fazer
BlbUogra/la: S a 1 g u e r o, J., Blblla Ccmentada VII BAC (Madrid) 1965· Marcos e a comunidade quando proclamam: Em Jesus abriu-se de novo
Se h w a n k, B., A Primeira Carta de Pedro Apóstolo, tràd de A Well VozesÍ
0 o céu. N'Ele Deus retomou de novo Sua obrà de salvação. Desde então
PetrópoJis 1961; F r a n e o, R., Cartas de S. Pedro, La sâgrada EscrlttÍra NT
111, BAC (Madrid) 1962. ' ' o Espirito de Deus está agindo de novo. Começou a guerra de Satanãs
e a paz de Deus na terra. Quem se aproxima de jesus, aproxima-se,
Matheus F. Giuliani, S.A.C. pois, do céu aberto e do deserto, onde o impulso do Espírito leva à
Santa María, RS luta e à tentação; e expõe-se ao mesmo tempo ao ataque de Satanâs
e à paz de Deus no meío das feras» (p. 22s).
3. Me 1,14-15 é um «Sumário». Marcos lança mão de tais sumários
para marcar o andamento da narração. Outros exemplos de sumários
78
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I'
~~--

são 1,39; 3,7-12; 6,6b; etc. As vezes servem para introduzir .urna ou Depois de Me 1,15 caberiam logo as cenas de 1,2lss, em que se
algumas passagens; outras vezes para encerrá-las. Em Me 1,14-15 cul- desenvolve o programa contido no sumário de 1,14-15. Na «doutrina
mina o prólogo do evangelho de Me e inicia-se a vida pública de jesus. nova» (l,27) de jesus, «ensinada con1 autoridade» (1,22.27), manifesta-se
A prisão de joão Batista era para jesus o sinal para começar a que a proclamaçã.o de 1,14-15 não é uma palavra vazia (cf. a expulsão
Sua pregação. O verbo «prender» ou <entregar» (à prisão e à morte) do demônio de Me 1,23-26 e a interpretação de Lc 11,20: <Se expulso
era usado para criminosos e, especialmente no aml;>iente cristão, para os demônios pelo dedo de Deus, certamente é chegado a vós o Reino
mártires. No NT muitas vezes é usado para indicar a sorte de Jesus de Deus»). Mas também as narrações da vocação de Simão e André
que foi <traido» por Judas e «entregue> aos chefes do povo, a Pilatos (I,16-18) e de Tiago e João (1,19-20) ilustram uma parte desta pro-
etc. (9,31; 10,33; 14,IOs.18.21.41s.44; 15,1.10.15). Usando-se este verbo clamação. Elas mostrapi o que significa em concreto a resposta ao
em 1,14 sugere-se que a sorte de João Batista é semelhante àquela de apelo ~convertam-se e creiam na Boa-Nova». O chamamento de Jesus
jesus, e vice-versa. ao discipulado provoca ·a renúncia às posses (cf. 1021.28) e aos laços
familiares (e!. 10,29). '
4. Apesar desta prisão continua a pregação de uma nova aurora
de ingerência de Deus na história dos homens. A atuação de Jesus Bibliografia: Os comentários de Ta y 1 o r, Se h w e i z e r e Ma 1 y. \V.
Tr!lling-Kahlefeid, em EuE l (1969), 116-124; B. van Jersel, Ecn
não se reduz, porém, a uma mera continuação daquilo que João Ba- Beg1n (1973); Met betrekking tot jezus (1974); Teologia e o trabalho exegético dos
tista iniciou. Ela traz a plenitude da Boa-Nova. O tempo de prepara- detalhes. Um exegeta e teólogo sobre A1arcos 1 1-15 em· Conci:ium 70 {1971/JO),
1242~1249. • ' .
ção é substituido pelo tempo da plena realização ou da plenitude: Raul Ruijs, 0.F.M.
«Comoletaram-se os tempos. chegou o reino de Deus» (l,15a). Petrópolis, RJ
O cenário desta realização é Galiléia e não judéia; é o interior
em redor do Lago de Tiberíades e não a capital jerusalém. O evan-
gelista Mateus destaca de maneira mais ·explícita o sentido salvífico Tema principal
desta circunstância (cf. Mt 4,12-16 e a Mesa da Palavra, Ano A, p.
125*-127*). Mas também para Marcos esta indicação provavelmente já Conversão como um abrir-se ao imperativo
s~ revestiu de um sentido teológico e não somente geográfico. Gali..
lé1a não é somente o cenário do ministério terrestre de jesus mas tam- evangélico da missão
bém o lugar de encontro com o Senhor ressuscitado (cl. 'Me 14 28·
16,7). A grande decisão toma-se longe dos «centros de decisão» e c~m~ Sugestões para a homilia
s: e~plicita logo na vocação dos primeiros discípulos (Me 1,'16-20),
nao Junto aos que têm .:poder decisório», mas a simples pescadores
(cf. J. Konings no comentário de Me 1,14-20 na Mesa da Palavra A palavra de ordem com que se abre a celebração da Qua-
Ano B, p. 82*-84*). ' ' resma e, com ela, a mais solene celebração da Páscoa, é con-
versão. Por sua origem hebraica, esta palavra indica uma radi-
5. Jesus «prega a Boa-Nova». Não há dúvida de que nela se vê cal mudança de caminho; por sua forma grega, ela significa
a realização plena do anúncio da Boa-Nova de ls 62,1-2; 40,9; 52.7.
Mas não somente destes determinados versículos de Is, mas também a transformaçãQ interior a mais profunda, uma revolucão da
do contexto todo · em que estão inseridos. Este contexto está cheio de mente ou do espírito, do que o homem tem de mais próprio.
expressões de expectatjva e de confiança de que Deus se manifestará Na líturgia da palavra deste Primeiro Domingo da Quaresma,
de novo e salvará o povo que tanto sofria pela marginalização e a idéia e o ideal de conversão é proclamada à luz dos sinais
humilhação que se sentia perdido, abandonado e esquecido, até por
Deus mes"!o ~cf. Is 40,27; 49,14). Toda a atuação de Jesus, em palavras do dilúvio e do deserto, para abrir-se ao imperativo evangélico
e obras, e vista e apresentada corno a reaHzação tanto destas profe- que é a missão.
cias como da expectativa e da confiança em Deus que o povo vivia. O dilúvio pertence à mais remota simbologia da humanidade.
1 6. Jesus proclama a chegada da plenitude dos tempos e do Reino. Na Bíblia ele põe termo a uma idade e é o marco de uma
1
A vinda dos mesmos não é proclamada condicionalmente isto é em ruptura entre Deus e esta mesma humanidade, mas desde o seu
! dependência da reação dos homens. Não há dúvida de qu'e os ho'mens
hão de agir e de tomar posição; hão de parar e fazer uma volta com-
pleta. Mas tudo isso é e sempre será reação à ação de Deus em Jesus,
anúncio ao seu consumar-se, ele se abre a uma aliança defini-
tiva e cede-lhe lugar, como se ela devesse emergir de suas
águas. Ê a ambivalência da água, símbolo da vida e da morte,
resposta a uma proposta divina. Eles hão de mudar de mentalidade
e ~e vida, não para que venham Deus e o Reino de Deus, mas porque mas, aqui, sinal do primado definitivo da vida. O compromisso
estao chegando; Co~o uma cidade se preparava, naqueles tempos, para com Noé é uma primeira aliança; é assim que a tradição que
receber um rei ou imperador, cuja chegada era anunciada como boa- constitui a primeira leitura o compreende. Já então esta aliança
nova ~través ~e arautos que precediam o cortejo, assim os homens e a se firma com uma humanidade nascida da fidelidade. A inter-
humanidade hao de voltar sua atenção para Deus que vem e hão de
preparar-se para o Reino que está chegando. pretação cristã do dilúvio, feita pela segunda leitura, nele divisa

80 81
a pr~figuração do Batismo, o seu tipo. O homem imerge na a dinâmica de uma verdadeira m1ssao. A expectativa de uma
água, sinal da vida e da morte, para submeter o que nele é revolução é, muitas vezes, o marco desta carência, particular-
velho e caduco à força capaz de o diluir, à força do elemento mente quando não assume a forma de uma prática. Certamente
originário. Mais uma vez afirma-se o primado da vida. É o nota-se nos me~os_ cristãos uma reação, uma obsessão por forma~
momento da ruptura e da conversão, da apótaxis e da sjmtaxis novas de eclesialidade e de existência social. Mas é necessário
dos antigos ritos batismais. A conversão é um voltar-se para n~o superestimar o estágio atual do processo; este se encontra
uma direção nova, um empreender um novo caminho aberto amda nos seus primórdios. No seu todo, o cristianismo católico-
pela fé e nela divisado. Por isso o batismo cristão tem no ato romano _continua a carecer de opções sujeitas a progressiva
de fé, na sua profissão pessoa), um de seus elementos essenciais. maturaçao. Ele perdeu quase todo o seu caráter iniciático: a
A ênfase na fé como um total confiar-se percorre toda a Bíblia conversão não tem nele momentos precisos e devidamente assi-
e subjaz à aliança cósmica e à sua leitura cristã. Na liturgia do ~alados e a fé corre o risco de se restringir a simples forma-
presente Domingo é ela fecho da proclamação evangélica. lismo. Nesse sentido, a Quaresma é um tempo oportuno: o
Esta principia pelo sinal do deserto. Com ele confere-se à temp? da redescoberta da conversão e da fé, a era do dilúvio
existência histórica de jesus o significado de um êxodo. A ten- e .a !dade do deserto, o tempo pleno e, por isso, o tempo da
tação ou prova do deserto tem este significado que Marcos m1ssao. ~ompreenda-se: não se trata de restaurar uma praxe,
enuncia em seu núcleo, sem a desdobrar. É uma prova, um ma_s d7 mst~urar a práxis adequada ao Espírito, tal como Ele
combate no qual jesus se comporta como o homem da Nova a 1~sp1ra ho}e. ~s lovens movimentos de Igreja são uma aspi-
Aliança. Nesse sentido, a tentação abre-se a toda a vida do raçao desta mspiraçao. Para eles o tempo é decisivo: é o Tempo
Messias, não constituindo um fato isolado, mas um sinal de da Nova Aliança.
todo que há de ser a sua existência. A idéia de êxodo perfaz Francisco Benjamin de Souza Netto
a de conversão, palavra com a qual, triunfante da prova, ela São Paulo, fevereiro de 1981
há de iniciar o ministério de anunciar o Reino. O êxodo é a
afetiva conversão de um povo; o evangelho deste Domingo
é o anúncio de sua inauguração. jesus o empreende e, atraindo
a si aqueles que são marcados pela fé, faz deste êxodo a pro-
gressiva e consciente gênese de um povo novo. Com isto, desde
o seu abrir-se, a Quaresma põe o cristão face à Páscoa, sacra-
mento e realidade deste êxodo. A aliança cósmica, feita histórica
entre Abraão e Moisés, alcança a sua plenitude, mediante a
passagem do batismo de joão ao de jesus. O tempo chegou à
sua plenitude, o Reino está próximo: a conversão pregada por
joão é reiterada, abre-se à fé na Boa-Nova e toma forma na
missão de jesus. A ênfase coloca-se no novo. Não se pode
deixar na sombra a idéia de novidade: todo o novo é exigente
de conversão e de fé. A pregação de jesus afirma a necessidade
de ambas e, a partir delas, prepara, passo após passo, a Nova
Aliança firmada na Ceia e tornada efetiva na totalidade do
Evento Pascal.
Não se pode deixar de sentir o quanto tudo isto é atual.
Não é possível divisar nos sinais do dilúvio e do deserto uma
simples questão de hermenêutica: eles remetem à vida e à vida
mediatizada pelo êxodo, à vida sob a forma da história. Homem
de um sistema, o homem contemporâneo carece de conversão e
a sua fé tende a dissolver-se na simples crença; falta-lhe, enfim,

82 83
Segundo Domingo da Quaresma Mas o que se salienta e se agiganta no relato do sacrifício de
Isaac é a grandeza da fé de Abraão. Ele é alguém que crê até o
absurdo, porque tem a certeza que Deus é poderoso e bom para
Pistas Exegéticas conduzi-lo à realização de suas promessas, sejam quais forem os ca-
minhos que Ele o obriga trilhar.
Primeira Leitura: 6n 22,1.2.9a.10·13.15·18
Bibllografla: Piro t- C J ame r, La Saiote Bible, t. I, 1, Paris, Letouzey et
Ané; Cor d e r o, Max. O., Biblia Comentada, l\ladrld, BAC.
A Liturgia de hoje seleciona alguns versículos de Gn 22, para não
tornar muito extensa a leitura. Mas nós devemos considerar o capitulo Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
na sua totalidade. Ele pertence à chamada tradição Eloísta e é conside- Santa Maria, RS
rado um dos mais belos trechos dessa tradição, pela sobriedade, pela
grandeza dramática e contida da narração. Segunda Leitura: Rm 8,Slb-34
Já de início, o autor adverte que Deus submeteu Abraão a uma
prova, como para prevenir o horror que os sacrificios humanos causavam Paulo, antes de abordar a questão dos judeus (c. 9), eleva a
aos hebreus (cf. 2Rs 3,27). Sabemos que os cananeus, em certas circuns- Deus, numa linguagem triunfal, litúrgica e lírica, um hino ao seu amor.
tâncias, ofereciam sacrifícios humanos, especialmente de crianças. Nele manifesta sua esperança-certeza de que Deus é o único refúgio
O narrador não se detém a analisar os sentimentos de Abraão. do homem. Há poucos dias vi essa pergunta retórica de Paulo no pára-
Mas coloca toda a força do sentimento nas palavras de Deus, em que choque de um caminhão: «Se Deus está conosco, quem será contra
Ele recorda tudo o que significa Isaac para Abraão. Deve ter sido nós?» A resposta é, certament~, nada e ninguém. Ou melhor, poderão
fascinante e tremendo para Abraão seguir esse Deus. Mandou que dei- estar contra nós os homens e o mundo, mas temos a certeza de que
xasse sua terra com a promessa de outra terra e ele não passa de não prevalecerão, pois nosso aliado é imbatível, não perde nunca. Aqui,
um nômade. Prometeu-lhe uma numerosa descendência, e por muitos Paulo retoma Rm 5,5-8, onde mostra que a esperança cristã, fundada
anos não tem filho. Quando, finalmente, tem Ismael e Isaac, é obriga- no amor de Deus para conosco, não poderá deixar lugar para inquie-
do a mandar embora o filho da escrava, porque Isaac será o único tações. Nem mesmo a morte poderá atemorizar o homem, pois também
herdeiro. Agora que a ferida da despedida de Jsmael estava cicatri-. ela foi vencida (JCor 15,54).
zando e parecia que teria finalmente paz, Deus vem e lhe pede que O vocabulário do trecho de Romanos (por nós - contra nós) sugere
ofereça Isaac em holocausto. um processo semelhante aos que encontramos em ]ó I-2 e Zacarias 3.
O texto, na sua bela sobriedade, diz que Abraão, já de manhã, fez O texto mostra então a manifestação concreta do amor de Deus, e nos
ps preparativos e partiu. Nenhuma palavra, nenhuma exclamação, ne- versículos seguintes à nossa leitura elenca os opositores deste amor:
nhum pedido de explicação! O texto dá a entender que a dor não tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo e espada, mas nem
abafou a fé, mas antes ajudou a aprofundá-la Mostra-se isto pelo tudo isto ou as criaturas terrestres e celestes, nem o destino poderão
diálogo de Isaac com o pai: «Onde está a ovelha para o holocausto? se opor à ação do amor misericordioso de Deus em nós. São levan-
- Deus providenciará, meu. filho> (vv. 7-8). tados questões e problemas contra o homem justo, e ele poderá até
Chegados ao lugar do holocausto, o pai certamente manifestou a duvidar, no entanto sabe ele que pode ter a certeza da salvação, quanto
lsaac a ordem de Deus. Deve ter sido um momento terrível para um à parte que depende de Deus, salvação objetiva. O ter-nos dado seu
coração de pai. Isaac aceita, obediente, o desígnio divino. próprio Filho (OI 4,4) é a garantia segura de que, com Cristo, Deus
nos dará também os auxílios necessários à sa!vação. Convém, porém,
Mas, justamente no momento supremo, intervém novamente a voz lembrar que a certeza não exclui o combate da fé, pois o mundo e
de Deus, para impedir a imolação de Isaac. Em seu lugar, é oferecido os homens não estão ainda transformados, e o Deus que nos leva à
um cordeiro que, providencialmente, estava por ali enleado pelos chifres vitória não nos poupa das provações (l]o 5,4)'.
num espinheiro. Esta substituição da vítima humana por um cordeiro Corno Abraão, Deus não poupou o seu próprio Filho (Gn 22,16) e
está de acordo com a legislação mosaica, que ordenava oferecer um o entregou pelos pecados nossos (cf. Is 53,6). Tomou a iniciativa da
cordeiro como resgate pelo primogênito (Ex 13,13; 34,19-20). salvação, reconciliou os homens e o mundo consigo (2Cor 5,18) pelo
A obediência de Abraão é recompensada. Deus declara-o por um sacrifício de Cristo. Desse modo todas as tribulações do homem não
juramento. Significa a certeza absoluta, para Abraão, do cumprimento o afastarão de Deus e seu amor, mas será o nosso sacrificio unido
das promessas que Deus tinha feito. ao de Cristo que nos levará a sermos glorificados com ele, já que
O sacrifício de Isaac é visto pelos Santos Padres como uma pre- fomos reconciliados com Deus nele. Em Cristo, Deus está do nosso
figuração do sacrifício de Cristo. E há diversos elementos que con- lado, está a nosso favor, é por nós. Até nossa morte torna-se vitória,
correm para isto: Isaac é filho único; é muito amado por Abraão; porque com Cristo. Nossa sorte estava nas mãos do juiz supremo, mas
Isaac se presta docilmente. Por outro lado, justamente porque Isaac ele não nos condenou porque Cristo advogou a nosso favor (Hb 7J25;
não é o sacrificado, mas em seu lugar é imolado um cordeiro, muitos Is 50,8s) e fomos q:agraciados» e «justificados».
vêem nesse cordeiro uma prefiguração de Cristo que morreu por nós. Os últimos versículos têm sua estrutura discutida: é interrogação
Cremos que nos dois casos é legítima a prefiguração, porque nenhuma ou não? O fato é que não se exclui a possibilidade dos eleitos serem
prefiguração bíblica esgota a realidade que é Cristo. acusados, mas simplesmente afirma-se que eles o serão em vão. Vale
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lembrar que «eleito» não é um termo exclusivista, mas diz respeito a
todo aquele que recebe o dom de Deus. Sabemos que Deus quer BRILHOU COMO
salvar todos os homens (lTm 2,4), mas de fato nem todos se salvam. O SOL
Nos sinóticos, eleitos é a comunidade escatológica (Me 13,20.22.27 e e suas roupas se 3. e suas roupas E SEU VESTJMENTO
par.); no Apocalipse são os que venceram e perseveraram até o fim ficaram resp1adecentes
(17,14), nos outros escritos do Novo Testamento é um termo técnico tornaram alvas e tão alvas ALVO. FULGURANTE.
para indicar a comunidade cristã e cada um dos fiéis. COMO A LUZ. como
não as pode alvejar
Cristo foi acusado e condenado em nosso lugar, mostrou que era lavadeira alguma na
inocente, Deus o ressuscitou (Rm 1,4) e ele está sentado como nosso terra.
advogado e intercessor junto de Deus. A medida que nós formos um 3. E EIS QUE 4. E 30. E EIS QUE
com ele, como ele serem.os declarados inocentes, agraciados e justifica- lhes aparecera(m) apareceram-lhes
dos. Embora acusados não seremos condenados, mas salvos. DOIS HOMENS
BlfJ/iograjia: K. B ar t h, The Epistle to the Romans, Londres 1968; P. J.
lhe falavam; eram
L e e n b a r d t, EpJstola aos romanos, São PauJo 1969; .i\l. j. L a g r a n g e :epttre Moisés (1) e Elias (2) com Moisés Moisés (1) .e Elias (2),
aux romains, Paris 1950. ' Elias (2) (!)
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. 31. que,
Paulista, PE ENVOLTOS EM
OLõRIA
e eles estavam
Terceira Leitura: Me 9,2-10 conversando com Ele. conversando com FALAVAM
Jesus. DE SEU exoDo QUE
«Jesus proibiu-lhes contar o que tinham visto» IRIA COMPLETAR EM
JERUSALt!J\I.
.. 1. A NarraçiJ.o da Trllll$ffguração é multo privilegiada no novo Leclonãrio 32. ORA, PEDRO E OS
Ltturglco. Nos anos A, B e C é Jida conforme Mt Me e Lc no segundo domingo
da. quaresma. A versão de Me é lida no sábado da• sexta semana do tempo comum. COJ\IPANHEIROS
Alem disso ocorre na Pesta da TransfiguraçiJ.o do Senhor que, quando coincide com ESTAVAM COM MUITO
um domingo, tem preferência sobre a l'illssa do Domingo durante o Ano.
Na Mesa da Palavra, Ano A = REB 37 (1977/147), 111•-1ao• (R. Ruijs) SONO; AO DESPERTA-
considerou-se mais o contexto em que se encontra a Narração da Transfiguração
nos evangelhos slnõtlcos; na Mesa da Palavra Ano A = REB 38 (1917/149) REM, PORÉM, VIRAM-
451"'-454" (0. Selong) prestou-se mais atenção à~ erõpria narração. Aproveita-se bojé LHE A OLõRIA E OS
da oportunidade para apresentar uma comparaçao sinótica das três versões da DOIS HOMENS, QUE
Narração da Transfiguração conforme Mt, Ailc e Lc.
ESTAVAM COM ELE.
33. E ACONTECEU
2. Sinopse QUE, QUANDO SE
AFASTARAM D'ELE,
MI 17,1-9 Me 9,2-10 Lc 9,28-36 4. Tornando, então, a 5. E tomando a
palavra, palavra
28. ORA, ACONTECEU Pedro disse a Jesus: Pedro diz a Jesus: Pedro disse a Jesus:
DEPOIS destes discursos <SENHOR, «Rabi, «Mestre,
mais ou menos OITO é bom estarmos aqui; é bom estarmos aqui é bom estarmos aqui
1. E seis dias depois 2. E seis dias depois se quiseres e e
DIAS,
jesus tomou consigo Jesus tomou consigo Jesus tendo tomado farei aqui três tendas: façamos três tendas: façamos três tendas
consigo uma para ti, uma para ti, uma para ti,
Pedro e Tiago e João, Pedro, Tiago e joão, Pedro e João e Tiago, outra para Moisés outra para Moisés outra para Moisés
irmão deste, e outra para Elias». e outra para Elias». e outra para Elias».
e os levou e os levou ELE SUBIU 6. Pois não sabia
para' um monte alto para um monte alto AO MONTE o que falar, porque
a sós. a sós, estavam aterrorizados
sozinhos. PARA REZAR de medo.
29. E aconteceu,
ENQUANTO REZAVA 5. Enquanto ainda 34. Enquanto falava isso,
2. E se transfigurou E se transfigurou TRANSFORMOU-SE- !alava
diante deles diante deles LHE EIS QUE uma nuvem 7. E apareceu unia apareceu uma nuvem
E SEU ROSTO A FISIONOMIA nuvem
LUMINOSA
86
87
os envolveu. que os envolvia e os envolvia. e da ascensão. AI se trata, como diz explicitamente Lc 24,23, de dois
Ficaram aterrorizados ao anjos.
entrarem na nuvem. Outra caracter!stica desta versão antiga é que a atenção se con-
E EIS QUE centra em jesus. É Ele - não os discipulos - que goza de uma
saiu uma voz da e saiu uma voz da 35. E uma voz saiu da experiência religiosa excepcional por ocasião de uma oração:; para a
nuvem nuvem: nuvem, qual Ele subiu à montanha (vv. 28c.29a). Nesta versão não se encon-
dizendo: dizendo: tra que jesus elevou os discípulos para um monte», nem a expressão
Este é meu lilho Este é meu filho Este é meu Filho, o que se transfigurou <diante dele~ (cl. Mt 17,lb.2a; Me 9,2b.c). Os
amado, amado, Eleito, cdois homens> não aparecem aos discípulos (cf. Mt 17,3a; Me 9,4a:
EM QUEM PUS lhes), mas a jesus.
MINHA AFEIÇÃO, Somente nesta versão antiga conservada por Lucas indica-se o
escutai-O. escutai-O. escutai-O. assunto da cnnversa dos «:dois homenS» com Jesus, a saber: : «O seú
6. E, TENDO êxodo em jerusalé=. Este <êxodo> significa a morte de jesus. A palavra
OUVIDO (a voz), encontra-se neste sentido em Sb 3,2. AI ensina-se que para os justos
OS DJSCIPULOS a morte é um «êxodo», uma passagem da terra para Deus, e não uma
CAlRAM COM O eliminação da companhia dos viventes.
ROSTO NO CHÃO Dispondo destes elementos é posslvel reconhecer o sentido desta
E FICARAM versão antiga. «Jesus sobe a uma montanha, lugar privilegiado para
ATERRORIZADOS. manifestações divinas; Ele entra em oração e, sob o efeito . da pre-
7. E JESUS sença de Deus, sua fisionomia se altera e suas roupas irradiam bran·
APROXIMOU-SE cura, a cor celeste. Dois anjos Lhe aparecem - estes anjos que, na
E TOCANDO-OS, Blblia, são os mensageiros de revelações divinas - e Lhe falam de
DIZIA: «LEVANTAI seu 'êxodo', isto é, de sua morte (Sb 3,2; 2Pd 1,15). Concretamente
E NÃO TENHAIS isto quer dizer que, durante uma experiência mística inefá.veJ, jesus
MEDO». recebe a revelação que o seu destino é sofrer e morrer (ci. Is 53,1-12).
8. LEVANTANDO 8. E olhando logo 36. E enquanto a voz Esta cena situa-se, portanto, na mesma perspectiva que a do batismo,
OS OLHOS a seguir em redor já ressoava, mas com um progresso bem nítido na revelação; por ocasiã~ do ba-
não viram ninguém não viram ninguém, tismo, a voz celeste diz a jesus que Ele é o 'Servo de Javé', aquele
mais, que Deus escolheu para salvar Seu povoj aqui, jesus aprende ·que ·esta
somente jesus. somente Jesus com JESUS FICOU salvação não se pode realizar a não ser por sua morte> (p. 252).
eles. SOZINHO. 4. Também na primeira coluna, a de Mt 17,1-9, imprimem-se algu-
9. E ao descerem do 9. E ao descerem do mas expressões e frases em MAlúSCULAS. Elas são ·próprias de Mateus
monte, monte1 e veiculam nm interesse especifico deste evangelista. Especialmente o
ordenou-lhes jesus, Ele proibiu-lhes MAS ELES GUARDA- trecho maior que Mt tem de próprio (Mt 17,6-7) ajuda para perceber
dizendo: VAM SEGREDO E NA- de onde vem e para onde vai este interesse. Estes versículos inspiram-se
QUELES DIAS em Dn 10,9-12:
<A ninguém faleis da contar a quem quer NÃO DISSERAM A
que fosse NINGUÉM
VISÃO, o que tinham visto COISA ALGUMA DO Mt 17,6-7 Dn J0,9-12
QUE TINHAM VISTO.
até que o Filho do até que o Filho do 6. E, tendo ouvido (a voz), 9b. . .. e, ouvindo-o,
homem homem os discípulos .
ressuscite dos houvesse ressuscitado caíram com o rosto no chão cai com o rosto por terra
mortos~. dos mortos. e ficaram aterrorizados.
7. E Jesus aproximou-se e, 10. Eis, porêm, que uma mão
/
tocando-os, me tocou
3. Na «Synopse des Quatre :évangiles, Tome li», p. 250-253, analisa- dizia: clevan1aí e me fez levantar sobre' os
se pormenorizadamente esta sinopse da Transfiguração. O texto em joelhos ...
MAlúSCULAS da terceira coluna (Lc 9,28a.c; 29-33a.36b) seria a versão e não tenhais medo». 12a. E disse-me: <Não tenhas
mais antiga da Narração da Transfiguração que se pode reconstruir medo, Daniel . .. ».
a partir dos evangelhos sinóticos e que Lucas encontrou na tradição
por ele usada Nesta versão ainda não se mencionavam os nomes de Um texto semelhante a Dn I0,9-12 encontra-se em Dn 8,17-18. Mas
Moisés e Elias. Falava-se somente de <dois homens~ (vv. 30 e 32). Dn 10 pode explicar outros detalhes da versão de Mt. Em 17,2 Mateus
Isto acontece também em Lc 24,4 e At lJlOJ no contexto da ressurreição tem próprio, em comparação com Me, «e seu rosto brilhou como o

88 89
sol». Expressão semelhante encontra-se em Dn 10,6: «e seu rosto bri- sacrificar Isaac? E no caso de Jesus, morto na cruz? E, porém,
lhava como o relâmpago> (cf. Dn 12,3). O detalhe, que as roupas justamente nestes casos, que se revela a finneza do plano de
de jesus se tornam alvas ccorno a luz:i>, pode inspirar-se em Dn 10,5:
«Vestido de linho ... e (sai) uma luz de dentro dele». Também a expres- Deus. Através da provação, Abraão recebe a promessa renovada
são «levantando os olhoS:> (Mt 17,8) encontra-se em Dn 10,5. Por fim, e reforçada (primeira leitura). Através da morte, Jesus chega
destaca-se em Mt 17,9 a palavra «Visão», que somente aqui se encon- à ressurreição e à mão direita do Pai (segunda leitura). E o
tra nos .evangelhos sinóticos e que é usada duas vezes em Dn 10,l. anúncio da paixão (Me 8,31-33; cf. Lc que no trecho corres-
Todas estas particularidades da versão de Mateus confirmam uma
interpretação escatológico-apocalíptica da narração da Transfiguração. pondente ao evangelho de hoje introduz Moisés e Elias, falando
Parece tornar-se uma rea1ização dos ditos escatológicos que, em Mt do «fim» de Jesus) é seguido da glória, anunciada na transfi-
16127-28, servem de introdução imediata a esta narração. Em compara- guração (leitura do evangelho).
ção com Me 9,1 (« .. ;até que vejam chegar com poder o reino de
DeuS>), MI 16,28 ressalta o carâter escatológico e apocalíptico, mo-
dificando: «antes de terem visto o Filho do homem vir em seu reino». Corpo
Assim o·• dito de Jesus evoca a parusia, que também já fora mencionada
em Mt 16,27. Por esta modificação a narração da Transfiguração pode Parece estar nisto a mensagem para hoje, para nós: é Deus
revestir-se. de um novo fim doutrinal. «J:>ara aqueles que se surpreen-
deram por motivo da protelação da parusia, a Narração da Trans- que age, Deus que estã presente. Vai dar certo. Vru se realizar,
figuração poder-se-ia tornar um penhor de que ela já está se realizan· apesar de tudo. Mensagem para todos os que esperam o reino
do: jesus, o Filho do homem, já está a caminho, Sua glória se revela; de Deus: os pobres e todos os que sofrem, os injustiçados e
o juízo final e o Reino que Deus Lhe confiou não tardaID» (Coune, os que passam fome, os de um salãrio e os desempregados, os
p. 57s). que são expulsos de suas terras e os que vivem migrando, à
5. Na versão de Me 9,2-10 convém ressaltar todos os elemen-
tos que : os três evangelistas têm em comum. Estes foram amplamente
0 procura de uma existência mais digna. Mensagem para todos
comentados na Pina Exegética de O. Selong, acima citada. os que esperam o reino de Deus. Mensagem sobretudo para
os que lutam pela sua realização. Os líderes da base, leigos
Bibliografia: nas duas Pistas Exegéticas, acima citadas. Aqui foram especial-
mente. aproveitadas: P. B e n oi t - M.-E. B o 1 s ma r d, Synop_se des Quatre engajados, padres, religiosos, todos os que lutam por uma con-
bvanglles, Tomes l-11, respectivamente 19172 e 1972; M. C ou n e, Radleuse Transfl-
guration {A'lt 17,1-9; .iltc 9,2-IO; Lc 9,28-36), em: AdS 11/15 {1973), 43-84. vivência humana mais justa, mais honesta, mais humana. Para
Raul Ruijs, O.F.M. eles é uma mensagem e um apelo, apelo à coragem de lutar.
Petrópolis, RJ Que Deus age e vai realizar o seu plano é um convite, evi-
Tema Prlnclpal dentemente não para ficar sentados em casa, de braços cruza-
dos, esperando que as coisas aconteçam. O evangelho não se
l'! DEUS QUEM AGE. VAI DAR CERTO!· dirige «aos tais», e Deus não se dirige a eles. A sua mensa-
Sugestões para a Homilia gem é um convite para a luta pela realização do reino, pela
justiça bem concreta, no próprio ambiente de cada um, sempre
Introdução que se apresente a ocasião. Pode ser um desajuste familiar na
É uma constante que percorre toda a Bíblia, hoje apresen- vizinhança, onde um conselho sincero talvez possa surtir efeito e
tada nas duas figuras-chave, de Abraão ·e de jesus: É Deus salvar uma união. Pode ser um problema do bairro, que requer
que age, vai dar certo, vai se realizar! Vai se realizar o plano uma ação generosa e eficiente. Pode ser algo de âmbito mais
dele, o reino dele, aconteça o que acontecer. Pode haver con- amplo, alguma situação de abuso, de injustiça ou de opressão
trariedades da parle dos inimigos. Deus se ri deles (SI 2). patente, que exige um protesto vigoroso. Pode ser desrespeito
Pode haver a infidelidade e a apostasia do povo, - e o Antigo contra pessoas humanas, que só uma atitude e uma denúncia
Testamento não estã cheio disto? -, Deus continua fiel. O corajosas podem enfrentar. Pode ser também a luta humilde
Reino dele vai se realizar, apesar de quaisquer adversidades. do dever e do simples esforço do nosso trabalho, na familia,
Aquele reino de justiça, de paz e de amor, de relações boas na educação, no setor saúde, na vida politica etc. Pode ser
entre os homens ... ainda um descuido culposo da honra de Deus ou da fé em
Mas não parece que o próprio Deus pode contrariar a rea- Cristo, que reclama uma atitude firme de fé, na repartição, na
lização ·do plano deste reino? No caso de Abraão, chamado a faculdade, no trabalho ...
90 91
Para tudo isto precisa-se de coragem. Pois os problemas na nossa de hoje, garantia de que vai dar certo, apesar da
são muitos e as dificuldades grandes. Quem procura realizar o tudo. Deus está conosco, quem estará, quem agüentará contra
reino de Deus encontrará muitos obstáculos, entraves e frus- nós? (segunda leitura). «We shall overcome:o. Havemos de
tração. O povo não entende. Os detentores do poder se põem vencer!
do contra e lançam ameaças. Os políticos só entendem e pro-
curam seus próprios interesses. Até instâncias e autoridades da Conclusão
Igreja desaprovam a sua ação, por medo ou por oportunismo.

We shall overcome ! A convicção dos negros americanos,
Tudo isto acontece. Tudo isto o miHtante do reino de Deus pode na sua luta pela emancipação e integração de sua raça, num
encontrar. E pode encontrar pior: desprezo, inimizade, perse- contexto de imensa discriminação. Convicção, baseada em parte,
guição, desmoralização, prisão ... mas só em parte, na promessa de Deus, e que no entanto lhes
E muitas vezes, nem Deus aparece. É a maior amargura, o deu e dá ânimo de lutar e coragem de enfrentar qualquer de-
sofrimento mais doloroso do cristão engajado. Onde está Deus? safio. Nós, cristãos (se somos cristãos), temos a plena pro-
Por que não faz sentir a sua presença e a força de seu braço? messa de Deus, a garantia mais maciça de que o reino .se
Por que ele não está com os que defendem os seus pobres, com realizará, garantia confirmada na história de Abraão e n~ his-
os que procuram Tealizar o seu reino? Advogados sérios, padres, tória de Jesus. Quanto mais coragem devemos ter nós! Dizendo
agentes sociais, sindicalistas e outros, verdadeiros cristãos, que todo dia «venha a nós o vosso reino», pronunciamos o nosso
ajudam os posseiros nos problemas de terra, que estão com os grito de guerra. Não é pedido apenas. É certeza: vai acontecer,
trabalhadores ou defendem os índios, os marginalizados. . . Por pois é o Senhor que vai fazer. Através de nós. Isto nos dá
que Deus deixa que eles sejam diminuídos, perseguidos, anar- coragem para continuar a luta.
quizados, desmoralizados, presos e mortos? As vítimas dos re-
Pe. Adriano van den Berg, C.M.
gimes de injustiça, só na América latina durante os últimos Belém, PA
dez anos, são milhares, verdadeiros mártires, testemunhas do
reino de Deus. Por que Deus deixa isso acontecer? Não está
sacrificando estes seus filhos mais dedicados, mais fiéis? Assim
*'
como pediu de Abraão o sacrif!cio de seu filho? Assim como
sacrificou Jesus? Não está sacrificando Jesus de novo, nestes
cristãos engajados e corajosos? E se no caso de Abraão apa-
receu ainda, na última hora, a salvação, no caso de Jesus o
próprio Deus se mostrou impotente para salvá-lo. No caso de
Jesus e em tantos casos do nosso tempo, casos conhecidos de
prisão, de tortura e de morte, dos que defendem os pobres de
Deus. E Deus deixa. Deus não se mexe. Não pode? Não
quer? . ·. . É de admirar que muitos desanimem, fiquem apavo-
rados, paralisados pelo medo? Precisamos, e precisamos muito
da mensagem.
Mas a mensagem está aí: na história de Abraão: a dura
prova, mas, através da provação, a promessa renovada e refor-
çada. Na história de Isaac, quase sacrificado, mas que «voltou
à vida». E também na história de Jesus, humilhado, torturado
e morto; mas eís que está vivo (cf. Ap 1,18) e à mão direita
do Pai (cf. SI flO,l; Me 14,62; 16,19; At 2,34; 6,56; Ef 1,20;
Cl 3,1; Hb 1,3.13). Lembrem-se, os irmãos engajados. Lembremo-
nos todos: da presença de Deus em toda a história, também
92 93
O mandamento de não cometer adultério, v. 14, estã ordenado à
Terceiro Domingo da Quaresma delesa da vida e da familia. Para que o matrimônio possa cumprir
sua finalidade, exige-se a fidelidade entre os esposos. A Bíblia toma
a sério o amor, o matrimônio, a vida e a fecundidade. O mandamento
Pistas Exegéticas dirige-se tanto à mulher, como ao homem.
O mandamento de não furtar, do v. 15, não visa só os bens do
Primeira Leitura: Ex 20,1-17 próximo. Trata-se, antes de tudo, da própria pessoa, de sua liberdade.
Esta passagem do exodo apresenta-nos o Decálogo. Hã uma outra
versão do mesmo, com pequenas variantes, em Dt 5,6-21.
• O rapto de pessoas e sua escravização são considerados gravíssimos pe-
cados de furto que merecem pena de morte (Ex 21,16; Dt 24,7). Reter
o salário de um operário também é um furto (c!. Dt 24,15; Lv 19,13).
A primeira observação a fazer é que essa Lei (os dez mandamen- Que dizer então dos salários de fome de nosso regime capitalista?
tos) é apresentada como a Lei da Aliança. Toda Aliança supõe cláusulas Contrariamente ao que geralnlente se pensa, o AT não visa só os
estipuladas entre os contratantes. ~ preciso ter conhecimento explicito atos externos. O 10' mandamento (v. 17) tem como objeto o desejo, a
das condições da Aliança, para poder permanecer nela e saber quais cobiça das coisas do próximo. Tem em mira a raiz do pecado, o de-
as infrações que a rompem. Deus oferece uma Aliança ao povo de sejo desregrado que nasce no coração do homem (Mt 15,19). O man-
JsraeJ. É um imenso privilégio ser aliado do Deus poderoso que liber- damento aponta essa cobiça como um pecado que se opõe à Aliança
tou o povo do Egito. Mas para que Israel possa continuar a gozar com Javé.
da proteção e do amor benevolente desse Deus, e ao mesmo tempo
usufruir da liberdade, Deus lhe dá a garantia de uma Aliança. Ora, Bibliografia: Pirot-Clamer, La Sainte Blble, t. 1, 2, Paris,..~ Letouzey et
essa Aliança tem como condição necessária os 1O mandamentos. Ané; A u z ou, O., De Ia ServJdumbre al Se.rvfcio, A1adrid, FAX; '\v 1 é n e r, C.,
:Sxodo de Moisés, Caminho para Hoje, Ed. Loyola, S. Paulo.
É nesse contexto que deve ser compreendido o decálogo. Os man-
damentos não são simples princípios éticos, nem apenas normas de Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
boa convivência. Eles são dados e recebidos num contexto religioso e Santa Maria, RS
s~o vistos pelo povo de Israel como o caminho e a garantia de sua
liberdade. E é assim que devem ser vistos e compreendidos também Segunda Leitura: 1Cor 1,22·25
pelos cristãos.
Quem lê esses mandamentos no texto do :Êxodo ou no do Deute- Mais uma vez, Paulo compara a sabedoria de Deus com a dos
ronômio tem dificuldade de saber como se faz a enumeração, onde ter- homens, mostrando as perspectivas diversas das duas. Em Rm 11,33-36,
mina um e começa outro. Segundo o texto da leitura, o 19 mandamento Paulo, no hino à sabedoria misericordiosa de Deus, mostrou .s:como são
restringe-se ao v. 3. O 2º é a proibição de fazer estátuas e imagens insondáveis seus juJzos e impenetráveis seus caminhos» (v.. 33), e que
para representar a divindade, e compreende os vv. 4-6. E assim por Deus quer salvar todos os homens contrariando a lógica humana. Aqui
diante. O décimo engloba a proibição de cobiçar os bens (a casa) do em lCor, Paulo mostra como o próprio ato salvífico de Deus não se
próximo, incluindo aí também a mulher. No cristianisn10, por influência enquadra na lógica dos homens.
de S. Agostinho e por razões práticas de catequese, omitiu-se o 2° Segundo a lógica judaica, os sinais dados por Deus seriam a ga-
n1andamento que não tinha mais sentido, e desdobrou-se o último em rantia da veracidade do anúncio, procurava-se a segurança humana.
dois: não desejar a mulher do próximo; não cobiçar as coisas do Para o grego a sabedoria contida no anúncio deveria satisfazer a inte-
próximo. ligência, com seu paladar requintado e ávido de novidades e conheci-
O primeiro mandamento é a afirmação prática do monoteísmo. mentos (cf. AI 17,20s).
Israel não chega a esta conclusão por via de especulação, mas pela Também os judeus contemporâneos de jesus pediram milagres:
sua experiência histórica. Ê por isso que no v. 2 Deus se apresenta <mestre, queremos ver um sinab (Mt 12,38; 16,! e par.; Jo 6,30), e
como aquele que libertou Israel do Egito. Para Israel a aceitação e Jesus lhes ofereceu o sina1 de sua morte e ressurreição (]o 2,18;
a adoração de Javé como Deus único é um dom e uma opção vital. Mt 12,39s), simbolizadas no Templo reconstruido e pelo profeta Jonas.
O v. 7 apresenta o 3° mandamento: não pronunciar o nome de Paulo segue a mesma linha, mostrando a cruz como único sinal para
Deus em vão. Parece que era muito comum invocar o nome de Deus judeus e gregos. O que· para eles era sinal de «escândalo», tornou-se
como confirmação da veracidade de um juramento. Não se pro::be o sinal-sacramento de salvação. Sinal, não só enquanto prova, ·ou como
juramento, mas sim fazê-lo sem motivo sério. O máximo pecado contra símbolo que rememora, mas sinal-sacramento, isto é, eficiente: «Cristo
esse mandamento é a blasfêmia, que era castigada com a morte (Lv crucificado» que salva por sua morte e ressurreição.
24,10-16). Os gregos procuravam a sabedoria. Essa procura, como aquela dos
O v. 13 garante o direito à vida. Em Israel esse direito é garantido judeus, não era condenável em· si, mas Paulo não a aceitava, enquanto
por Deus e a obrigação de respeitá-lo se torna uma das condições se apresentava como condição imposta a Deus e sua revelação. A re-
para viver em Aliança com Deus. «Não matar» não significa só deixar ligião dos profetas estava cheia de sinais, e por sinais Deus confirmara
viver, mas também não deixar morrer. Não criar ou não permitir con- sua escolha e predileção por Israel. Por outro lado, os gregos desen-
dições tais que levem o próximo à morte. volveram nos séculos a fina flor da filosofia ocidental, racionalizaram

94
95
É nesta ótica que devemos interpretar o evangelho de hoje. É
tudo. Sabiam os limites do conhecimento humano, dentro dos quais o uma peça programática, colocada no começo do evangelho (os Sinóticos
homem pode aceitar um novo ensinamento ou entender coisas divinas. trazem a purificação do Templo na última semana de Jesus). Significa
Resultou, no entanto, que a religião por excelência, co monoteísmo que não mais o ~·Templo de jerusalém, mas «O templo de seu corpo»
judaico», e a filosofia dos gregos, ofereceram resistência aos cami· (2,21) é o lugar da revelação e adoração de Deus. Como o sinal do
nhos da fé. vinho em Caná (2,1-11), também a presente pericope revela a novidade
Vê-se, então, neste texto, sintetizadas as dificuldades, por parte de que se faz presente em Jesus Cristo.
judeus e pagãos, enfrentadas por Paulo nas suas viagens. Há pouco
tempo ele estivera em Atenas, e tentara preg~r Cristo usando a sa-
bedoria e os argumentos dos homens (e!. AI ·17), mas falhou, e de- 2. Explicação de ]o 2,13-25
cepcionado optou pe1o <escândalo-loucura» do Cristo crucificado (2Cor
211-5). A partir de então não se trataria maiS de raciona1izar (sabe. A menção da Páscoa (v. 13) explica a presença de jesus em Je-
daria) ou provar (sinais) o anúncio, mas de se aceitar ou não, pela rusalém. Sua atuação ali deve ser comparada com o que escrevem os
fé, o que era anunciado e não previsto por judeus e gregos. evangelhos sinóticos. Estes trazem uma apresf'.ntação mais complexa:
A doutrina anunciada por Pau1o, então, apresenta-se como oposta Jesus chega a Jerusalém, no fim de sua atividade na Galiléia e nas
às pretensões dos judeus e gregos. Na contradição da cruz está a gran- outras regiões da Palestina (Mt 21,1 par.). Nesta ocasião, visita o
deza-triunfo de Deus. Sua ação parece fraca e louca, roas nela Templo e, escandalizado pela degeneração do culto, trata de lhe restituir
manifesta-se a grandeza-força e sabedoria do Deus que confunde os o sentido original, isto é, ser uma casa de oração («para todos os
fortes e sábios deste mundo (!Cor l,27s). No entanto, os que têm fé, povos», diz Me 11,17, o que Mt .omite, pois quando ele pub1ica seu
vêem na fraqueza e loucura (OI 5,11) do agir divino o sinal de sua evangelho, o Templo jâ não existe e porta11to não pode ser casa de
misericórdia. O anúncio da cruz, que parecia ·contradizer a esperança oração universal). Em Me, esta seqüência é entrelaçada pelos dois epi-
dos homens, pela luz da fé é visto como vitória (Jo 12,34). O instru- sódios da maldição da figueira, símbolo da incredulidade de Jerusalém
mento de maldiç!lo, usado no suplicio dós condenados, tornou. se instru- (Me 11,12-14 e 20-26); em MI, estes dois episódios são unificados e
mento de salvaçao. seguem depois da Purificação do Templo; Lc simpJifica mais ainda, eli-
Mais uma vez a sabedoria de Deus trilhou caminhos que não são minando este tema. Depois da Purificação do Templo, os chefes dos
os da sabedoria dos homens. judeus perguntam a Jesus com que autoridade Ele faz tais coisas. Res-
ponde jesus com a evasiva a respeito do Batista (MI 21,23-27). Depois,
Bibliografia: B. \V a J te r, A Primeira Eplslola aos Corlntios, Petrópolis 1973. entra em discussão com o judaísmo, sobre vários pontos (Mt 22 e 23).
Em joão, além do episódio do Templo se encontrar no começo do
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J. evangelho, encontramos outras diferenças. Em primeiro lugar, não é
Paulista, PE uma purificação do Templo, mas uma abolição do mesmo, ou, pelo
menos, a sua substituição pelo «templo» que será destruído· pelos judeus
Terceira Leitura: Jo 2,13·25 e que jesus - na sua qualidade divina - em três dias há de ressus-
citar: o templo de seu corpo (2,19-21). Para sugerir este novo sen-
1. Contexto da pericope tido, jo não mais coloca, como resposta à pergunta da autoridade, a
evasiva a respeito do Batista, como em Mt 21,23-55, mas deixa Jesus
Em Jo 2,12 começa uma nova divisão dentro da secção de seu proferir a palavra sobre a destruição do Templo, colocada por Mt
evangelho que poderíamos chamar «OS primórdios» da revelação de Jesus 26,60s na boca de <testemunhas falsas>.
(Jo 1,19-4,54). De lato, jo 1,19-2,1 J formava uma «semana literária» Uma vez que se entende este sentido da narração (abolição do
(como sugerem as indicações cronológicas em l,29.35.43; 2,1), levando Templo), não é di!icil descobrir detalhes que o reforçam. Assim, jo
Jesus de Betânia-além-Jordão (1,28) a Caná, onde inicia a manife&- ácrescenta, à narração sinótica, a expulsão dos animais para os sacri...
tação de sua glória (isto é, da presença divina que habita nele) flcios (bois e ovelhas), razão pela qual jo deixa jesus lazer um chicote
(2,11). Depois dh versicu1o de transição 2,12, encontramos Jesus nova- (o que os Sinóticos não dizem), pois precisa deste para expulsar os
mente fora da Galiléia, especialmente em Jerusálém, de onde ele voltará animais.
a Caná - exatamente como em 1,19-2,11 - para ali realizar seu se- Pela mesma razão, jo não diz que Jesus derruba as bancas dos
gundo sinal (4,54, cf. 2,11). Toda a secção 1,19-4,54 é caracterizada vendedores de pombas (gesto irado contra a prática comercial), mas
por uma idé.ia central: o encontro com o Messias o revelador do Pai. que Ele manda afastar tudo aquilo (Jo 2,16; cf. Mt 21,12). jo guarda,
Os discípulos buscam-no e encontram-no (1,35-'51)'. Também Nicodemos do sentido sinótico da narração, uma lembrança no v. l,16b («Não
e a Samaritana -encontram em Jesus o que, nas suas mais profundas façais da casa do ·meu Pai um mercado»). Contudo, não pensa em
aspirações, estão procurando (Jo 3 e 4). Jesus é o verdadeiro lugar de uma restauração do Templo de Jerusalém como casa de oração, mas
adoração do Pai «em espírito e verdade» (4,22) - esta é a novidade na sua substituição. O v. 17 introduz esta significação, explicada em
que estes primeiros capítulos de João revelam aos que buscam tal v. 18-22. Em Jo, a citação do AT que, nos Sinóticos, dá à ação de
lugar. Como disse o Pró1ogo: n'Ele contemplamos a glória de Deus Jesus o sentido de restauração do Templo como casa de oração (Is
(Jo 1,14), que ahtigamente se revelava no Templo ou no Tabernáculo. 56,7 = Mt 21,13), é substituída por uma citação do Salmo do justo

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f'

!
1
perseguido (SI 69,10 = Jo 2,17), preparando assiru a referência à Filho morto e ressuscitado. 3) A precariedade da fé (vv. 23-25): mes-
morte e ressurreição de Jesus, que forma o pano de fundo do diâlogo mo quando nós professamos a fé em jesus Cristo, ainda não nos colo-
dos vv. 18-20. Podemos portanto confirmar: para Jo, o sentido desta camos definitiva e seguramente de seu lado; seja isto uma advertência
perícope é anunciar jesus como o Novo Templo, lugar de revelação e contra uma segurança temerária e uma exortação para uma conversão
adoração do Pai. sempre renovada.

l
Os vv. 18-19 mostram este sentido: Os judeus destruirão o templo Em tudo isto aparece, naturalmente, o cristocentrismo radical do
do Corpo de jesus, Jesus o «ressuscitará» (este é o verbo utilizado Quarto Evangelho. Converter-se, na linha de jo, significa voltar-se para
no texto original) em três dias. Pois Jesus tem «autoridade• (exousia) jesus Crist9, confiar-se a ele, abandonar os templos provisórios ou dege-
para dar sua vida, e para a retomar (Jo 10,18). Os judeus entendem nerados. E trata-se do Cristo morto e ressuscitado, não do Cristo sim-
mal o que Jesus quer dizer. Tais mal-entendidos são corriqueiros no pático, bacana etc. As duas palavras que os discípulos entenderam
4° Evangelho; mostram que o homem não pode nada sem a revelação depois da sua ressurreição, a citação do SI 69 (Jo 2,17) e o lóguion
divina, intermediada pela iniciação cristã (cf. 3,4; 4,11-15; 4,33; 6,34 do templo (Jo 2,19; cf. v. 22), são características neste sentido.
etc.). O homem entende as coisas no nível terrestre (um templo no
qual se gastaram 46 anos de construção!), mas jesus 'fala de urna outra Podemos dizer que o presente evangelho, como também os dos
realidade, o domínio d~ Deus, que se torna presente em sua pessoa, domingos seguintes, nos preparam para a conversão como confronto
especialmente pela Ressurreição. Este <templo do seu corpo» (v. 21), com o Senhor padecente e ressuscitado (cf. sobretudo o 59 domingo
de sua presença gloriosa, é o que devemos procurar. da quaresma, Jo 12,20-33).
O episódio termina com uma descrição sumária da atividade de Bibliografia: B r o w n, Raymond R., Evangelho de ]oiio é epistolas, São Paulo,
jesus em Jerusalém, que depois será exemplificada pelo diálogo com Paullnas, 1975; D o d d, Charles H., A Interpretação do Quarto Evangelho, São
Nicodemos (Jo 3,1-21) .. Fala dos sinais que Jesus fez em Jerusalém (cf. Paulo, Paulinas, 1971; K o n i n g s, johan, Encontro com o Quarto Evangelho,
Petrõpolls, Vozes, 1915; O l i v e ir a, Carlos Josaphat de, Evangelho da Unidade
2,23-25; 4,43-45) e apresenta um trocadilho com o verbo «acreditar» e do Amor, São Paulo, Duas Cidades, 1006. Os comentários internacionais de
(pisteuein) : muitos acieditam em jesus, mas jesus não «Se acredita» Bar te t t (S.P.C.K.), Brown (Anchor B.), B u 1 t ma n n (Meyers), Linda r s
(New Century B.), S e h n a e k e n b u r g (Herders). V a n d e n B u s s e b e
(não se dá em crédito)· a eles, pois ele sabe como é ó homem. O troca- (Desc1ée).
dilho é provocado pela atmosfera da paixão e morte, que marca o
contexto. Pois com estas se relaciona a inconstância âa fé, mencionada Pe. Johan Konings
também no final da atividade pública de Jesus (12,42-43). Jo visa, Porto Alegre, RS
com estas observações, a situação de seu tempo (fim do lo;i século):
é o tempo das perseguições judaicas (farisaicas) contra os cristãos, ORSERVAÇ.\O: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho· da Samaritana (Jo 4,5-42).
depois da separação oficial do judaísmo e cristianismo e a expulsão Pistas Exi:géticas na iUesa da Palavra, Ano A, p. 12!l-133.
dos cristãos da Sinagoga (cf. 9,22; 12,42). Esta situação era mais
uma razão - para, desde o começo de seu evangelho, evidenciar que não
com os bois e ovelhas do Templo de Jerusalém, mas com a adesão
ao Templo ressuscitado que é jesus Çristo, encontraremos o verdadeiro
modo de adorar o Pai. Tema Principal
O evangelho de joão é um evangelho muito refletido. Seu sentido
não é aquele que aparece à primeira vista. Por isto, o autor m.enciona
que os disc:pulos de -jesus não entend_eram logo o sentido de seu O HOMEM-TEMPLO, ONDE DEUS MORA,
agir. Somente depois da sua ressurreição, à luz do Espírito que havia É A GRANDE IDÉIA QUE O HOMEM DE HOJE PERDEU
de lhes recordar tudo (Jo 14,26; 16,13), compreenderam o· que estava
escrito e o que Jesus disse e fez (v. 17 e 22). Jo mostra Jesus à luz
da Páscoa. Sugestões para a Homilia
3. Função na liturgia
Introdução
Não existe, nas leituras da Quaresma, nem a leitura contínua dos
evangelhos, nem a coerência entre a primeira e terceira leitura, que As leituras de hoje nos levam à constatação de que a fina-
caracteriia a Celebração da Palavra nos domingos comuns. Contudo,
as leituras evocam, mediante seus temas diversos, um ·espírito comun1: o lidade da Aliança é regular os relacionamentos entre o homem e
espírito de conversão. É nesta pedagogia da conversão que se situa Deus e do homem com o outro homem. Toda Aliança reclama
o presente evangelho. Podem-se aprofundar, neste sentido, os três nio- uma legislação, como garantia e perene lembrança dos direitos
mentos da narração: 1) A expulsão dos vendilhões ·e dos animais de e deveres que brotam para aqueles que aceitam a Aliança. Mas
sacrifício (2,13-16): pôr fim a uma forma de religião que já não
vale desde que Jesus nos mostra a vontade do Pai. 2) O Novo Templo, a base de tudo é Deus: por isso Deus legisla, Deus dita a lei,
Jesus (v. 17, transição, e vv. 18-22): procurar adorar e amar Deus no Deus a envia aos homens, Deus especifica, em grandes linhas,
98 99
as normas que regem as instituições, os relacionamentos, a valo- Conclusão
rização do material, sobretudo os princípios que fundamentam
a proteção de Deus e a liberdade do homem. Convencer-se da verdade de que somos templos de Deus
leva-nos a sermos possuídos pelo zelo: da raiz grega que signi-
Corpo fica «estar quente, entrar em ebulição» e que traduz a palavra
hebraica que indica o rubor que sobe às faces, quando a ver-
1. Deus e sua lei revelados por Cristo gonha ou entusiasmo, ou a paixão, se apossam do homem. Por
isso, ser possuído pelo zelo significa ser possuído pelo entusias-
S. Paulo lembra que os judeus pedem e buscam sinais. mo, pela dedicação ardente, pelo interesse, ~elo empenho, pelo
Isto é, provas concretas que revelem Deus e sua presença. Como ardor apostólico, como o de Cristo e dos apostolas. E este z~lo
se não lhes bastasse o amor de Deus tão presente na história que distingue um apóstolo ou consagrado de um mero funcm-
que os arrancou das trevas por Abraão e do cativeiro do Egito nário. Deus pede que sejamos homens de fé, pregadores de fé,
por Moisés! Os gregos procuram a sabedoria, isto é, a expli- não funcionários ou, pior ainda, exploradores da fé ...
cação do mistério, a «materialização» de Deus, como se ele pu-
desse ser reduzido a um teorema, quando o amor de Deus se faz Frer Hugo D. Baggio, O.FM.
sentir no mistério claro da comunhão íntima do homem. E, um Rio de jaueiro, RJ
dia, Deus se revelou concretamente, na carne do Cristo, que é
o sinal pedido pelos judeus, que é a sabedoria buscada pelos
gregos, que é, sobretudo, a salvação esperada pelos homens
todos. Não salvação como apenas ponto de chegada no fim
da jornada histórica, mas salvação operando-se, no dia-a-dia
dos homens, atingindo toda sua atividade, pondo sentido em todos
seus instantes, ligando a terra ao céu.

2. Deus não mora na periferia


E este cristo que na sua caminhada no meio dos homens
vai revelando Deus, sua vontade - sem alterar a velha lei - ,
e as riquezas que moram em cada um. Por isso, a limpeza do
templo é um gesto de profundo simbolismo: o homem deve limpar
a morada de Deus, que é ele mesmo. O homem-templo, onde
Deus mora, é a grande idéia que o homem de hoje perdeu. Por
isso perdeu o respeito ao homem, ao corpo do homem, à liber-
dade do homem, aos direitos do homem. Onde Deus foi excluído
entrou a ditadura, a opressão, o crime, ·o seqüestro, as torturas,
a injustiça institucionalizada. Ou Deus volta a tomar conta de
seu templo, o homem, ou os 7 demônios se apossarão dele.
Cristo é o grande templo de Deus - Deus-Homem ou Homem-
Deus - e nós participamos desta dignidade. Quão importante
recordar aos homens de hoje a dignidade, nascida da realidade
Deus, não de um Deus distante, isolado no seu céu, mas um
Deus presente, morando em cada um, fundamentando o respeito
que me devo a mim mesmo e o respeito que devo ao outro ( re-
cordar os mandamentos da 1• Leitura).
100 101
Segunda Leitura: Ef 2,4-10
Quarto Domingo da Quaresma
Paulo, no cap. 2 de EféSlos, desenvolve a doutrina da salvação
gratuita em Cristo. O trecho da segunda leitura de hoje mostra sobre-
Pistas Exegéticas tudo a ação de Deus que se contrapõe ao estado de pecado em que
o homem viv:ia antes de ser salvo. Trata-se de uma confrontação entre
Primeira Leitura: 2Cr 36,14·16.19-23 o passado, o que eram, e o presente, como e para que foram salvos.
A culpa provocara a ira de Deus, «mas Deus... nos amoU> e agora
A leitura proposta para esse domingo apresenta-nos quatro temas a situação é outra. 'Nós', são todos, judeus e pagãos indistintamente,
encadeado~:_ a) os P.ecados .dos chefes e do p~vo; b) são a causa última que estavam numa situação sem escapatôda, «mas» Deus interveio na
da destrmçao da Cidade Santa e do exílio; c) este lato é o cumpri- história e mudou seu curso. Essa intervenção é dom gratuito fruto do
m.ento de !'!"ª profecia; d) mas nem tudo está perdido: o edito de amor misericordioso de Deus, que embora não encontrando' nada de
Ciro, permitindo o retorno, manifesta a certeza que Deus não aban- amãvel em nós, assim mesmo nos amou e deu-nos a vida.
donou o seu povo. Para se ter a idéia do que é ser salvo é preciso que se tenha
Os vv. 14-1? tr_azem a rellexão sobre o pecado dos chefes e do tido a experiência da morte iminente, desse modo se valoriza o que se
po~o!. como exphca_çao da causa dos tremendos acontecimentos da des- recebe. Assim, só tendo consciência do seu pecado o homem pode per-
tru1~~0 de Jeru~alem. É uma reflexão de teologia da história, muito ceber a p~ofundidade da v:ida que lhe é dada pel~ graça no batismo.
frequente e muito comum no Antigo Testamento. Basta recordar jz Somos salvos. O tempo do verbo grego indica mna ação do passado
2-3; e 2Rs 17,7-23. ~ ~utor bí~lico_ não se interessa e nem se preocupa cujo efeito perdura no presente. Talvez em português se tivesse de
de ver as causas proximas e 1med1atas dos acontecimentos. Impregnado dizer: «temos sido salvos», ist-0 é, fomos e continuamos a ser salvos.
de ~ua compreens~o teológica da história, ele busca a causa última que A salvaçãoJ a ressurreição dos mortos e a subida aos céus são reali-
exph~a. os acon~eciment~s, .e que se situa, segundo o Deuteronômio, no dades atuais. Convém observar a evolução do pensamento paulino: Em
pn~c1p1~ . da ~h~nç~: fidelidade à Aliança é igual a felicidade e pro- Rm 6,3-11 ele diz: «morremos e ressuscitaremoS» (passado-futuro); em
teçao dmna; mf1dehdade à Aliança é igual a desgraça (cf. Dt 28). Cl 2,12: «morremos e ressuscitamos> (passado e presente); em Ef 2,6:
Os vv.. 17-20 recordam, e~ f~rma sumária e patética, as desgraças «nos ressuscitou e nos fez assentar• (tudo no passado). Em Rm 6 a
q;ie sobrevieram como consequência dos pecados mencionados: destrui- afirmação constitula uma esperança, em CI e Ef a salvação aparece como
çao, morte, saque, deportação. uma realidade escatológica já experimentada e realizada. Temos de inter-
No v. 21 o autor afirma que isto tudo aconteceu de acordo com a pretar a passagem como sendo o Cristo que jâ se encontra no céu, e
profecia de Jeremias. o. que há de jeremias, aqui, é só a menção dos nós por sermos membros dele assim nos encontramos representados
setenta anos. O te~to citado não é de jr, mas do Lev:i!ico (Lv 26,34s). nele. A vida da graça atual é o prelúdio do que teremos definitivamente.
O autor d~s Crônicas faz uma combinação de dois textos diferentes: Vivemos o tempo da ressurreição e a realidade da salvação pela espe-
o de Jeremias (Jr 25:11-12; tb. 29,10), em que o profeta anuncia que rança que nos é dada pelo Esplrito, embora estejamos neste corpo
o exilm se P!Oiongara por 70 an~s; e o do Levítico (Lv 26,34s), em de morte.
q~e- s_e preve que. a terra (Palestina) será. devastada e permanecerá em Desde que o homem vive ainda neste mundo, ele não pode nunca
sohdao tantos anos, quantos forem os anos sabáticos que não foram ter certeza absoluta de sua salvação pessoal. Deus nos salvou, e ofe-
observados. Este texto do )..evitico pertence às bênçãos e . maldições que receu essa salvação ao homem, mas permanece a possibilidade do homem,
acompanhavam as cláüsulas da Aliança. mesmo batizado, dizer não a Deus. .:e o paradoxo da sua liberdade.
O sentido do v. 21 é este: cumprindo suas ameaças e levando o Paulo de modo especial, na parte final do trecho, explicita o «pela
pov~ ao exílio, Deus deu á terra o repouso que seus habitantes lhe
graça» do v. 5. Esse foi o motivo de toda a sua luta, e aqui ele rea-
haviam _recusado, ~ão observando a lei dos anos sabáticos. Jsto, con- firma: o homem se salva pelo dom de Deus e não por suas obras.
tudo,. nao quer dizer que, antes, nunca tenha sido observado o ano Estas não são nada mais que o fruto produzido pela graça no cora-
~abático e I\e~ qu_eJ durante o exílio, a terra tenha ficado totalmente ção do homem que abre seu coração, aceita Deus na sua vida. Crer, de
mculta. Mas s1gn1flca que o Cronista vê um nexo de efeito e causa fato, é dar a Deus o posto que lhe é próprio, não é fazerJ mas aceitar,
entre a destruição e o exílio, e as violações da Lei. receber o que Deus dâ. O homem prepara o terreno para que a se-
. Mas, ap~sar ~e todo esse tremendo castigo e desse fim melancó- mente da graça dê seus frutos. Os frutos não vêm da terra (homem)
h~o! o CronISta nao qu~r encerrar. sua obra com uma perspectiva pes- mas da semente (graça de Dens), que potencialmente os contém em
s~m1sta. O povo escolhi.do tem fe num Deus que castiga, mas que si, e desabrocha por ter encontrado a boa terra.
nao abandona, que humilha, mas que não esquece seu povo no sofri- O homem. criou espaço para que Deus agisse dentro dele e por ele.
m~J_ltO. No fechamento do livro, apresenta-se-nos -o edito de Ciro, ·per-
Se a salvação viesse das obras do homem, ele · poderia se gloriar
mitindo aos deportados retornarem a jerusalém e reconstruirem o tem- (Rm 3,27; 1Cor 1,29), mas ela é dom e o homem novo é criatura de
plo. E wn raio de luz no fim de uma noite escura. Deus e não fruto do esforço humano. A teologia farisaica quis que a
observância das questiúnculas da lei salvasse o homem. Paulo se opôs
Pe. Aguinelo Burin, S.A.C. a toda essa v:isão de salvação pelas obras, afirmando tudo ser dom
Santa Maria, RS
103
102

j
de Deus. Neste trecho está resumida a doutrina da graça de OI e Rm. cristã (não foi jesus que falou assim, mas a Igreja em seu nome).
embora falte o termo justificação. Isso confirma de modo insofismá- Certos termos têm um sentido cristão bem especifico, que o leitor não
vel a origem paulina da carta. iniciado não pode entender.
A úl~ma frase retoma o difícil assunto da misteriosa conciliação No contexto imediatamente anterior, Jesus abordou o tema do Reve-
entre .~ liberda~e de Deus e a do homem. Que significa, «obras que lador. Nicodemos não pode entender, porque é terrestre (vv. 9-12). Pre-
Deus ~a antes tinha preparado»? Tem-se a impressão que o cristão deva cisa do Revelador, aquele que vem «do alto»: no caso, a figura celes-
andar num caminho preestabelecido. Durante séculos a teologia oscilou tial do «Filho do Homem» (ver Dn 7,12), identificado com Jesus Cristo.
s_ublinhando mais um aspecto ou outro. De fato sabemos que a própria É exclusividade do Filho unigênito revelar Aquele a quem ninguém jamais
hberdade que temos é dom de Deus, assim ela não é absoluta mas viu (e!. 1,18; 4,46). Este Filho do Homem, que é de cima, subiu também
condicionada por Deus e o mundo circunstante. É um condiciona~ento ao céu (v. 13). Com isto, Jo aborda o tema da «elevação» (hypsôsis)
contingente. Somos criaturas de Deus mas não criadores filhos mas de Jesus, tema caracterizado pela típica «bivalência» do código joanino:
não. ~enhores. Podemos dizer que desde a eternidade D~us preÍ>arou, para o leitor iniciado, esta «elevação» (ou «exaltação») significa, ao
dec1d1u-se em como fazer a graça agir e dar seus frutos em nós. mesmo tempo, a elevação de Jesus na Cruz e sua exaltação na glória
Isto não resolve o mistério, mas deixa passar uma fresta de luz. da ressurreição (cf. 12,32s). O leitor que sabe isto entende facilmente
Bibliografia: H. C o n 2 e l m a n n - O. F r 1 e d r 1 e b, Epístolas de la r:autivldad os w. 14-21.
Madrid 1972; H. Se h li e r, La lettera agli Efesini, Brescla 1973· M. z e r w 1 e k'
Carta aos Effslos, Petrópolis. ' ' 2. Explicação d~ texto
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
Paulista, PE Jo recorre a um acontecimento do AT: Moisés levantou uma ser-
pente de bronze, numa haste, a fim de que os israelitas, olhando para
Terceira Leitura: Jo 3,14-21 este fetiche, fossem libertados da praga das serpentes (Nm 21,4-9).
Assim também deve ser «elevado» (na madeira da Cruz e na glória
1. Contexto da pericope da Ressurreição) o «Filho do Homem», Jesus, para que, quem o con-
templar (com os olhos da fé), seja salvo (3,14s).
Jo 3,14-21 faz parte (conclusiva) das conversas de Jesus em Jeru- A partir daí, ]o explica em que consiste o valor salvífico do Cristo
salém, depois da expulsão dos vendi1hões do Templo (cf. evangelho crucificado: Ele é o dom do amor de Deus ao mundo (3,lô). Utiliza
de domingo passado). O diãlogo com Nicodemos é, provavelmente con- o qualificativo cunigênito» para sugerir que neste Filho está toda a
siderado como tipo do diãlogo com o judaísmo oficial de Jerusalém. afeição do Pai (cf. Me 1,11 par.). Note-se o paralelismo entre os w.
Isto, porém, não tanto na vida de Jesus (quando as autoridades judai- 14-15 e 16: a segunda parte de ambas estas frases (se. v. 15 e v. 16b)
cas de Jerusalém eram ainda predominantemente saduceus, aristocracia é idêntica. Isto leva a supor que também a primeira parte signifique
sacerdotal do Templo), mas antes, no tempo da publicação do Quarto a mesma coisa: a elevação do Filho do Homem (morte e glorificação)
Evangelho, depois da exclusão dos cristãos da Sinagoga pelos fariseus, (v. 14) é a mesma coisa que Deus dar - por amor - seu Filho
que se impuseram como chefes do judaísmo depois de 70 dC. Podemos único ao c:mundo» (= os homens) (v. l6a). Nota-se, aqui, que «mundo»
ver no diálogo com o fariseu, «chefe dos judeus», Nicodemos (cf. 3,1), em S. João não significa, necessariamente, o mundo fechado, inimigo
o tipo do diálogo (ou controvérsia) da igreja de João com o judaísmo do plano de Deus (como em 7,1; 14,7.22.27; r5,18s; 17,14-16 etc.). Aqui,
farisaico na terceira geração cristã. Mostra que os «mestres em Israel» o mundo (os homens) é objeto do amor de Deus. Deus corre o risco
(cf. 3,10), apesar de seu conhecimento escriturístico, n&o entendiam nada do «amor ao mundo>, enquanto este fica livre para aceitar ou rejeitar
do «Reino de Deus» (jo 3,3.5 - as únicas utilizações deste termo em seu dom. Deus envia seu Filho para que o mundo seja salvo, tenha
Jo), porque eles ~ão da «carne» e não de «água e espírito» (símbolos a ~ida eterna:l'> - termo apocalíptico para indicar o que, nos evan-
do batismo cristão, regeneração pelo Espírito de Deus) (Jo 3,3-11). gelhos sinóticos, é indicado . pela expressão «Reino de Deus» . (cf. Jo
Depois de Jo 3,14-21, segue a discussão com a seita do Batista (Jo 3,3.5). Não é meramente «Vida além da morte», mas antes, vida que
3,22-36), conduzida em termos semelhantes à anterior i e a dicussão pertence ao aiôn, o «tempo de Deus». É vida divina. Ela não começa
com os samaritanos (4, 1-42). Os capítulos 3 e 4 parecem - depois da depois da morte, mas aqui e agora, se acolhemos, na fé, o dom de
«abolição> do antigo templo (2,13-22) - uma iniciação no espírito de Deus: jesus Cristo. Assim, quem crê em Jesus,_ não conhecerá a conde-
Cristo e sua Igreja. Por isto encontramos aqui textos que pertencem nação (já tem a vida, diz jo 3,36; 5,24; 6,47). Vive a vida de Deus
aos mais significativos do Quarto Evangelho: Jo 3,14-21 e 31-36 - mesmo. Quem não crê, porém, já é condenado - não por Jesus, pois
quase tão fundamentais como o Prólogo (1,1-18), o pivô central (12,20-50; este veio para salvar (3,17) - mas por si mesmo, porque não aceitou
cf. próximo domingo) e os Discursos de Despedida (cap. 14-17). Estes o dom de Deus (e!. 12,44-50).
e alguns outros trechos do 4º Evangelho receberam, na linguagem Deste modo, a vinda de Cristo (e, sobretudo, a sua «elevação» -
dos exegetas, o nome de «discursos de revelação» de Jesus. cf. 12,31) é um julgamento para o mundo. No confronto com Ele, o
Característico destes textos é que só os entende, no seu sentido mundo se divide ein duas categorias: os que aceitam a sua luz (cf.
verdadeiro, aquele que foi iniciado no espírito de Cristo. Para o não- l,4-5.9ss) e os que a rejeitam. Como é possível alguém rejeitar a luz
cristão, ficam inacessíveis. São formulados no «código» da iniciação de Deus? Para responder a esta pergunta, Jo faz uma análise breve
104 105
3. Função na liturgia
mas penetrante. A Teologia da Libertação vê em Jo um teólogo da
cortoprâxis», por causa da sua terminologia «operar a verdade», cagir O presente evangelho faz parte da pedagogia da conversão diante do
segundo a verdade> (ljo 1,6; Jo 3,21; cf. Tb 4,6). A fé não é, em Cristo morto e ressuscitado, que é a linha geral desta quaresma. Diante
primeiro lugar, subscrever doutrinas formais (ortodoxia forma1) mas do gesto supremo do amor de Deus, realizado na existência humana de
agir conforme a verdade. Ora, biblicamente, verdadeiro. é, antes de' tudo, jesus, «homem para os outros», ninguém pode ficar indiferente. Ê um con-
Deus mesmo (cf. Jo 3,33; 8,26; e!. 7,28). Agir conforme a verdade ê fronto decisivo e, dependendo de sua decisão, a gente entra na vida
agir em fidelidade ao Deus fidedigno, realizar a sua vontade, assim verdadeira (vida do amor de doação que é a vida de Deus mesmo) ou
como Ele mesmo a faz conhecer, sobretudo, no Filho dado até o fim, no apagamento de uma vida que não agüenta a luz: a vida do egoísmo,
por amor. Quem age assim é quem deixa iluminar sua vida pela luz que da separação, da rejeição ... A nós escolhermos, não da boca para fora,
é o Filho de Deus. Quem age do modo contrário, foge desta luz diz mas <em atos e verdade> (e!. ljo 3,18). Aqui, o pregador poderá con-
joão, para que as suas obras rião sejam expostas à luz (3,20; cf.' ljo cretizar quais são atos de verdadeira doação ao mundo que Deus amou,
2,9 etc.). por exemplo (para ficar no tema da Campanha da Fraternidade), na
A incredulidade, grande problema para o Quarto Evangelista ( cf. maneira de tratar o ambiente natural, que é de todos. Será que amamos
12,37-43), explica-se, não tanto por razões especuJativas, mas antes por em espírito de doação este ambiente vital dos filhos de Deus, ou o des-
razões práticas: o homem não quer deixar questionar seu comportamento truímos em obras que não , agüentam a luz: loteamentos ilegais, des-
pela luz do Senhor «elevado», morto por amor e - nisto mesmo - matamento clandestino e tantos outros atentados contra o mundo dos
glorificado. O homem tem medo, tem ódio de ver a sua vida nesta luz. homens?
E, neste ódio, se condena a si mesmo. Porém, para ficarmos fiéis à ótica joanina, é mister mostrar o cris-
Mas quem expõe sua vida a esta luz, mostra que ele age «em tocentrismo de tais considerações. jo não pode servir de propaganda
Deus» (3!21),_ isto é, em união com a vontade do Pai, que faz com para um «partido ecológico». . . Trata-se de mostrar que conhecer Deus
que tal vida,· Já agora, possa ser chamada de «Vida eterna», vida divina, - o sentido último da nossa vida - é idêntico com aceitar jesus
vida de filho de Deus. Embora ainda não seja manifestado o que ela Cristo (o crevelador»). O que, na prática, se verifica numa existência
será em plenitude (cf. ljo 3,2), sabemos que a vida unida à vontade conforme à sua, uma existência para os irmãos («pró-existência»), até
do Pai é o nosso destino definitivo e último, desde já. Se não g-0stamos em coisas tão profanas como o cuidado do meio ambiente natural. Pois,
de tal vida desde já, também não adianta esperá•la para a eternidade. em Cristo, Deus amou o mundo dos homens.
Merece uma consideração o termo «em Deus»· (3,21). Faz parte das Bibllograjia: Ver 39 domingo da Quaresma.
«fórmulas de imanência» do Quarto Evangelho, cáracterizadas pela pre-
posição «em», muitas vezes acompâllhada por um verbo que exprime um OBSERVAÇÃO: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho do Cego de Nascença
(Jo 9,1-41). Pistas Exegéticas na .t'.Iesa da Palavra, Ano A, p. 136-139.
estado permanente (estar, ficar, permanecer). Assim, é dito que o Pai
está (permanece) no Filho e vice-versa (14,lOs; 17,21.23), o Filho nos Pe. Johan Konings
«Seus» e vice-versa (14i20; 15,4.5.7.9.10; 17,23), o Pai e o Filho nos Porto Alegre, RS
fiéis (14,23) e vice-versa (17,10), o Espírito nos fiêis (14,17). Estas
fórmulas expressam uma .união íntima, que, vista a dupla direção da
preposição, deve ser considerada como resultante de um movimento re- Tema Principal
cíproco. Não é uma infusão unilateral da realidade divina no homem1
como nos mistérios helenísticos e no gnosticismo, mas uma união bila- Só O CRJSTO NOS REVELA O VERDADEJRO DEUS
teral, implicando numa decisão do homem em favor de Deus. Embora
expressas numa linguagem de união mística (influenciada pelo ambiente
helenístico), as fórmulas de imanência têm um fundamento tipicamente
bíblico: a Aliança, pacto bilateral entre De11s e o homem. Tal pacto Sugestões para a Homilia
torna o homem representante de Deus nas suas 'obras. Assim como o
Filho faz as obras do Pai, porque «está no Pai e· o Pai n'Ele~ (14,10),
assim o que permanece n'Ele (15,5) faz as obras do Pai (10,37-39). Introdução
As obras <i:feitas em Deus» (em união com Deus) são, no fundoi obras
de Deus e assemelham o fiel ao Filho (embora a união deste com o É impressionante a franqueza da !> leitura, analisando o
Pai tenha uma natureza específica, expressa pelo termo «Unigênito»). comportamento condenável dos condutores do povo: infiéis, sur-
Jo 3,16-21 (como 10,31-38 e cap. 15-17) revela aspectos centrais da ;-~--
dos aos apelos de Deus, zombadores da Palavra, profanadores
teologia do .Quarto Evangelho: a vida, morte e ressurreição de Cristo do templo do Altíssimo. Por isso, sobre eles e o povo - que
como obra, ~orn e revelação do Pai; e, da parte do fiel, a decisão da tão mal conduzem - caem as iras de Deus: morte, deportação,
fé como participação nesta obra, que se torna presente nas próprias escravidão. Mas, em meio a tanta depravação, no horizonte surge
obras dos fiéis.
um templo novo: que é, antes de tudo, o Cristo elevado frente
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106
aos homens, qual serpente de Moisés no deserto (Evangelho), de Deus, nem são de punição seus gestos. São apelos ao nosso
pois o amor e a bondade de Deus acompanham sempre o homem amor e à verdade. É pela luz da verdade que nós nos devemos
(2• Leitura). O que nos comove é este apego de Deus ao homem, julgar, isto é, encontrar os parâmetros de nosso comportamento:
não obstante seu constante pecado. Deus não abandona o homem. 0 homem agirá na luz, porque, sabendo-se na verdade, nada
Esta mensagem cria alegria e confiança, em meio a um mundo tem a ocultar, nem aos homens nem a Deus. É homem livre,
de promessas sem cumprimentos. na plenitude do termo.
Conclusão
Corpo
Dia por dia somos desafiados pelo Cristo crucificado, nas
muitas cruzes q~e vemos, nas muitas que sofremos. Desafiados
1. Cristo apresentado aos homens pelo sofrimento que se abate sobre o homem, templo de Deus,
irmão do Cristo. Convidados a tomar uma posição: mirar-nos
Quando o veneno das serpentes dizimava o povo pecador
e idólatra, Moisés ergue uma serpente de bronze e a saúde
.
na verdade deixar-nos invadir pela luz. Sinceridade e docilidade
nos ajudarão a entender o plano de Deus e seu modo de assumtr
.
retorna. Era o remédio simbólico, como o próprio Cristo o 0 sofrimento do mundo. Continuamente instados a nos conver-
explica. Ele seria o verdadeiro remédio levantado diante da termos: olhar sempre de novo para o Cristo, voltar sempre de
humanidade que, olhando para ele, encontraria remédio para novo para o Pai.
seus males. Num mundo como o nosso epidemicamente roído Frei Hugo D. Baggio, O.F.M.
por mil poluições de toda ordem, distorções e profanações sem Rio de Janeiro, RJ
número, só o Cristo, colocado diante da humanidade, poderá
acordá-la para os verdadeiros valores. Daí o gesto profético de
João Paulo 11, no dia de sua entronização, levantando seu báculo,
com o corpo de Cristo pendente, diante da multidão que repre-
sentava a humanidade toda, prostrada em busca da salvação.
É nele que devemos fixar nosso olhar, é para ele que devemos
apontar, para que todos os olhos nele se fixem, porque, como
ele mesmo diz, a maior prova do amor e da bondade do Pai
é nos ter dado o Cristo, o Cristo que nós pregamos, mas Cruci-
ficado, porque por ele veio a salvação.

2. Cristo é o dom de Deus

O valor do presente indica o apreço do doador ao que o


recebe. Se Deus deu seu Filho ao mundo, pode-se concluir que
amor tem ele a este mundo, aos homens que neste mundo lutam
e se afadigam, dobrando-se ante tantos ídolos, uns trazidos do
ontem, outros plasmados hoje. Mas só o Cristo nos revela o
verdadeiro Deus, do qual somente nos pode vir a salvação. Este
Cristo é um julgamento, porque obriga o homem a confrontar
seu procedimento e seu modo de ver as coisas: tudo deve ser
visto à luz do Cristo. Sendo o amor e a bondade as forças
1 i
impulsionadoras do agir de Deus, seu «julgamento» vem mar-
cado por elas. Por isso, não são de vingança os pensamentos
1
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1
um dom gratuito, quase como uma anistia que tem como móvel a
Quinto Domingo da Quaresma bondade e a misericórdia de Deus. E o perdão dos pecados estabelece
um novo relacionamento, totalmente cordial e amistoso, entre o homem
Pistas Exegéticas e Deus. .
A Nova Alança é uma das mais belas e profundas profecias que
intuem e anunciam a realidade do Novo Testamento. Cristo mesmo
Primeira Leitura: Jr 31,31-34 referiu-se a ela expressamente na instituição da Eucaristia (Mt 26,28;
A Profecia da Nova Aliança marca uma nova compreensão do Lc 22,20). Pe. Aguinelo Burin, S.A.C.
plano salvífico de Deus, no quadro do Antigo Testamento. O profeta Santa Maria, RS
jeremias é encarregado de anunciar a Palavra de Deus num dos mais
difíceis períodos da história de Jsrael: os anos que precederam imedia- Segunda Leitura: Hb 5,7-9
tamente a grande catástrofe nacional da destruição de ]eritsalém e do
exílio. E o mais dramático é que a pregação de Jeremias pouco ou O texto da segunda leitura é a conclusão da parte da Epístola
nenhum. efeito produziu nos_ seu.s ouvin~es. Tanto que Jeremias estava que demonstra Ser jesus sumo sacerdote, fiel . e !"iseri~ordioso. Esses
convenc!do que .esse .povo nao tinha mais chance diante de Deus, «que quatro versicülos contêm em resumo toda a Cristolog1a, apresentam
sua ferida era incuravel> (Jr 30,12). A Aliança era continuamente rom- jesus Cristo nosso sumo sacerdote que sofre com e corno os homens,
pida. ~esse contexto de quase desespero, Deus revela a jeremiâs que
Ele vai fazer urna Nova Aliança com o seu povo. na paixão.
A paixão é descrita como uma oferta suplicante, cheia de respeito,
Para compreender a Nova Aliança, é preciso compreender o que era à vontade de Deus (cf. Mt 26,39). O autor afirma que essa oração foi
a Aliança do Sinai para os hebreus. Ela é como que a espinha dorsal ouvida1 mas ele teve de obedecer e sofrer. Porém, como pode-se dizer
de todo o Antigo Testamento. O conteúdo da Aliança do Sinai era a que. a oração foi ouvida se ele morreu? O autor de ~ebreus. não trans-
revelação da Lei, do caminho de Deus para seu povo. No êntanto, mite uma nova tradição sobre o fato de Oetsêman1, mas interpreta-o
essa Lei, dada em tábuas de pedra, não tinha conseguido conduzir à luz do Salmo 22(21) 20. Assim supondo-se a elipse, foi atendido
o povo a Deus. O ritualismo e o formalismo tinham abafado o seu <e liberto», e a tradução' de «eulabeia» (v. 7) por ang~stia e não por
conteúdo. submissão, o problema estaria resolvido em como explicar por que a
Deus então promete algo novo. Não se trata de renovação da oração ·foi ouvida (cf. Zorell, Lexicon Graecum - «eulabeia»). .
Aliaôça do Sinai, nem de sua reformulação parcial. Trata-se de algo Nesse caso a oração de Cristo teria sido ouvida enquanto ele foi
diferente: «diversa, porém, será ... » E a novidade vem exposta nos líbertado por Deus da angústia da morte. Essa possibilidade certamente
vv. 33-34. Os elementos principais da novidade são três: interiorização, abriria .uma perspectiva nova para a oração do cristão perseguido. Sem
conhecimento de Deus, ·perdão dos pecados. angústia, medo da morte, ele obedeceria ~om !emor filia}, .e pelos so-
Como primeiro elemento da novidade, a Aliança passará a ser gra- frimentos chegaria à perfeição. Deus nos hvrar1a da angustia da m,?rte
vada no coração do homem. Isto recorda o fato do Sinai, narrado no e não do amargor dela, à semelhança do que aconteceu com o Cnsto.
exodo (32,15-16), em que a Lei da Aliança era gravada em tábuas O te:tto é então semelhante ao Hino Cristológico de Fl 2,6-11, onde
de pedra. Na nova Aliança a Lei será colocada no íntimo do homem. se afirma que a obediência leva à glorificação~ expressa aqui. não em
Não será apenas uma lei externa que necessita de ameaças e sanções, termos de senhorio mas de sacerdócio. Hb sublinha a humanidade do
mas será uma· lei interior que inclinará suavemente o homem a seguir sacerdote que ~ra representar os homens deve ser um deles, sofrendo
com alegria e decil.idade ~ vontade de Deus. A Aliança do Sinai, gra- com os 'homens tendo experiência pessoal de suas misérias. Toda a
vada em pedra, fot rompida. O gesto de Moisés de arrojar ao chão vida de jesus Íestemitnhou a realidade de sua humanidade, mas esta
e romper as pedras da Lei (Ex 32,19), no episódio do bezerro de ouro, se revelou sobretudo nas humilhações, nos sofrimentos mais atrozes que
:onra-se um simbolo de toda a A1iança Sinaítica. A Nova Aliança, culminaram com sua morte. Foi no Getsêmani que jesus, Filho de Deus,
implantada por Deus no coração do homem, será perene. manifestou em grau supremo s·ua fidelidade. e capacidade de miseri-
E esta perenidade lhe advirá do segundo elemento de novidade: um córdia, experimentando a dor. Deus não subtraiu Cr!sto da morte, ~te.n­
conhecimento interior de Deus. Não se trata de um conhecimento espe- dendo seus <pedidos e súplicas», mas, além de bvrâ-lo da angustia,
culativo, mas de um conhecimento afetivo, amoroso, que abre o coração fez que sua morte fosse transformada em exaltação e glória (cf. teo-
do homem para Deus e o leva a aderir com alegria a seus preceitos.
Este conhecimento não necessitará de mestres porque será posto no logia da cruz de Jo 12,27s; 13,31s; 17,5 e Hb 2,9). Ele apre~d~u a
íntimo do homem pelo próprio Deus. E não será privilégio de poucos: obediência pela pedagogia do sofrimento, isto é, pela sua subm1~sao e
todos receberão este conhecimento, grandes e pequenos. Provavelmente piedade filial, enfrentou corajosamente a morte (Jo 18,4~s), aceitou a
aq~i são indicados os sábios e dirigentes da nação, bem como os pobres
decisão de Deus seu Pai (Lc 22,42; Me 14,36), que nao se opôs à
realização das maquinações iníquas dos homens que o levaram à morte
e ignorantes.
O terceiro elemento da Nova Aliança é o perdão dos pecados. (Jo 11,50).
O sacerdócio levítico que no Antigo Testamento não é apresentado
Certamente, o perdão dos pecados não é em si uma novidade no como vocação, enquanto o de Cristo, sim, não podia ser considerado
Antigo Testamento. Mas aqui faz parte da 'novidad~ da aliança diversa, como perfeito. Cristo, porém, foi levado à perfeição, sua natureza humana
que Deus vai estabelecer com seu povo. Este perdão é anunciado como
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foi refun.dida no crisol do sofrimento, ele foi ~consagrado sacerdote». um sentido de manifestação universal ao mundoJ reforçando as últimas
E este é o sentido do termo «levar à perfeição» nos LXX (cf. Ex palavras do contexto precedente: <Todo o mundo vai atrãs dele» (12,19)
29 e Lv 8), em Hb 21 101 onde significa o mistério da glorificação de e preparando o tema da rejeição do judaísmo, incrédulo (12,31 e, so-
Cristo (e!. 5,9; 7,8), e em Hb 10,14 significando a plena realização da bretudo, 12,37ss). 1Jesus anuncia a hora da glorificação do Filho do
vocação do homem (cf. 11,40; 12,23). Homem, da manifestação ao mundo, Porém, não é algo espetacular. Trata-
Acontece no homem uma transformação radical, qlle não era possí- se, mais uma vez,::: de uma ambigüidade do «código» joanino (cf. com.
vel com os ritos antigos1 e ele torna-se digno de Deus. Trata-se de de dom. pass.). Pois esta glorificação do Filho do Homem não é sua
uma obra divina, realizada pela paixão de Cristo, que assume um ca- vinda sobre as nuvens do céu - seu trono de glória -, como o
râter sacerdotal enquanto é comunicada por Cristo aos que aderem a descrevem os livros de Daniel e Henoc e os evangelhos sinóticos (Me
ele. Embora isento de sofrimentos, quis experimentar na sua carne, 14,62 par.; cf. Me 13,26 par.; Mt 25,31). A glória de Jesus é a sua
quanto custa a submissão à vontade divina e assim merecer por nós «exaltação:t>, e esta, é, antes de tudo, a elevação na cruz, como mostra
a salvação eterna. · o fim da presente·, pericope os v. 32-33. Mas antes de chegar a estes
Em suma, a leitura mostra como o Pontffice da Nova Aliança está versículos, Jesus aprofunda o paradoxo. Tendo criado a expectátiva
perto dos homens. A vida humana de Cristo, perseguido, caluniado1 de um acontecimento extraordinário, descreve agora este acontecimento
incompreendido, torturado e por fim n1orto1 tornou-o apto a conferir mediante uma parábola: um grão de trigo cai na terra e morre para
a seus seguidores a salvação. O cristão aprende que os seus sofrimen- produzir fruto. O leitor iniciado no mistério cristão entende: é a morte
tos podem adquirir um ·novo significado à luz dos sofrimentos de jesus. de Cristo e sua ressurreição, da qual vive a sua Igreja, pelo dom do
Espírito, dom pascal (cf. 7,37-39; 20,19ss). Mas para os «gregos» estas
Bibliograjla: O. K u s s, La J2Hera agli Ebrei1 Brescla 1956; F. j. S e h i e r s e, palavras ficavam c.ertamente grego ...
Lettera agli Ebr2i1 Roma 1968.
A parábola é explicada nos versículos seguintes por umas palavras
1
Pe. Carlos Alberto da "costa Silva, S.C.J. de Jesus que se encontram também na tradição sinótica (ci. Mt 16,25
Paulista, PE par.; Mt 10,39 par.). Para ganhar a vida é preciso perdê-la. Pois
a vida que se tem agora não é uma morada definitiva, mas uma
Terceira Leilnra: Jo 12,20-33 ocasião para a gente mostrar qual é seu verdadeiro compromisso -
e este se revela quando se doa a vida para o bem supremo, que é
a participação do amor de Deus. Quem torna a sua vida aqui o objeto
1. Contexto da perlcope último de seu compromisso1 perde o trem da vida eterna. Quem, porém,
gasta sua vida para realizar a doação até o fim, está com jesus, aqui
Jo 12,20-50 é o pivô central do Quarto Evangelho. Antecede a este e para sempre (v. 26) (cf. Mt 10,24 par.; 10,3~ par.). Assim, se serve
texto a primeira parte do evangelho, o «livro dos Sinais» de jesus (jo a Jesus como Senhor e recebe-se o reconhecimento do Pai. Em outros
1,19-12,19), descrevendo a atividade querigmãtica de Jesus, que Jo ca- termos, viver de verdade é estar do lado de JeSus. Aliás, é uma expe-
racteriza a partir de alguns gestos milagrosos («sinais» no sentido
vétero-testamentário), explicados por <discursos (diálogós) de revelação>. riência que se supõe que cada cristão verdadeiro conheça: gastando sua
vida no serviço do seu irmão (profissionalmente no dia-a-.dia, excep-
Nestes discursos não ouvintes apenas a voz de jesus; mas também da cionalmente nas circunstâncias imprevistas no heroísmo até), ele expe-
igreja1 depois de meio século de reflexão cristã. Depois do pivô central, 1

em ]o 13,1-20,29, temos' o «livro da Exaltação». Mostra: jesus na chora~ rimenta que isto é viver - uma vida que ninguém lhe pode roubar:
da sua elevação na cruz ·e na glória (cf. com. de dom. passado). O é «realização».
episódio 12,20-50 serve para concluir a atividade pública de Jesus e Agora fica claro o que é este estar com jesus. É estar com Ele
inaugurar esta «hora>1 que, até agora1 «ainda não chegara» (cf. 2,4; na sua agonia (cf. Mt 26,36-46 par.). A ousadia literária de João faz
7,30; 8,20). com que, na «hora da glorificação do Filho do Homem~ se situe a•
Narrativamente, o episódio -continua a situação da entrada de jesus angústia da agonia de Jesus, o grão de trigo que se sente sufocado
em Jerusalém e da proximidade da Páscoa (cf. 11,55; 12,1). Esta si- na terra. Embora joão nos apresente, no seu evangelho, jesus visto
tuação explica a presença de gente de fora 1 judeus helehistas e "gregos>, através da Ressurreição, ele não esconde o drama humano desta existên-
simpatizantes do judaísmo ou prosélitos do mundo greco-latino, que cia (e!. Hb 5,7), drama da obediência ao Pai (cf. FI 2,6ss), na doação
vieram a jerusalém par.a participar da romaria da Páscoa. até o fim. Jesus veio a «esta hora> (v. 27) - a hora que Jesus, con-
forme Me 14,41, anunciou no jardim de Getsêmani - porque ele quer
ser o dom do amor de Deus ao mundo (ci. Jo 3,16). Sua glorificação
2. Explicação do texto é a sua obediência até o fim: é isto que significa o tema da glorifi-
cação de Deus em Cristo, v. 28-30 (e!. 17,1.5). Podemos dizer, diante
A introdução mostra os romeiros1 de Jíngua grega1 se dirigindo aos destes textos, que aquilo que no céu é a glória do Filho, glória eterna
apóstolos de nome grego, Filipe e André, originários de Betsaida1 a porque divina (cf. 17,5; l,lss), aqui na terra se manifesta como obe-
parte mais helenizada da Galiléia. Na suposição que se trate de pagãos diência até o fim (e!. FI 2,6-11). De fato, ambos os conceitos - glória
(ou prosélitos, mas em todo caso não de judeus), a exclamacão de e obediência - significam a mesma coisa: a íntima união de Jesus
Jesus <Chegou a hora em que o Filho do Homem é glorificado> ganha com o Pai razão pela qual o chamamos de Filho, e Filho único.
1

112 113
-----------------~--

Ora, frente a esta original manifestação da glória de Deus na Tema principal


obediência de seu Filho no plano de amor, a humanidade entra numa
situação de decisão. Não pode ficar neutra. Por isso, esta hora é real...
mente a hora do Filho do homem, que, tradicionalmente, é considerada A Paixão como hora da exaltação do
como o juízo final (cf. Mt 26,64 par.; 25,31ss; 24,21ss par.). Por isto, Messias, Servo-Sofredor
]o caracteriza esta hora como hora de julgamento, hora em que o
príncipe deste mundo é jogado fora: aquele que dominou o mundo e o Sugestões para a homilia
subtraiu ao amor de Deus. E aquele que é chamado Satanãs, o opositor
de Deus, a personificação da rebeldia contra Deus: Na hora decisiva
de Jesus, na hora da: efetiva doação «até o fim» (cf. Jo 13,l), este A Liturgia vai se aproximando de sua proclamação central
«chefe~ é vencido: Deus venceu o mundo pelo amor de Cristo (cf. e maior. O Quinto Domingo da Quaresma coloca o cristão face
16,33). Mas este julgamento refere-se não a mna figura mitológica que a face com o núcleo do Mistério: a Nova Aliança, a oblação
nada tem que ver conosco. Trata-se do julgamento:_ do homem que se sacerdotal sob a forma de uma existência efetiva, a exaltação
une a esta incredulidade. Em outros termos, a cruz de Cristo é o trono
da sua glória e ao mesmo tempo seu tribunal; diante da cruz, nós de Jesus como, glória de Deus. São três expressões ou três
nos unimos a Ele (v. 25-26) ou então entramos no julgamento e somos visões de uma mesma realidade, o que faz com que as duas
jogados !ora (v. 32) (cf, 3,18-21, ev. de dom. pass.). primeiras leituras fluam naturalmente para o interior da terceira.
Nesta hora entra em função o senhorio de Cristo: ele será «ele- Com efeito, tanto a idéia de uma Nova Aliança, proclamada na
vado da terra» para atrair todos a si: imagem do Senhor glorioso, - iminência do exílio, quanto a aceitação da oblação sacerdotal,
mas não devemos esquecer que esta exaltação, para joão, se realiza
antes de tudo na elevação da cruz, prova do amor de Deus e revelação feita sob a forma de um sofrimento real que é tensão morte-
do seu rosto. Isto, explica-o a «nota de rodapé» que é o v. 33. vida, encontra centro e contexto na dialética exposta pelo Quarto
O tema da hora será retomado logo no começo do capítulo seguinte Evangelho. Este é o grande marco da liturgia dominical.
(13,lss), inaugurando a segunda parte do evangelho. E a hora de Proclama-se a iminência da «hora» e esta proclamação faz-se
Jesus passar deste mundo ao Pai, hora de amor até o fim. na seqüência de um pedido, o de alguns gregos que queriam ver
Jesus. O significado maior do episódio é fazer suceder à simples
3. Função na liturgia visão física do mestre e taumaturgo o conhecimento, ainda que
obscuro, do «mistério da hora». Esta desvela-se como o momento
Contemplando a cruz como revelação da glória de Deus, pois Deus decisivo. Sob forma parabólica é ela a hora do grão de trigo:
é amor radical (cf. ljó 4,8-11), somos levados a tomar - ou retomar neste, a morte é necessária para que a vida manifeste a sua
- a nossa decisão existencial. Optamos pela «lei do grão de trigo»
ou pela auto-suficiência do «príncipe deste mundo»? Assim, a Jiturgia, plenitude. Eis a dialética pascal, o centro de consistência e o
mediante este evangelho (e os dos domingos precedentes) hos envolve clímax do novo êxodo, o processo vital que faz da nova aliança
num movimento de conversão radical, ao aproximarmo-nos - também no uma nova criação. É apenas no dom total da vida, no empenho
tempo litúrgico - da cruz de Cristo, revelação do amor de Deus para sem reservas da própria pessoa, que se pode alcançar a pleni-
nós. E questionada, aqui, toda a nossa criteriologia pessoal. Minha vid@, tude. No fundo Jesus assume a razão de ser seminal do homem;
é ela uma «pró-existência», um estar do lado de jesus, ou uma expio·
ração? Tenho que decidir: confrontado com Cristo, não me posso a dialética do grão de trigo é kenose e elevação. Desde já, Jesus
•esquivar desta decisão. · abre aos seus este mistério, desvela-o, chama-os. Desde já, o seu
êxodo e a sua Páscoa são de todos. Na ação pascal Ele é o
Bibliografia: Ver 39 Domingo da Quaresma.
Homem; é na sua identidade, desde o momento seminal de seu
OBSERVAÇÃO: Neste Domingo pode-se ler o Evangelho de Lázaro {jo JJ,1-45).
Pistas Exegéticas na Jlfesa da Palavra, Ano A, p. 1·15-148.
ser, que todo o homem é chamado a encontrar a própria identi-
dade. Em verdade, se assim é, é porque a humanidade não é
Pe. ]ohan Konings nele um revestimento ou um meio, mas realidade efetiva e plena.
Porto Alegre, RS J-lá algo de verdadeiro na legenda do herói: a vida humana não
foi feita para ser preservada, mas para ser conquistada mediante
o dom total.
Isto não obsta mas inclui a experiência da angústia: o impor-
tante, o essencial é não fugir à «hora». Esta já é, para João,
o momento da glória, palavra que designa a presença mais

114 115

~-----------
pessoal, a presença supereminente de Deus. E nesse sentido Domingo da Paixão ou de Ramos
que a voz do Pai faz-se ouvir. A «hora» é a teofania essencial
desde sua face dolorosa;. nela, Deus se mostra no homem que 1. COMEMORAÇÃO DA ENTRADA DO SENHOR
se eleva na dor e supera a morte passando por ela. Este elevar-se EM JERUSALÉM
é julrramento do próprio princípio do mal, chamado pelo Evan-
gelist~ «Príncipe deste Mundo». Não é necessário pensar em Evangelho da Procissão de Ramos: Jo 12,12·16
uma entidade precisa: a história mostra muito bem, a cada
geração e povo, o que pode significar esta expressão. Mas este 1. Conte::rlo da perícope
elevar-se é, acima de tudo, um atrair tudo para o seu centro, O presente evangelho faz parte da semana pascal de Jo. e um
o homem em quem se manifesta a glória, o homem teofânico. «texto sinótico» do Quarto Evangelho, e pode ser comparado com Mt
Está a liturgia em pleno prólogo do evangelho de Páscoa, ao 21,1-9 par. Nos Sinóticos, a entrada de Jesus em Jerusalém (que é sua
mesmo tempo que é rematado o livro dos Sinais. Donde a primeira visita ai) e a purificação do Templo formam um conjunto.
penumbra que envolve a cena e as palavras de Jesus. As repre- E?J. Jo, o contexto é. remodelado. Conforme joão, jesus já tinha ido
varias vezes a jerusalem (2,13; 5,1), e desde o cap. 7 Ele se encontra
sentações do Messias Rei e do Servo se interpenetram e cedem ai quase permanentemente. Portanto, jo precisa dar uma outra razão
lugar, sem se perder, ao Filho do homem ( cf. Jo 12,34-36), que os Sinóticos, para explicar a recepção triunfal que é oferecida a
sem que nenhuma delas se deixe limitar por suas orige!.1s no Jesus em jerusalém. Nos Sinóticos, a razão é que as multidões reconhe-
Antigo Testamento. A «hora» é o momento da revelaçao da cem no profeta vindo de Galiléia o Messias esperado. Em Jo, é por
ocasião da ressurreição de Lázaro, contada imediatamente antes (11,1·
verdadeira identidade de Jesus. 12,11), que a multidão lhe prepara esta. entrada, como está explicitamente
De toda esta densa compreensão teológica do mistério de em 12,17-18. De modo que esta entrada, como também o sinal da
Jesus pode-se inferir o lugar do humano e, no humano, da. morte ressurreição de Lázaro, se torna mais uma razão para os fariseus ~e
no mistério pascal. Como um outro Jesus, cada homem e cha- fixarem na sua oposição mortal a Jesus. Eles são os representantes
mado à sua vocação seminal e é só na realização efetiva desta da incredulidade. Entretanto, devemos ler este episódio não apenas pen-
vocação, na trama de uma vivência pascal, que se encontra e sando em Jesus de Nazaré pelos anos 30. Ilustra também o que estã
acontecendo no fim do primeiro século, quando João publica seu evan-
desvela quem é o Filho do homem. A celebração mais solene da gelho. Os cristãos se tornaram numerosos, mas também perseguidos
Páscoa é, anualmente, o momento de eleição desta descoberta. pelo farisaísmo: <Todo o mundo vai atrás dele» (12,19).
Hoje, no Terceiro Mundo, o seu lugar é a grande massa das ]o não dá muito peso a este episódio. Ê, para ele, um dado tra-
populações oprimidas. Estas, na razão .direta de sua fé, mas dicional (cf. Sinóticos), que ele utiliza para arredondar o episódio de
também de sua simples humanidade, são o Messias, o Servo, Lázaro (cf. v. 17-19) e para preparar o tema do interesse suscitado
o Filho do homem a elevar-se e mani"festar em humanidade a por Jesus (e!. v. 20ss; e!. com. do 5• dom. da Quaresma).
glória de Deus.
Francisco Benjamin de Souza Netto 2. Explicação do te::rto
São Paulo, fevereiro de 198-1
No texto de Jo, não encontramos a preparação da entrada em Jeru-
salém mediante a missão dos apóstolos para conseguir uma jumenta,
como em Me 11 11·6 par. Jo coloca imediatamente em cena o povo que
vai ao encontro de Jesus com ramos de palmeira, gritando a aclamação
messiânica «I-losana», que significa «Salvai-nos» e faz parte do Salmo
118(117), salmo pascal (Hallel) (Jo 12,12-13; o!. Me 11,7-10 par.).
Ao «Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor» - cumprimento
do SI 118,25s - Jo acrescenta algo que não está tal qual nos evange-
lhos sinóticos: «O rei de Israel» (cf., porém, Me 11J10). A partir "deste
termo, coloca em termos o motivo do burrinho do rei messiânico, ci-
tando, como Ml 21,5, o texto de Zc 9,9-10. O mais característico do
texto joanino é o v. 16, dizendo que, depois da glorificação ( = morte
e ressurreição) de Jesus os apóstolos se lembraram do fato e entenderam
que foi um cumprimento das Sagradas Escrituras. ]o gosta de insistir
que as Escrituras só foram entendidas depois da morte (glorificação)

117
116
de Jesus (2,17.22; 7,31; 20,9). É o Espírito que faz entender (e!. 14,26).
É, portanto, na comunhão dos que são de Cristo, que se encontra o guo e sujeito a mal-entendidos, já que os próprios discípulos só enten-
sentido das Escrituras. Ao mesmo tempo, isto explica por que os judeus dem depois (12,16), - para não falar dos outros (cf. os mal-entendidos
não entenderam (no tempo de jesus) nem entendem (no tempo de em 3,5ss; 4,!0ss; 4,32ss; 6,31ss etc.). 'No cap. 19 estamos na segunda
João) as Escrituras (cf. 5,39.46s). parte, o <livro da Exaltação>. Ai, tudo se torna claro. jesus é Rei e
Portanto, jo retoma a idéia tradicional de que jesus é o rei messiâ- Messias, mas não no sentido em que o mundo o entende. Sexta-feira •
nico, sentado num jumentinho, mas não no mesmo sentido que J\'lt 21,5, Santa dá a luz para entender o Domingo de Ramos. Também .todo
pois jo omite a menção de que este rei é suave (prays), o que se mundo vai atrás dele» (12,19), mas não no sentido em que o mundo
revela, em Zc 9,9, no fato de ele montar num burrinho. Em outros entende isto.
termos, ]o não se interessa em descrever Jesus como o rei humilde, • O .ll!essianismo (a realeza) de jesus, celebrado no Domingo de Ramos,
mas como o «rei de Israe)}}, título que está presente no começo de e a y1:or1a sobre o mund~ pela cruz:. A ressurreição de Lázaro, que,
seu evangelho (1,49) e que voltará em uma discussão irônica no fim, na visao de jo, é a ocas1ao para a manifestação popular descrita em
quando Pilatos coloca na cruz de Cristo o título «rei dos judeus» e 12,~2ss, é o anúncio da ressurreição daquele que é «Ressurreição e Vida».
não quer mais mudar o que escreveu. Também, na história do pro- É 1st~ que se celebra na idéia do messianismo de jesus: a «vida» que
cesso de Jesus, os judeus são apresentados como desistindo de suas ele da, como dom de Deus, na sua morte e ressurreição.
ambições de ter um rei, um messias: só César mesmo (19,15). Tudo É ~vidente que este evangelho dá uma base para desenvolvimento
isto nos leva a descobrir a intenção de ]o de destacar o título «rei no sentido da superação do messianismo terrestre de qualquer espécie.
de Israel», o que significa a mesma coisa que Messias, mas no con-
texto do Quarto Evangelho soa um pouco mais polêmico, já que a Bibllogra/ia: Ver domingo passado.
Igreja está em discussão com os que se consideram Jsrae~ mas já não Pe. johan Konings
são: o judaísmo rabínico. Porto Alegre, RS
O evangelho de João não dâ ensejo para uma pregação sobre jesus
corno rei humilde. Sim, como Messias, cumprindo escrituras a respeito li. A SANTA MISSA
do rei messiânico. Em comparação com os Sinóticos, a cena perdeu
muito de seu colorido popular. !ornou-se praticamente uma mera con-
fissão de fé messiânica, mas confissão ·inconsciente, pois só mais tarde Pistas Exegéticas
If!mbraram-se do sentido (12,16). Ora, mesmo os fariseus unem-se a
esta confissão do messianismo de Jesus, reconhecendo que «todo mundo
vai atrâs dele> (12,19). Certamente, jo quer ilustrar também, por estas Primeira Leitura: Is 50,4-7
palavras, a situação no seu tempo.
O Servo de ]avé de' Dêutero-Jsaias

3. Lugar na liturgia A leitura Is 50,4-7 foi comentada na Mesa da Palavra, Ano


A, p. 156-157. Por isso aproveita-se agora da oportunidade para
Ê sobretudo o lugar na liturgia que valoriza o presente evangelho.
E o começo da «Semana Santa». Fica patente o contraste entre o entu-
dar uma introdução mais geral na problemática dos Cânticos do
siasmo da multidão do Domingo dos Ramos e a traição na Sexta-Feira Servo de Deus Sofredor.
Santa. O evangelho de joão fornece uma explicação para este contraste:
quando da acolhida de jesus no domingo de ramos, o povo e os l. Baseando-se em argumentos históricos, doutrinais e literários a
discípulos, no fundo, não sabiam o que estavam fazendo. Só mais tarde exegese divide o livro de Isaías em três partes: cc. 1-39; 40-55; 5tÍ-66
entenderam (v. 16). Por enquanto trata-se de «fé por causa dos sinais», e lhes dá os nomes de Isaías, Dêutero-Jsaias e Trito-Isaías. A primeira
como explicam os v. 17-18 (não lidos na liturgia), um entusiasmo não parte desenrola-se em Judá, durante a segunda metade do oitavo século
baseado na decisão pessoal de aderir a Cristo, mas na procura de seus aC, quando os reinos de Israel e de Judâ são ameaçados por Assíria.
benefícios. Este nível de adesão deverâ ser superado, e poderá sê-lo Os cc. desta parte são, salvo algumas exceções, atribuídos a ]saias.
diante do «fracasso» humano de jesus, na hora de sua morte. Quando A segundlf _parte desenrola-se em Babilônia, capital dos caldeus, depois
ele tiver perdido toda atratividade, o homem se pode decidir em favor da destrmçao de jerusalém em 587-586 e durante o cativeiro. O livro
dele, e então ele atrairá todos a si (12,32; c!. domingo passado). ~onhece de nome o rei dos Persas, Ciro (559-529), e o' saúda como
Num certo sentido, Domingo de Ramos é a festa de Cristo Rei. bbertador do povo do cativeiro. A terceira parte supõe a volta do exílio
O evangelho de João oferece perspectivas interessantes sobre este tema, para Jud~ e Jerusalém e é atribuída a vádos autores anônimos de épocas
sobretudo nos cap. 18-19 (e!. REB 37, 1977, n. 148, p. 255*). Torna diferentes.
explícito que o Reino de jesus não é «deste mundo> (19,36). O texto
do cap. 12 prepara este tema. No cap. 12, jesus é aclamado como 2 Em Dêutero-lsalas encontram-se os quatro Cantos do Servo de Javé
Messias pelos judeus. Porém estamos ainda na primeira parte do Quarto (Is 42,1-7; 49,1-6/9; 50,4-9; 52,13-53,12). Apesar de conterem muitas
Evange}ho, o «livro dos Sinais», em que o cevento» de Jesus fica ambí- expressões e tendências encontradiças no resto de Dêutero-Isaías estes
cantos podem ser destacados. Qual é o personagem que se escond~ atrás
118
119
do titulo c:servo», tão rico de: conteúdo para o pensamento cristão? Conforme o hino, Jesus, morto na ciuz e depois exaltado, recebe de
Esse é um dos problemas do Antigo Testamento mais discutidos pelos Deus e da comunidade o nome de «Javé». Antes Ele não tinha este
entendidos. Têm-se formulado numerosas hipóteses de interpretação. Hâ nome. Ele era Deus preexistente. Assuffiindo a natureza humana poderia
.... três correntes maiores. ter-se valido desta igualdade com Deus. Mas ao tornar-se homem e .._
inaugurar a Sua missão preferia apresentar-se à humanidade como servo '
3. A primeira vê no Servo .de Javé um indivíduo, distinto do povo
(em 49,6 e 53,3-8 ele desempenha um papel junto ao povo, enquanto de Deus e não como senhor do universo. Esta preferência não era
nas outras partes de Dêutero-Isaías a expressão «O Servo de Javé» somente de ordem subjetiva, mas de 9rdem objetiva. Ela revela que o
indica o povo todo!). Mas não se chegou a um acordo ao precisar homem se realiza mais na submissão a Deus do que no senhorio sobre
este personagem. Trata-se de uma figura do passado (Moisés; Davi ou o mundo e o universo. A soberania , do homem somente será plena-
um de seus descendentes); ou do presente (um profeta; o próprio autor mente humana se e na medida que ela for serviço de Deus. O fato
de Dêutero-Jsaías); ou do futuro (o .i\o1essias; um rei g1orioso dos fins que Jesus recebe o senhorio sobre o universo depois de Sua obediência
dos tempos)? A dificuldade não data de hoje. Ela já aparece no Novo até a morte revela que nela não há nada de usurpação. Nas palavras
Testamento: «De quem disse istó o profeta: de si mesmo ou de outro?» usadas no hino pode transparecer uma alusão à criação do primeiro
(At 8,32-35). homem e ao pecado de Adão: « ... não se exclui ... a antítese implícita
De qualquer modo unem-se na figura do Servo de Javé traços opondo 'Cristo a Adão: Cristo que possuía a semelhança divina não se
proféticos e reais. E ele é também salvador, sacerdote e vítima ao apegou 'ª ela avaramente, enquanto Adão quis arrebatar, por desobe-
mesmo tempo que - pelos seus sofrimentos - «intercede pelos culpados» diência, a semelhança com Deus» (Gn- 3,5.22; Dupont, p. 430). Dando
(Is 53, 12). Ele tem uma missão missionária junto a todos os povos. a este Jesus nada menos do que o iseu nome próprio «Javé», Deus
revela que Ele se identifica com quem se sabe identificar plenamente,
4. A segunda corrente dá à expressão «Servo de Javé» um sentido isto é, até a autodoação na morte, 'com Deus e com a vontade de
coletivo. Ela não vê no Servo um indivíduo, distinto do povo de Israel Deus. Schoonenberg resume esta dialética na frase: «(Jesus) foi total-
de que se fala nas outras partes do mesmo livro. É o povo que será mente Ele, dando-se totalmente a Deus» (p. 55). Nesta modalidade da
luz das nações; que deverá sofrer a perseguição e a morte pela sij).- salvação· que se revela no modo de ·ser homem do Cristo, revela-se
vação dos povos. Admite-se que se trataria de um grupo pequeno de também o valor objetivo das virtudes cristãs de humildade e obediênciâ:
fiéis no seio do povo. Seria o pequeno resto que permanece fiel a elas criam pela abnegação de si mesmo e a dedicação a Deus e aos
Deus e que deve servir de testemunha aos demais membros do povo e outros aquele vazio que Deus quer preencher com a Sua presença e
às nações. a Sua glória.
5. A terceira corrente combina as duas anteriores. Ela dá à expres- «jesus é Javé». Esta confissão de 'fé ou doxologia não é uma di-
são um sentido representativo. Usa-se o termo: personalidade corpora- vinização ou deificação indevida que existia no mundo greco-romano,
tiva. O Servo de Javé incorporaria na sua pessoa todo o povo, seu em que reis e imperadores se deixavam idolatrar como deuses. Não
passado e seu futuro. O profeta que escreveu os cantos teria proje- era uma blasfêmia para os primeiros cristãos e não o é para nós,
tâ.do nele o verdadeiro Israel. O Servo é, para ele, a incorporação per- porque nela se professa que se procura a salvação em alguém que
feita tanto da ação salvífica de Deus como da resposta do povo. Ele deu honra a Deus e recebeu honra de Deus. «Esvaziou-se (ou :
será a revelação e encarnação 'messiânica ou escatológica daquilo que aniquilou-se) a si mesmo... feito obediente até a morte da cruz». l\fa
há de melhor da parte de Deus e da parte da humanidade. O Novo cruz Jesus experimentou a desolação da parte dos homens como desp-
Testamento proclama a realização destas expectativas em Jesus de Na- lação da parte de Deus: «.M.eu Deus; meu Deus, por que me aban-
zaré, na sua vida, paixão e morte, e ressurreição. donaste?» Não tendo mais nada a esperar dos homens e não querendo
Raul Ruijs, O.F.M. atender ao desafio «Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo», EJe confiava
Petrópolis, RJ Sua causa ao mesmo Deus de que se sentiu desolado: «Pai, nas tuas
mãos entrego o hleu espírito». Na confissão de fé «Jesus é Javé»
professamos que Deus deu razão a Jesus e que nós também Lhe damos
Segunda Leitura: FI 2,6· 11 razão. Jsto não é blasfêmia, porque nisso também professamos que . a
realização plena do homem existe na dependência absoluta de Deus
«..• obediente até a morte da cruZ» antes, durante e depois da morte; e que, por isso, pode-se arriscar a vida
(0 texto foi comentado na Afesa da Paltwra, Ano A, p. 157-159 e 475-477).
pela glória de Deus.
Paulo quer que esta estrutura objetiva da salvação se traduza em
No contexto de uma exortação aos cristãos de Filipqs Paulo cita um estruturas de vida e de convivência das comlU1idades cristãs e da Jgreja.
hino cristológico. Através desta citação sugere que as principais coorde- «Cristo 'realizou a obra de Sua redenção na. pobreza, na humildade, na
nadas da salvação operada através de Cristo marquem a existência renúncia, no sofrimento livremente aceito; seu exemplo é um apelo diri-
cristã. Estas coordenadas aparecem na estrutura do hino. gido à Igreja. Incumbida de propiciar 'aos homens os frutos da reden-
Na doxologia «Jesus Cristo é o Senhor» em que cuJmina o hino, ção, a Igreja não pode cumprir sua tarefa por meios diferentes dos
dirige-se a jesus o nome que no Antigo Testamento é reservado a Deus. que Cristo empregou para nos salvar»: (Dupont, p. 434).

120 121


Bibliografia: Ci. a Mesa da Palavra, Ano A nas páginas citadas acima As
citações são de: P. S c h o o n e n b e' r g, AnlqullÓu·se a si mesmo (Fl 2 7) ·em· que põem em movimento este processo crescente de abandono, de entre-
Conciliam (1966/l), 42·58; J. D u p o n t, A Igreja e a Pobreza em O B a' r â ú n ã ga e de traição: judas O trai, Pedro O renega e todos O abandonam.
(ed.), A Igreja do Vaticano II, p. 42~452. ' ·
Em 14,50 há outro sumário destas atitudes: sendo preso <lodos O
,.. Raul Ruijs, O.F.M. abandonaram e fugiram». Neste momento realiza-se a palavra que jesit.s
Petrópolis, RJ tinha proferido quando se aproximaram do Monte das Oliveiras: «todos
vós vos escandalizareis» (14,27). A correspondência entre o prévio aviso
Terceira Leitura: Me 14,1-15,47 (ou: 15,1-39) e a conseqüente execução ressalta o caráter paradoxal e trágico da
solidão de jesus: a traição de judas e a negação de Pedra são pre-
«Salvou outros!» ditas e depois em extenso pormenorizadas: «um de vós que come comi-
go:r> (14,lS)j «é um dos Doze que se serve comigo do mesmo prato»
1. A Narração da Paixão de Marcos é, como o resto do Evangelho, (14,20; cf. 14,34). A comparaçãó entre Me 14,27-31 e 14,66-72 eviden-
compostas de unidades literárias menores, que já existiam na tradição cia que «OS primeiros cristãos não disfarçaram nem desculparam a ati-
oral e/ou escrita antes de serem assumidas no conjunto do evangelho. tude vergonhosa do chefe dos apóstolos. jesus sofre sozinho e total-
Os motivos que deram origem a estas unidades menores nem· sempre mente incompreendido. No Getsêmani, durante a hora mai.s escura da
foram os mesmos. No caso da Narração da última Ceia "certamente têm paixão, os discípulos dormem» (Grossouw, p. 91).
sido litúrgicos. No caso da Narrarão do Processo diante de Pilatos, o Todos eles ficam desorientadOSj todos não somente perdem a co-
gov~rnador r_o~ano, pode !er sido apologético (jesus era inocente, corno ragem, mas também a fé. É este o sentido bíblico de «escandalizar-se».
o sao os cnstaos persegmdos; nem Ele, nem estes representam perigo Tropeçaram a fé, a esperança e o amor por jesus. Ele é abandonado
para o Estado). Em o~tros casos-.forarn parenéticos, fazendo-se da paixão_ mesmo. Ao realçar este abandono não se procura focalizar o aspecto
de Jesus um exemplo para os CJistãos, especialmente para os mártires humano do comportamento dos discípulos ou do sofrimento do Senhor.
(p. ex., o perdão e a oração de, jesus em Lc 23,34.46 e de Estêvão em «Descobrem-se neste abandono incompreensivo - como na paixão toda
At 7,59:60). A demonstração de ._que na paixão de jesus se realizaram - um sentido e intuito divinos. Eles são encontrados na Escritura do
as Escrituras ora é de caráter dogmático, ora de natureza apologética. Antigo Testamento. O próprio jesus não disse: «0 Filho do homem
segue o caminho segundo dele está escrito. Isto acontece para que
Esta origem e inspiração diversificadas das perícopes menores não se cumptam as EscrituraS» (Me 14,21.49)? Também a sua solidão era
impedem que, ao serem inseridas em conjuntos literários maiores e, por predita. Ao saírem para o Monte das Oliveiras, o Senhor diz aos
último, nos evangelhos, tenham ·sido adaptadas ao novo contexto por Seus discípulos: «Todos vós vos escandalizareis, porque está escrito:
pequenas modificações, acréscimos e omissõesj todos veículos do inte- Ferirei o pastor e as ovelhas se dispersarão> (Me 14,27; e!. Zc 13,7)
resse e da teologia próprios do(s) autor(es) das composições maiores (ibid.). Nesta «noite _em que Ele foi entregue> todos se perdem: •o
e dos evangelhos. A comparação pormenorizada das pericopes e dos povo, os fariseus, os sumos sacerdotes, Judas, Pedro, os doze. É o
conjuntos fornece critérios para identificar estes interesses e teologias paradoxo por excelência: entregando e abandonando Jesus encontram-se
próprios. entregues ao abandono. É no âmago deste paradoxo que aparece aquele
2. A Narração da Paixão de Marcos é a mais antiga versão de que mister divino misterioso que repetidas vezes ressoa na Bíblia e acom-
dispomos e a base daquilo que encontramos nos outros evangelhos panha toda a paixão de Jesus. Deus permite que, nesta noite, todos
sillóticos. Apesar de que apresente os fatos em uma visão cristã - se enganem em Jesus, se escandalizem dele e se percam, para que - ao
pilra os judeus e romanos o sentido dos fatos era outro! - esta visão preço do sacriflcio de jesus - a reconquista da fé n'Ele, da esperan_ça
aparece mais na composição da narração e em um reCurso discreto ao e do amor, fosse uma verdadeira ressurreição desta perdição, ou seja,
Ailtigo Testamento do que em explícitos comentários cristãos sobrepostos uma salvação divina, puramente gratuita, manifestação e adesão aos
aos fatos. Podem-se destacar três linhas que perfilam o conjunto: o caminhos de Deus.
caráter paradoxal do sofrimento do Senhor, .o escândalo que provoca e «Sabemos hoje por que os discípulos se escandalizaram e fugiram.
os frutos que produz. Era, clizemos, porque a sorte de jesus não correspondia às expectativas
judaico-nacionalistas e terrestre-messiânicas por eles compartilhadas crim
· - Marcos não disfarça o terrível paradoxo do sofrimento do· Senhor. a grande massa do povo. Isto é verdade. Mesmo assim seria melhor
já em 1Cor 11,23 a noite da paixão chama-se •a noite em que foi dizermos: a fé deles naufragou, porque experimentaram na carne que
e~tregue». Toda a Narração da· Paixão de Marcos está sob o signo
os Ca1J1:inhos de Deus não são os nossos caminhos. Esta formulação
da traiçoeira entrega. Por judas é entregue ao Sinédrio (Me 14,10.11.18. é prefeiíve1J porque aplica-se também a nós; enquanto a outra, apesar
21.42.44); pelo Sinédrio é entregue a Pilatos (15,1.10); por Pilatos é de certa, historia eJ pois, neutraliza o motivo do escândalo e lhe tira
entregue aos soldados (15,15: dez vezes usa-se o verbo paradid{Jmai!). a atualidade para nós hoje. Porque nós não compartilhamos aquelas
Os soldados O entregam à morte (e!. 15 25) .• Por fim Deus mesmo O 'expectativas judaico-nacionalistas'. Certo 1 Mas compartilhamos com eles
entrega à sua p_rôpria sorte, morrendo 'com um grÍto de abandono desejos, angústias, pensamentos e ideais por demais humanos. Sofremos,
nos lábios (15,34). Em" 14,41 o evangelista resmne todas estas afirma- pois, o mesmo mal> (ld., p. 92).
ções na frase: Ele é «entregue em mãos dos pecadores> (14,41). Deus quis salvar-nos deste mal por uma vítima do mesmo, pafa
Jesus padeceu sozinho. Não foi compreendido por ninguém e aban- que o reconhecêssemos e dele ressuscitássemos por uma metanóia que
donado por todos, inclusive pelos Seus discípulos. São justamente estes atinge de tal maneira o homem e a humanidade que encerre o começo

122 123

• •
de uma nova era: aquela da decisiva e definitiva vinda do Reino de Sugestões para a Homilia
Deus aos homens e à humanidade. Pontos altos da Narração da Paixão
de Marcos são as perguntas do sumo sacerdote, chefe do Sinédrio: O sentido profundo da Semana Santa •
«l'ls o Messias, o Filho de Deus bendito?> (14,61) e de Pilatos: «TU
és o rei dos judeus?» (15,2.9.12; cf. 18.26.32). Nos dois casos jesus
responde afirmativamente a estas perguntas. Mas estas respostas, _em vez Com o domingo de ramos se inicia a Semana Santa, cha-
de levarem a reconhecimento e respeito, provocam a mais vil gozação mada pela Igreja de a Grande Semana. Nela comemoramos os
(14,65; 15,16-20). Da parte dos romanos jesus é preterido em favor de principais mistérios do Cristianismo. Aos nossos olhos, são apre-
um assassino e tratado como e executado com «delinqüentes comunS>. sentados também os mistérios mais profundos de nossa condição
Da parte dos judeus repetem-se em forma de escárnios as falsas acusa- humana. Três considerações centralizam nossas atenções nestes
ções alegadas no processo diante do Sinédrio: a destruição e reconstru-
ção do templo (14,58 e 15,29-30) e a dignidade messiânica (14,61-62 dias: Quem é Deus e o que pode Deus? Que é o homem e
e. 15,31-32). Duas vezes jesus é desafiado para mostrar a veracidade o que pode o homem? Qual é o comportamento de Deus face ao
de Suas pretensões, descendo da Cruz (15,30.32). Toda a maldade comportamento do homem? Se prestarmos atenção, veremos que
humana dos acontecimentos transparece no escárnio: <Salvou outros, a Semana Santa nos representa, em forma de drama, a resposta
a. si mesmo não pode salvar». O verdadeiro motivo de sua eliminação
está ai: não conseguiram conviver com um homem que veio libertar e a estas três grandes questões.
salvar para va1er. Tais libertadores e salvadores de verdade, os homens,
a sociedade, a humanidade difici1mente suportam. Tratando jesus da
maneira como o fizeram, o homem e a humanidade mostram o seu lado 1. Quem é Deus e o que pode Deus?
sinistro. Simbolicamente esta escuridão envolve os eventos que - pa-
radoxalmente - não são os derradeiros da existência de jesus. O A fé cristã testemunha resolutamente: Deus é um ser cujo
seu último grito: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» rosto está voltado sempre para o homem. É um ser que nos
faz rasgar o véu do templo que não mais abrigará a presença de ama e nos acompanha e é cioso de nosso amor. Ele nos ama
Deus, e abre os olhos e os lábios do primeiro homem que, no Evan- tanto que se id~ntificou com nossa própri.a realidade e se fez
gelho de Marcos, profere a confissão cristã da fé: «Na verdade este
homem era o filho de Deus;;.. Por sinal, este homem é um pagão e homem. Quis compartilhar de tal forma de nossa situação que
de alguma maneira cúmplice da execução de Jesus. Nestes dois eventos ninguém pudessê levantar alguma queixa contra Ele, por não
retomam-se de novo os dois componentes das acusações e dos escárnios: saber o que significa sofrer e se desesperar na vida. Tudo isto
acusações escárnios eventos fez parte de sua realidade, como o meditaremos nesta Semana
na morte Santa.
de jesus O que pode· Deus? Deus pode abaixar-se tanto a ponto de
destruição do templo 14,58 15,29-30 15,38 se tornar escravo e o último dos homens. Mais; ele pode chegar
e'i sua reconstrução a morrer e a morrer de uma forma ignominiosa como um mal-
Messias Filho de Deus 14,61-62 15,31-32 15,39 feitor e bandido. Nós cristãos estamos de tal maneira habituados
Em 14,62 jesus pretendia ser o Messias das profecias dos profetas a estas verdades que já perdemos o sentjdo de escândalo que
e ao mesmo tempo o Filho do homem das visões dos apocallpticos. elas significam. O que aqui se afirma é algo de inaudito. Se
Em 14,58 atribui-se-Lhe a pretensão de destruir o templo feito por a Escritura sagrada não no-lo dissesse e não o testemunhasse
mãos de homens e de edificar em três dias outro não feito .por . mãos de
homens. Em .uma seqüência desconcertante de fatos e tratos estas «pre- como fato hislóri.co, seria considerado blasfêmia e nós as pes-
tensões;;. são descartadas uma por uma, esvaziando-se no último grito soas mais ímpias que surgiram na história. E contudo trata-se
de abandono: «Meu Deus .. ., por que ..• ?» de uma verdade' histórica: Deus, realmente, se fez o último dos
~ Quando Marcos escreveu a sua Narração da Paixão e o seu Evan- homens. Em jesus se manifestou um Deus sofredor e sedento,
gelho, ele e a comunidade cristã jã sabiam a resposta. Não somente a que corre atrás da ovelha perdida, que fica a esperar pelo filho
sabiam, mas eram, pela graça de Deus e a fé em jesus ressuscitado,
a, resposta viva a esta pergunta derradeira. pródigo e que S@ alegra mais com um pecador que se converte
Bibliografia: Além de vários comentários, especialmente: W. K. O r osso u w.
do que com 99 justos que já estão salvos.
De Lljdensverhalen, em: ld., Een Overlevende uit de Voortljd, Roermond 1967,
p. 83-120; A. Van b o y e, Les réclts de ta Passion dans tes évangltes synoptJques,
Que um Deits se faça homem, já o especularam e afirmaram
em: AdS 11/19 (1971)! JS.67; P. B e n o f t, Paixão e Ressurreição de Nosso Senhor também os antigos egípcios e gregos. Porém que um Deus, ao
Jesus Cristo. Petrópo is 1971; L. B o·f f, Paixão de Cristo, Paixão do Mundo,
P:trópolls 1977. fazer-se homem_,· participe de nossa condição fraca a ponto dl!
Raul Ruijs, O.F.M. morrer como um malfeitor, de nos amar até o fim, mesmo sendo
Petrópolis, RJ
124 125

• •
seus 1mm1gos, isso tudo é um escândalo para o bom-senso que para isso. Mas não o fez. O amor triunfa sobre a justiça, a
quer conservar-se razoável. Bem dizia Paulo: Deus transformou compa1xao sobre o juízo frio. Ele deu um sentido redentor à
em loucura a sabedoria deste mundo, quer dizer: aquilo que nos sua condenação e um significado de reconciliação à sua morte
parece de todo impossível, se tornou, em Jesus Cristo crucificado, violenta na cruz. Aquilo que fora expressão da rejeição humana
realidade histórica. - a cruz - transformou-a em símbolo da misericórdia, da
comunhão libertadora de Deus para com os pecadores. Deus
assim nos conquistou com a superabundância e a surpresa de
2. Quem é o homem e o que pode o homem?
seu inaudito amor, na forma do perdão e da misericórdia. Desta
Que é o homem para que Deus o ame desta forma? E maneira Deus se manifestou ainda maior e mais impossível para
a questão que está latente em todos os textos que iremos me- a compreensão humana. Onde lhe demos a morte, Ele nos mostrou
ditar na Semana Santa. Devemos reconhecer que esta pergun- a vida. Ressuscitou para que nós também pudéssemos ressuscitar
ta é para nós mesmos um mistério, pois não temos razões sufi- e estar sempre com Ele.
cientes para respondê-la. E uma surpresa para nós mesmos· o Todos estes mistérios nos são oferecidos à contemplação
fato de sermos tão importantes para Deus, a ponto de o Filho nesta Semana das semanas. Tomemo-nos tempo para rezar e
de Deus fazer-se homem como nós. Por isso, somente a partir meditar. Basta olharmos para a cruz e aí temos tudo presente:
de Deus compreendemos, de fato, quem somos. Sem a encarna- quem é Deus e o que Ele pode: fazer-se homem e morrer sacri-
ção do Filho eterno, jamais saberíamos de nossa inestimável ficado por amor; que é o homem e o que ele pode: um deus
dignidade e da riqueza que carregamos em vasos de barro. em minúsculo no mundo e, ao mesmo tempo, o matador de
A Escritura responde da seguinte forma à pergunta - que. é o Deus; qual o comportamento de Deus ante o comportamento do
homem? - : Ele é a imagem e semelhança de Deus, filho de homem: misericórdia, compaixão, perdão e vida nova e ressusci-
Deus, templo do Espírito Santo e lugar de encontro do próprio tada. O Domingo de Ramos inicia este drama que culminará,
Deus Trino. Numa linguagem mais nossa significa: o homem feliz, no outro Domingo da Ressurreição. Convida-nos a acom-
é um deus em miniatura, um deus por graça. Ele representa panhar estas cenas todas e termos os mesmos sentimentos que
Deus dentro do mundo e mostra, em si mesmo, o rosto indes- Jesus teve. Incita-nos ao seguimento do Senhor.
critível do Deus Trino. Na criação deve continuar a obra cria-
dora de Deus, na medida em que transforma a terra em paisa- Leonardo Boff, O.F.M.
gem humana e fraterna. Petrópolis, RJ
E o que pode o homem? Pode muito e o mostrou na his-
tória; pode, realmente, ser o colaborador de Deus, levando a
criação de perfeição em perfeição. Mas também pôde transformar-
se na caricatura de Deus. Esbanjou o seu reino e tornou-se lobo
para o outro irmão. Quando Deus mes!Jlo resolveu fazer-se com-
panheiro humano, não foi reconhecido e foi morto como um
agressor da ordem deste mundo. Isso pode também o homem.
A Semana Santa significa outrossim juízo de Deus sobre o
homem e suas práticas.

3. Como reagiu Deus face à ação do homem?

A Semana Santa narra, em seu núcleo essencial, a mise-


ricórdia incomensurável de Deus. Deus poderia reivindicar seus
direitos divinos e humanos. Poderia fazer justiça e liquidar-nos
a todos como filhos rebeldes e maus. Teria todas as razões

126 127


clama a morte de Cristo e atualiza a força salvífica desta morte «até
Quinta-Feira Santa ·· que Ele venha» (!Cor 11,26). Com esta afirmação, Paulo relembra
que aquele que sempre de novo se entrega no pão e no vinho é o
Pistas Exegéticas Vivo, o Exaltado, o Ressuscitado, que um dia se manifestará em poder
e glória. Este fato é recordado na Anâmnesis da Missa:· «Anunciamos,
Primeira Leitura: Ex 12,1-8.11-14: Senhor', a tua morte; proclamamos a tua ressurreição e esperamos a
tua vinda gloriosa». A eucaristia está incrustada entre dois pólos, a
Comentário na Mesa ela Palavra, Ano A, p. 164.. 165. morte e ressurreição de Cristo e sua futura manifestação.
Nestes versículos, tão plenos de significado, Paulo ensina que a
existência de divisões e discriminações é um contratestemunho à cele-
Segunda Leitura: teor 11,23-26 bração eucarística, sacramento do amor de Deus e da unidade dos
f L
fiéis. A fração· do pão vai de par com a comunhão fraterna (At 2,42).
«Com efeito, eu .me,smo recebi do Senhor o quer vos transmiti» E mesmo mais, esta é condição daquela. Para que uma comunidade possa
celebrar dignamente o mistério eucarístico é necessário que ela se esforce
Estes versículos, que se inserem no contexto mais amplo de l Cor para formar uma verdadeira familia cujos membros 'se considerem real...
11,17-34, constituem provavelmente a mais antiga fixação escrita das mente como irmãos. Assim como o batismo pressupõe a fé, da qual ê
palavras da instituição da eucaristia. Trata-se, como Paulo o afirma, sinal, assim também a eucaristia pressupõe a caridade, da qual é a
de uma tradição recebida e transmitida. As palavras, fundamento de expressão. Já o afirmava Santo Tomás de Aquino: <Como o batismo
toda a argumentação paulina contxa os desvios qi.te surgiram, soam é chamado sacramento da fé, assim a eucaristia é chamada sacramento
como que rituais, estereotipadas, feitas à base de repetição e para a da caridade, que é o vínculo da perfeição» (Summa Theologica, 111,
repetição cúltica da ceia. q. 73, a. 3).
Em lCor 11,17-34, 'Paulo visa fundamentar a verdadeira forma da
celebração eucarística, ameaçada por divisões e disctiminaçõe: que apa- Bibliografia: Os comentários de J. 11 u b 'Y. E. W a 1 ter, J. H e r 1 n g, M.
E. T h r a J I. S. L y o n n e t, A trindade, plertitude da lei, Ed. Loyola 1978; J.
receram na comunidade de Corinto. Com efeito, Paulo diz: «JUÇO dizer J e r e m 1a s, Isto é o meu t:01]JO, Ed Paullnas 1978; R. J oh a n n y, A eucaristia,
que, quando vos reunis em assembléia, há entre vós divisões~ (11,18). caminho de ressurrei~ão, E.d. Paullnas 1977.
A eucaristia, sacramento da unidade, tornara-se ocasião de discórdias. Pe. Ga)uiel Selong, S.V.D.
E mais, Paulo afirma: «enquanto um passa fome, o~ outxo fica embria... ·Rio de Janeiro, RJ
gado» (11,21). O partir do pão não levava ao repartir do pão. A
celebração se constituía' em afronta aos pobres que nada traziam por Terceira Leitura: Jo 13,1·15
nada possuírem. Para eliminar tais abusos, Paulo ap.resenta as palavras
textuais, pré-paulinas, da instuição da eucaristia. «Dei-vos um exemplo para que, como eu vos fizJ também vós o façais»
De início, o Apóstolo indica as circunstâncias precisas do aconteci-
mento: «Na noite em que foi entregue» (11,23). Ele se refere não à A estrutura geral do quarto evangelho é comumente apresentada
última ceia, mas à noite em que o ·Cristo foi entregue, noite que pôs da seguinte forma: prólogo (1,1-1~), livro dos sinais (1,19-12,50), livro
à mostra toda a maldade humana, a traição de Judas, a deserção dos da exaltação (13,1-20,29), epilogo (20,31J..31). Por conseguinte, com o
discípulos, a negação de Pedro, mas, ao mesmo tempo, deu origem ao capítulo 13 João inicia a segunda parte de sua obra, designada como
supremo gesto de amor de Cristo, a eucaristia, que sintetiza todo o o livro da exaltação ou glorificação, pois assim iintitula o autor a
sentido de sua vida e de sua morte. morte de Cristo.
Nesta ocasião, «o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar Nos sinóticos a glória de Cristo, isto é, a manifestação da pre-
graças, partiu e. disse: Isto é o meu corpo por vós» (ll,23-24), expres- sença, esplendor, poder, magnificência de Deus nele, se revelam na cena
são mais tarde explicitada por Lucas: «dado por vós> (22,19). O da transfiguração (Lc 9,28-36, especialmente o v. 32: <Ao despertarem
Apóstolo se refere ao corpo de Cristo entregue à morte na cruz, pre- viram a sua glória»). O quarto evangeJista omite tal cena, pois para
sente aqui sob o véu e sim bolo do pão partido na ceia. O pão partido ele a glória de Deus se manifesta na pessoa do Cristo (Jo 1,14: •E
e o vinho derramado tornam presente o ato sacrifical e expiatório da o Verbo se fez carne e tomou sua tenda entre nós e nós vimos a sua
morte de Ctisto e comunicam o seu fruto aos que executam a ordem glória ... -.), em todo o seu ministério público (Jo. 2,11: «Este inicio
dada por Cristo: <Fazei isto em memória de mim> (11,24-25). Paulo dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória
repete a ordem duas vezes, após as palavras sobre o pão e após as e os seus discfpulos creram nele») e o que é mais surpreendente,
palavras sobre o vinho. Isto porque, ao que parece, as duas partes esta glória se manifesta na cruz (Jo 17,1: <Pai, chegou a hora, glo-
da celebração eucarística estavam encaixadas entre o começo e o fim rifica o teu Filho para que o teu Filho glorifique a· ti>).
da reunião e refeição comunitárias. Mateus e Marcos eliminam a ordem A esta glorificação mediante a morte, o çvangelista se refere logo
inteiramente: A própria celebração atestava a realização da injunção. de inicio em 13,1 (<Antes da festa da Páscoa, sabendo jesus que che-
A expressão «em memória de mi111> não significa uma simples gara a sua hora de ascender deste mundo ao Pai, tendo amado os
recordação ou lembrança. Ê uma celebração que realiza o que recorda, seus que estavam no mundo, amou...os até o fim»). Neste versículo,
torna presente a obra salvífica do Cristo. A eucaristia anuncia e pro- aparecem três alusões à morte de jesus, isto é, nos termos «hora~,

128 129

• . i. . ~-
r--- ---
11: «ascender» e «até o fim». Com efeito, o termo «hora» no quarto evãn- as expressões «tomou os pães>, crendendo graças>, «deu-lhes>, «do mes-
gelho não designa' um 1momento determinado do dia (como nos sinó- mo modo», «recolhei» e «fragmentos» (termos estes que no livro da
11, ticos), mas possui uma significação simbóJica e teológica e engloba a Didaqué 9,4 designam respectivamente a primeira parle da celebração
~! morte e glorificação do Cristo (7,30; 8,20; 17,1). Identicamente, o verbo eucarlstica e o pão nela empregado). A observação feita pelo Cristo <a
I! «ascender» (levantar, e1evar) já ocorre em 3,14 como designação da fim de que nada pereça» é um eco do respeito da comunidade pri-
cruz e exaltação («Como Moisés elevou a serpente no deserto, assim mitiva pela eucaristia (!Cor 11,17-34).
é necessário que _o Filho do Hon1em seja elevado»). Finalmente, a No capítulo 13, o evangelista pressupõe o relato da instituição da
expressão «até o fim» encontra um eco nas palavras derradeiras do eucaristia e concentra toda a sua atenção no sentido profundo da
Cristo na cruz: «Está findo> (19,30). mesma, isto é, o imenso amor de Deus para con~sco. Como um ver-
Esta visão do evangelista que concebe a paixão e morte do Cristo dadeiro artista, ele revela este amor num gesto simples e ao mesmo
como a sua glorificação é ·paradoxa]. Para ele, a humilhação suprema tempo comovente, o lava-pés: O Cristo se levanta da mesa, depõe. o
do Cristo é a sua exaltação, a crucifixão considerada uma ignomínia manto, toma uma toalha, cinge-se com ela, coloca água numa .bacia,
(Dt 21,23; Gl 3,13) ·é a sua gJorificação. Deus mostra o seu fulgor insus- lava os pés dos discípulos e os enxuga com a toalha com a qual estava
tentável naquele que se tornou o servo ·de todos., Aquele que morreu cingido. Na conclusão, vem a pergunta e a advertência de Cristo: <Com-
no patíbulo de malfeitor, tornou-se o que de mais elevado existe. Em preendeis o que vos· fiz? Vós me chamais de Mestre e de Senhor e
outras palavras, temos aqui uma interpretação de glória ·radicalmente dizeis bem, pois eu ·o sou. Se, portanto, eu o Mestre e o Senhor vos
diversa da glória ~humana. Enquanto que os grandes senhores deste lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros> (13,12-14).
mundo se cercam do brilho da riqueza ou da honra do poder, Deus Através deste gesto, o Cristo não apenas se tornou o servo de
revela o seu esple:ridor na baixeza total e na entrega absoluta da cruz. todos mas também o modelo pelo qual devemos pautar a nossa vida.
Tal apresentação .conduz necessariamente a uma inversão de valores E1e tiiostrou como devemos realizar em nossa vida o seu seguimento,
na vida cristã. colocando-nos ao serviço dos outros. O cristão, como diz Paulo, é o
O capitulo 13 do quarto evangelho é composto de três cenas: o servo dos outros (OI 5,13). A exemplo do Cristo, este amor sincero
lava-pés (13,1-17),' o anúncio da traição de Judas (13,18-30) e a pro- pelo próximo deve ser levado até às últimas conseqüências, caté o fim>
clamação do novo, mandamento (13,30-38). Seguindo o seu gênio peda- (Jo 13,1), isto é, se necessário, até à morte.
gógico e dramático, joão contrasta e acentua o serviço e doação do
Cristo pelos seus ·(13,1-17) e o amor que deve ser a norma e o cri- Bibllograjia: Os comentãrlos de R. E. B r o w n, R. S ç h n a e ·k e n b u r g,
H van den Bussc·he, J. N. San ders, R. H. Llgbtf_oot. J. Konings,
tério da vida cristã (13,31-38), intercalando entre as duas partes uma Eiicontro com o quarto evangelho, Ed. V.:02es 1975; P. d e 1 a C a 11 e, A teologia
cena de sombras e trevas, a traição de judas (13,18-30, particularmen- do quarto evangelho Ed. PauJinas 1978; C. H. D o d d, A lnterprela;ão do quarto
evangelhíl, Ed. PaulÍnas 1978.
te o v. 30: «Tomando então o pedaço de pão, judas saiu imediata-
mente. Era noite»). Entre duas cenas de luz, está incrustada uma cena Pe. Gabriel Selong, S.V.D.
da «noite», termo que no quarto evangelho é empi:egado para designar Rio de Janeiro, RJ
o reino da maldade, da mentira, do ódio (jo 11,10) e aqui indica a
traição por um dos Doze. ·.
Assim o lava-pés introduz, antecipa e prefigura a crucifixão. Ambas Tema Prlnclpal
as cenas se assemelham, pois ambas são atos de hu_mildade e de serviço,
ambas procedem do amor de Cristo pelos seus. Ei mais, a purificação ACEITAR UM CRISTO FRACO E VULNERAVEL
dos pés dos discípulos representa a sua purificação ·pelo sangue de
,.
Cristo. Através do lava-pés, os apóstolos se tornam participantes _da
obra salvífica do Cristo: «Se eu não te lavar, não terás parte comigo» , Sugestões para a Homilia
( 13,8), participação esta que se realiza em primeiro lugar pelo batismo
a que alude 13,10: «Quem se· banhou não tem necessidade de se lavar, Introdução
porque está inteiramente puro». Com efeito,. através do batismo, como
diz Paulo, o cristãó é «sepultado com o Cristo na morte para que, como Pensando em jesus, O vemos muitas vezes · com traços bem
o Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim divinos. Não falamos tanto do homem de Nazaré e sim do Filho
também nós vivamos vida nova» (Rm 6,4).
Paiúo (!Cor H,23-26) e os sinóticos (MI 26,26-29; Me 14,22-25 de Deus Pai. E ·mesmo falando do homem jesus, não raras
e Lc 22,14-20) nos trazem o relato da última ceia que Jesus realizou -!
vezes aparece no 1fundo algo de sua divindade. Dizemos que
com os seus discíj)ulos, à véspera da morte. Nesta ocasião, jesus re-
' jesus é homem e; no entanto, O vemos mais como Deus. ~
sumiu o sentido de sua vida e de sua morte nos. sinais do pão e do claro que não podemos negar estes aspectos, mas, na nossa lei-
vinho. O pão partido tornou-se o seu próprio corpo entregue à morte
pelos seus. O vinho tornou-se o seu sangue derramado para estabelecer tura dos evangelhos, nos colocam às vezes diante de sérias
uma nova aliança ·entre Deus e a humanidade. dificuldades.
Em jo 6,11-13, isto é, no contexto da multipJicação dos pães, o Temos medo, parece, de ver o lado humano de jesus, medo
evangelista alude às palavras da instituição da eucaristia. Ali aparecem de aceitar a divindade em aparência humana. Pensamos às vezes
130 131
que considerar Jesus como homem, como um de nós, é falta de tanto não há outra coisa que mostra Cristo tanto do que seus
respeito para com sua dignidade de Filho do Pai. fracassos no mundo, os fracassos dos homens, o fato de eles
Será que o Verbo não pode mais tornar-se homem? Será serem marginalizados, injustiçados e perseguidos. Jesus justamen-
que a divindade ou a glória de Deus deve aparecer em sinais te identificou-se com isso.
extraordinários, em pessoas e acontecimentos incompreensíveis? É isto que Ele quis mostrar num gesto simbólico, tornando-
se um escravo que lavou os pés dos apóstolos.
Corpo É esta também a tarefa dos cristãos, atendendo ao apelo de
Jesus: «Dei-lhes o exemplo para que, como eu fiz, também vocês
1. Problema de Pedro? problema nosso o façam».
Este modo de pensar a respeito de Jesus de certa forma Na Eucaristia realizamos, ou pelo menos deveríamos reali-
desfigura sua pessoa. Mas este já é um problema antigo. O zar, a mesma coisa. O pão e o vinho que Jesus tomou e deu
evangelho de hoje mostra-nos isto de um modo muito claro. aos seus amigos é o mesmo gesto de assumir a tarefa de 'ser
Jesus se apresenta aqui de uma maneira bem humana. Não é para os outros'. «Este é meu corpo, entregue por vocês; este é
ninguém poderoso ou forte e s"m pequeno, escravo que lava meu sangue derramado por vocês. Aqui estou eu para vocês.
os pés dos outros, alguém que serve e se . curva diante dos Fiz-me pequeno em suas mãos».
outros: «É isto que eu quero fazer para vocês, é isto que eu E aqui também Jesus nos convida e nos adverte: «Façam
quero ser: totalmente insignificante». isto em minha memória». Cristo está aqui, antes de tudo, na
Importante é que Ele faz isto justamente «sabendo que doação ao outro, Só isto é verdadeira comunhão.
chegara a sua hora». O fracasso total de sua missão está bem
c~aro diante de seus olhos. E Jesus não quer salvar as aparên-
cias. Assume o fracasso, não em fatalismo, porque não tem outro Conclusão
jeito. Assume de uma maneira muito especial sua condição
humana. Nós cristãos que temos tanta dificuldade com um Cristo
Pode ser que esta idéia nos choque. Pode ser que tenha- tão humano e tão fraco, sentimos por isso também tanto pro-
mos dificuldade de acostumar-nos com ela. O evangelho nos blema em celebrar realmente Eucaristia, realizar comunhão entre
mostra que também Pedro não se sentia bem, com isso. «Não nós. Estamos por demais presos às nossas idéias de um Cristo
pode, o senhor lavar meus pés». glorioso e de uni «Ião sublime sacramento»,
A resposta de Jesus é bem clara: «Se você não aceitar isto Devemos nós fazer também o nosso :Êxodo, sair da situação
se preferir um Cristo glorioso em vez de um com rosto humano' bem conhecida, embora não sem problemas, sair do nosso Egito
suado, insignificante, um .Cristo fraco e vulnerável então não hâ e enfrentar o deserto para chegar à Terra· Prometida da ver-
jeito para você; não terá comunhão comigo, de f~rma alguma». dadeira comunhãq, da verdadeira Eucaristia.
E isto é demais para Pedro. Logo reage: «Então, Senhor, ·
Geraldo van Buul, O.F.M.
ace to a sua insignificância». Infelizmente parece mais uma rea- Santos Dumont, MO
ção de impulso pois pouco mais tarde ele mostra que ainda tem
bastante dificuldade com este Jesus fraco e humano. Quer impe-
dir a sua prisão e em seguida diz que nem O conhece.
_ Custa para aceitar um Cristo que parece tão pouco Messias,
tao pouco Deus. Só palavras aqui não bastam.

2. Comunhão com Cristo e com os irmãos no lava-pés e na eucaristia

Com esta desumanização de Jesus corremos também o risco


de desumanizar a vida cristã e portanto a salvação. O cristia-
nismo poderia tornar-se assim algo de fora do mundo. Entre-
132 133

sagem do Servo. Em última análise o profeta) retomou nesta passa-


Sexta-Feira Santa gem um tema que em suas grandes linhas é clássico na Bíblia: Deus
revela a Sua grandeza libertando da humilhação pequenos e humildes,
e esta salvação não conhece fronteiras. -
Pistas Exegéticas Inevitavelmente surge a questão que o funcionário de Candace já
dirigia ao diácono~ Filipe: oetA respeito de quem· o profeta falou isso?
Primeira Leitura: Is 52,13-53,12' Dele mesmo ou de, outro?» (At 8,34). A resposta não é fácil.
Não se impõe identificar o Servo simplesm·ente com um determi..
<0 Senhor descarregou sobre ele as falias de todos nos» nado indivíduo ou grupo que existiria na realidade histórica passada
ou contemporânea ç:>u mesmo futura e que reuniria em si todos aqueles
O quarto cauto do <Servo de. Deus Sofredor» faz do profeta Isaías traços que se encontram nos quatro cânticos do Servo. Melhor seria
um evangelista antes da hora, como dizia São Jerônimo. s~por. que o A. tenha idealizado um indivíduo. ou;,grupo que conhecia ·da
· O canto começa (52,13-15) e termina (53,llb-12) com um oráculo história. Em outras palavras, o Servo de Deus Sofredor não há de
de Deus. A parte central é uma descrição do sofrimento do servo e ser identificado simplesmente com aJguma figura histórica mas incor-
revfJa o motivo do mesmo. O oráculo inicial é um resumo muito breve pora ideais e concepções religiosos que podem ter se ;ealizado · em
da sorte paradoxal do Servo. Ele terá êxito e será exaltado (v. 13); vários indivíduos ou grupos históricos. Nesta hipótese o Servo funciona
até os homens mais " famosos do mundo assumirão uma atitude de como tipo, uma espécie de símbolo, que pode ter tido uma origem
espanto e respeito diante dele (v. 15), porque a exaltação segue-se a concret'! na história passada ou contemporânea, Il}as que a transcende e
uma profunda humilhação e a sofrimentos indizíveis: (v. 14). se reahza sempre .de novo, quando um individuo ou grupo incorpora
O e. 53 inicia-se com uma dupla pergunta retórica. Nela acentua-se .estes mesmos ideais e concepções. Este indivíduo ou grupo torna-se,
a ten.são provocada pela sorte paradoxal do Servo, evocada pelo oráculo no caso, Servo de ]avé.
anterior em que se afirma que Deus mesmo- o salvará da desgraça. O título não é, pois, reservado a este ou aquele indivíduo ou
Somente o poder de Deus serâ capaz de fazer do sofredor desfigurado grupo determinado. ·E os cristãos não forçaram O texto quando. o apli-
um sinal para as nações (cf. 52,10; 49,6). caram a Jesus, qu_e por seu sofrimento expiatório e sua ressurreição
Pelo recurso literário da pergunta retórica, dirigida ao ouvinte ou .se tornou o Servo de Deus Sofredor por excelêl}cia, luz para judeus e
leitor deste texto, este mesmo é obrigado a desempenhar um papel pagãos. Através dé sofrimento pelos outros che'gar à glória de Deus
ativo no drama que se desenvolve diante de seus olhos. Somente pela e dar-lhes testemUnho desta glória é o cerne. de ser-servo-de-Deus
sua fé será capaz de entender a ação sa1vífica de Deus, reservada ao {53,10.11). O que .o profeta viu como ideal, se 'tornou realidade histó-
iuturo. No decorrer do teXto ele é envolvido de uma maneira ainda rica em jesus. O ser-servo-de-Deus à maneira que o profeta idealizou
mais radical, porque predomina a primeira pessoa·f do plural (cf. vv. e jesus realizou foi divinamente autenticado pela ressurreição. Onde
1.2-3.4-5.6), que o inclui nas considerações acerca do Servo. . se encontrar. um sérvo de Deus, ele glorificará 'à Deus por seu sofri-
Em vv. 2-3 descreve-se a vida sofrida do S~rvo, que não tem mento em favor de outros e será glorificado por Deus. E vice-versa.
nenhuma atração. Pelo contrário! Tudo nele é miséria e sofrimento. Porque, aquilo que~ era para o ·profeta pré-visãÓ em relação a Jesus,
1
Isto faz dele um marginal da sociedade, a qual o evita e o olha como é para nós, cristãos, reprodução por meio de uma participação na
alguém atingido por uma praga divina. sorte de jesus. Este princípio foi formulado explicitamente por Paulo:
Os vv. 4-6. contêm, por isso, uma surpresa embaraçosa: aquele de «Agora eu me alegro pelo que tenho sofrido :Ptir vocês. Porque, por
quem nós nos .desviamos por medo de sermos atingidos pela mesma meio dos meus sofrimentos físicos, eu ajudo a completar o que ainda
~ praga divina - é isto o sentido da expressão hebràica «cobrir o rosto falta aos sofrimentós de Cristo, a favor da Igreja, o Seu corpo» (Cl
diante dele» - foi de fato ferido pela mão de Deus por causa dos 1,24). Por isso, Paulo não hesitou em aplicar à sua própria vocação
1 pecados nossos: «0 Senhor ·descarregou sobre ele as faltas de todos e missão as profecias do Servo de Deus Sofredor (cf. At 13,47; OI
l,15s; etc.). E há i:.indícios de que esta aplicação é extensiva a todos

l
nós» (v. 6b). Sem o percebermos, aplicamos ao caso dele a convicção
de que doença e desgraça sejam castigos merecidos de erros pessoais. os cristãos. "
Bibliografia: Atem ide comentãrios: \V. Q ui n t e n s, · em Oetuigenls 13 ( 1968-
tramas tão preconceituosos e hipócritas como os amigos de Jó ! Por 1969), 116-121; R. C., 1 AI. Ruijs, De Slrukluur van de Brief aan de Romeinen,
isso ace.ntua-se nos vv: 7-9 a inocência do Servo (v. 9), que assume Nijmegem 1964. Outr::is Pistas Exegéticas sobre o texto na ~lesa da Palavra, Ano A
(L. Garmus) e Ano B, .p. 172-173 (R. Ruijs).
seu sofrimento sem queixumes (v. 7). Esse sofrimento não é mais, nestes
versículos, conseqüência de doença, mas de mau trato e perseguição ' Raul Ruijs, O.F.M.
que o levam à morte: <Ele foi morto pelos pecados do povo> (v. Sb). Petrópolis, RJ
Apesar da impressão de que tudo tivesse acabado com esta morte
infame, surge a hora da glorificação. Todo mundo será testemunha da Segunda Leitura: Hb 4,14·16; 5,7-9
grandeza de Deus, quando Ele mudar a sorte do Servo. o:Todo mundo~
encerra todos -aqueles que em vv. 1-6 são indicados com a primeira
pessoa do plural. Provavelmente deve-se pensar em primeiro lugar no Pistas Exegéticas. desta leitura na J\-Iesa da Palavra, Ano A, p. 173
povo de Jsrael a quem o profeta destinou a sua mensagem. Mas abran- -175 (R. Ruijs). Ct. A Mesa da Palavra, Ano B, p. 111, uma Pista E-
ge mais. Os reis e nações de 52,15 evocam o universalisfno da men~ xegética dedicada a Hb 5,7-9 de Pe. Carlos A. da Costa Silva, S.C.J.

134 135

1
A
Terceira Leitura: Jo 18,1-19,42
jesus reconhece o papel do Estado no mundo, nas J'Rlavras: «Não
jesus e Pilatos - A Igreja e o Estado terias poder algum sobre Mim, se de cima não te fora dado» (19,11).
Mas doravante o Estado somente poderá executar devidamente o seu
O autor do 49 Evangelho dá urna interpretação teológica dos even- papel, se reconhecer a presença do Rei e do Reino . no mundo. Este
tos narrados. Nesta visão teológica, as atitudes dos contemporâneos Rei e este Reino não são «deste mundo». Nem se afirmam no mundo
frente a jesus de Nazaré tornam-se tipos das atitudes humanas de com métodos mundanos de poder e de violência (18,36). A única pre-
todos os tempos frente à _revelação e encarnação de Deus em jesus tensão deste Rei e deste Reino é ser da verdade e testemunhar a
Cristo. Os judeus, especia1mente as cJasses dominantes reJigiosas, re- verdade (18,37).
presentam e.o mundo», isto é, aquela parte da humanidade que rejeita Para tentar escapar à tornada de posição clara e decidida em prol
jesus como o Cristo de Deus e que não é capaz de rever o seu sistema da verdade, por meio da pergunta evasiva «Que é a verdade?» (18,38),
re1igioso à luz de uma nova afirmação do Deus vivo e verdadeiro no PHatos de fato rejeita a verdade que se lhe apresenta em jesus, e
mundo. Sua reação será: matar este Deus, mesmo que seja ccomendó submete o poder po1ítico aos critérios «deste mundo». A escapatória
a Páscoa» (c!. 18,28). Os disc/pu/os representam os fiéis da Igreja de jurídica - a anistia por. ocasião da Páscoa (18,39s) - e o apelo falso
todos os tempos. aos sentimentos de compaixão - a flagelação (19,4-6) - não mais
Esta interpretação transparece na divisão e na estrutura do Evan- o podem ajudar. Rejeitando a verdade ou negociando-a, Pilatos entregou-
gelho. Pode-se dividir aquilo que precede 18,1-19,42, isto é, a Narração se ao mundo e está perdido.
da Paixão e Morte de jesus, em duas partes: cap. 2-12: «Jesus e o Os judeus, de sua parte, perdem o seu papel especifico no m~~do
mundo-:.; jesus revela-se ao mundo e ê rejeitado por ele; cap. 13-17: e identificam-se formalmente com «este mundo» e com o poder pohbco
«Jesus e os Seus»; jesus revela-se aos discípulos e a fé deles os trans- comprometido com este mundo, ao declararem: «Nosso único rei é o
forma na primeira geração dos fiéis. Imperador!» (19,15).
No processo contra Jesus, judeus e romanos, o mundo e o estado
Nos cap. 18-19 não há progresso nas atitudes do «mundo» nem compactuam na tentativa de eliminar deste mundo a Verdade (18,37},
nas dos «discípulos». Marcam-se as conseqüências exteriores das atitu-
des interiores, descritas nas partes precedentes. Através desta descrição o Reino (18,35), o Filho de Deus (19,7) e, em última análise, o Deus
já se conhecem os papéis que «O mundo», representado por Caifás vivo e verdadeiro.
e os judeus de um lado, e a «Igreja», representada pelos discípulos, jesus permanece fiel ao Seu testemunho até a morte. E Deus rnostra-
especialmente por judas, Pedro e o discípulo anônimo a quem jesus se fiel à sua testemunha, ressuscitando-O da morte.
amava, de outro lado, desempenharão a seguir. No caso de Caifás, A fé em jesus ressuscitado e a fidelidade até a morte dos fiéis àquela
por exemplo, repete-se o que já foi dito: «Caifás foi quem dera aos Verdade que jesus pregou, é a atual presença do Reino e da Verda~e
judeus o conselho: Convém que um só homem morra em lugar do no mundo. Mas também agora a Religião Oficial e o Estado estao
povo» (18,14 = 11,47-53). A traição de judas, a negação de Pedro expostos ao perigo de compactuarem com o mundo e de comprometerem
e a presença ao pé da cruz do discípulo anônimo são realizações con- seus papéis que, originalmente, lhes vêm de cima (cf. 19,11).
cretas de atitudes anotadas ou preditas anteriormente (para 18,2-3 cf.
13,2.21-23; para 18,15-18.25-27 cl. 13,38; para 19,25 cl. 13,23-25). Bibliografia: Além de comentãrlos, especialmente:. H. S ~ h 1 1 e r,. Jesus und
A novidade e originalidade de cap. 18-19 em comparação com as Pilatos nach d~m jobannesevangelium, em /d., Die Zeit der Ktrche,. Friburgo 1958.
p 56-74· /d Der Staat nach dem Neuen Testament, em: Jd., Besmnung auf das
partes anteriores do .49 Evangelho e também com as Narrações da Neue T~sta,Ü'ent, Friburgo 1964. p. 193-21 l ;_ J. B. ~\.e t z, Les Rapports entre
Paixão de Mt, Me e lc, consistem na apresentação e elaboração do I'Eglise et Je Monde à la lumiêré d'une TIJ.eologle. Pollh~ue, em: O. G a r r O n e,
processo de jesus perante Pilatos. Este processo abrange a maior parte e.o., La Théologil' du Renouveau, vol. li, i\'\ontreal-Pans 196», p. 33-47. Outro
comentário de j. K o n i n g s, na .Mesa da Palavra, Ano r'\, p. 175-179.
destes capítulos e vai de., 18,28 até 19,22. Deve-se interpretar esta origi-
nalidade na perspectiva de cap, 2-17. Poder-se-ia acrescentar às duas Raul Ruijs, O.F.M.
partes «Jesus e o Mundo» e «jesus e os SeuS» a parte «Jesus e o Petrópolis, RJ
Estado». De fato, também Pilatos não é uma figura meramente his-
tórica, mas desempenha um papel típico. Esta parte do Evangelho
poderia, por isso, ter o titulo: «Jesus e o César, ou «0 Reino de Deus Sugestões para a Homilia
e o Poder Político» ou ainda <a Igreja e o Estado». O evangelista de-
senvolve a relação «Jesus e Pilatos», situando jesus no meio entre
«O mundo» (representado pelos judeus, especialmente pelos sacerdotes) Introdução
e o estado (representado por Pilatos). Jesus obriga Pilatos a optar por
Ele e Seu Reino, que é o Reino de Deus, ou pelo mundo, pelo reino A Morte de Jesus é simultaneamente um aconteciment.o q~e
deste mundo, por César. Afirmando por três vezes .que jesus não tem lhe diz respeito como Pessoa e é solidário. ~e. t?da a h1stón.a
culpa (18,38; 19,4.6), e mesmo assim entregando-O ao mundo, isto é, humana. O seu anúncio solene é, hoje, o m1msteno de sua um-
às mãos dos judeus (19,16), Pilatos compromete o papel do Estado versalidade. Esta universalidade tem o seu momento sacramental
no mundo.
na Ceia, quando, firmando com os seus - com o homem -
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a Nova Aliança, Jesus os incorpora à sua Paixão assim como De um lado, ele· supre pela ausência dos .discípulos, de outro,
se incorporara à humanidade de quem eles eram uma pequena todo o conteúdo do processo é progressivamente fornecido por
porção e para a q1!al eles passam a ser, como igreja, o sinal seu testemunho. O primeiro resultado deste seu primado é a
da plena libertação, antes mesmo de serem ministros e apóstolos. dissolução da ação ante o sinédrio na sombra do poder romano.
Certamente, alegam-se razões, mas a razão verdadeira se omite.
Com o envio a Pilatos aqueles que eram até então juízes tornam-
Corpo se simples autores. A «exousia», isto é, o poder e a compe-
têQcia de julgar Jesus se aliena e desvela a sua nulidade. O
· 1. A iniciativa de jesus • sacerdócio e o 'I'emplo decltnam de sua mediação, declinam de
Todavia, a morte de Jesus não constitui um evento indi- sua verdade.
ferenciado. Ela tem a forma de um processo judicial ante duas
instâncias: a dos chefes oficiais e oficiosos do seu povo e a 4. O terceiro ato: Cabe a jesus realizar .,toda a justiça
do império. Esta esirutura formal é penetrada, porém, desde o
início por um princípio transformante, a iniciativa de Jesus, O processo perante Pilatos é rapidamente polarizado pela
explícita desde a Ceia, e que acaba por fazer. dela a face sim- questão que Importa: a questão sobre o Poder. Sem se subtrair
plesmente exterior do que acontece, uma exterioridade, é certo, a ela, resolve-a Jesus em seu fundamento: põe a questão sobre
pesadamente real. Da dialética entre o processo que instauram a Verdade. O representante de César, acastelado no ceticismo
o sinédrio e o pretório e a iniciativa de Jesus decorre todo o oficial, tenta esvaziar a ação: pode constituir um risco para o
significado da ação. que se desenvolve. império quem fala em nome da Verdade?· A pretensão real do
réu parece-lhe sem conteúdo; como Barrabás, pode ser ele indul-
tado, como um criminoso menor, flagelado e reduzido à sua
2. O primeiro ato: jesus, agente do que aconteceu ínfima identidade: Eis o homem! E impossível crucificar um
homem vazio de si mesmo, vazio até de toda a culpa: a irrisão
O primefro ato de toda a seqüência ocorre no Horto: Jesus
se consuma. Os seus acusadores procuram restituir-lhe a iden-
vai ao encontro da situação que lhe cabe assumir e sujeita-se
tidade dolosa: a sua pretensão de ser o filho de Deus. Teme-
à traição de Judas. Todos aqueles que sua palavra incomodara
roso, Pilatos invoca a sua competência para, ante o silêncio do
fazem-se presentes nas pessoas dos sumos sacerdotes e dos fa-
réu, verificar o exato teor da acusação. Trata-se, porém, de
riseus, representados por sua polícia, à qual associam também
uma competência alheia, vinda do alto. A abertura a esta trans-
uma coorte, primeira presença do poder romano na ação. Após
cendência desvela a condição de pecado do processo: Juiz e auto-
esboçar uma intempestiva reação, os discípulos se dispersam ou
res passam à condição de réus. Doravante, cabe a Jesus reali-
dissimulam. O vazio que então se forma torna manifesto o
zar toda a justiça. Sucessivamente, a fidelidade do primeiro é
quanto Jesus se assume como agente do que aconteceu: uma
posta em questão e a dos arautos do judaísmo oficial se dissol-
simples resposta sua, Eu sou, tem a força de uma teofania que
ve no reconhecimento do poder de César, seu ímico rei. Configura-
prostra e inibe seus agressores; Ele se entrega voluntariamente,
se um conflito de poderes, com o que se encontra uma causa
sem perder um só dos que lhe foram confiados.
para a condenação: Jesus pode ser entregue para ser crucificado.

3. O segundo alo: Jesus traça a sua história 5. O último ato: Esta morte é um triunfo
O segundo ato .da paixão é constituído pelo processo diante Segue-se a execução: a causa inscrita atesta o teor da
do Sinédrio, mais uma vez com um contraponto doloroso: a sentença. A alegada condição de Filho de Deus, respondendo
negação de Pedro. Enquanto esta isola mais ·o réu, a ação ju- à questão sobre a Verdade, restitui o conteúdo à pretensão real
dicial intencionada não consegue cumular o seu inelutável vazio. de Jesus. Inimigo prostrado, seus despojos podem ser divididos,
Tudo isto realça a liberdade com que Jesus traça a sua história. Homem na iminência da morte, cabe-lhe fazer seu testamento:
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confiando, um ao outro, a mãe e o discípulo, é de sua condição Sábado Santo: Vigília
de Filho que faz o seu legado. A Morte pode advir-lhe como a
consumação de algo que jaz sob o seu poder: o acesso à ver- Ver A Mesa da Palavra, Ano A, p. 183,199.
dadeira Vida, que o faz arder de sede. Plenitude, esta Morte é
um triunfo que põe ao alcance do homem os seus principios .Evangelho: Me 16,l-8
imanentes, o sangue e a água, que exala também o seu princíp:o «Ressuscitou, não está aqui!»
Primeiro, o próprio Espírito.
l. É op1n1ao aceita que Me 16,9-20, apesar de inspirado e canon1co,

Conclusão
• não é o final autêntico do segundo evange1ho. Surge a questão muito
discutida se Me 16,1-8 é o fina1 autêntico ou se e_ste se perdeu. A
opinião de que Mt 16,1-8 não seja o final autêntico, mas que este se
Política e relígiosa, a sentença pronunciada pelo sacerdócio tenha perdido, é muito antiga. Prova disso são as antigas tentativas
para dar um fecho, diferente de Me 16,1-8. Tão antigas que se encon-
e pelo império produz, em sua execução, o exato contrário do tram codificadas nos velhos manuscritos e que uma delas é reconhecida
efeito que visa: tira à vida sua forma física, singular; e eis inspirada e canônica. Ao todo propõem-se seis cláusulas do segundo
que, agora, no Espírito, ela jorra universal e alcança a tota- evangelho: ·
lidade do _homem. 1°) Me 16,1-8: a cláusula de manuscritos antigos ·muito importantes
Pe. Benjan1in de Souza, O.S.B. como o Vaticano e o Sinaitico.
São Paulo, SP 2°) Me 16,1-8 e 9-20: esta cláusula canônica já era conhecida por
~- Justino, Taciano e Ireneu.
3°) Me 16,1-8 ~ uma cláusula curta: «Elas narraram brevemente
àqueles que estavam com Pedro tudo que lhes tinha sido anunciado.
Depois disso o mesmo Jesus (lhes apareceu) e do Oriente até o Oci-
dente enviou por meio deles o sagrado e incorruptivel anúncio · da sal-
vação eterna». Esta cláusula encontra-se desta maneira em somente um
códice, a saber, o códice Bobiense, da antiga tradução latina da Africa.
4') Me 16,1-8 e a cláusula curta de n' 3 e ,Me 16,9-20: .Esta
cláusula . encontra-se em quatro unciais e outros m?nuscritos gregos,
cépticos e etiópicos.
5°) Me 16,1-14, a cláusula do códice Freer e 16,15-20. O texto é
este: «E eles se justificavam dizendo: 'esse século de iniqüidade e
de incredulidade está sob (o domínio de) Satanás que não permite
que quem está sob o jugo dos espíritos impuros capte a verdade e o
poder de Deus; revela portanto desde agora a tua justiça'. Isto é o
que eles djziam a Cristo, e Cristo lhes respondeu: 10 termo dos anos
.do poder de Satanás chegou ao cumprimento; e contudo outras coisas
terríveis estão próximas. É para aqueles que pecaram que eu fui dado
à morte, a fim de que se convertam à verdade e não pequem mais,
a fim de que herdem a gJória espiritual e incorruptível da justiça que
está no céu. Mas ide pelo mundo ... '»
Segundo S. Jerônimo tal conclusão estava contida, ao menos par-
cialmente em alguns manuscritos, especialmente gregos (cf. BaJlarini,
p. 144). ' '
6°) Me 16,1-8 e a cláusula perdida.
Muitos exegetas acham que se perdeu a cláusula autêntica e que
nenhuma das antigas tentativas para recompô-la satisfaz. Alguns deles
propõem, então, uma tentativa própria.
2. Aumenta o número de exegetas que encaram Me 16,1-8 como
a cláusula autêntica. Em primeiro lugar porque é dif;cil explicar por
que e como uma outra cláusula se tenha perdido. Em segundo lugar,
porque Mt e Lc certamente já conheceram Me 16,1-8, mas não uma

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outra cláusula final. Nos textos paralelos (Mt 2jl,l-IO e Lc 24,1-12) b!blica e apocalíptica veicula a reação humana adeguada a. ~~a reve-
mostram-se dependentes de Me 16,1-8. Logo depois seguem caminhos lação divina. No ca~o trata-se do. n;ysterium t~e.mendlJm da vitoria sobre
diferentes, recorrendo a tradições independentes. E em terceiro lugar a morte. manifestada na ressurre1çao do cructf1cad~! _ .
porque, em ú1timá análise, Me 16,1-8 seria um final que corresponde 3. O fato que 'Se pode discutir se Me 16,1-8 e· ou nao a clausula
ao resto do livrinho de Marcos sobre jesus. autêntica do evangelho de Marcos ressalta mais urµa vez a nat~r:za
Em Me 16,1-8 o autor apresenta, conforme a opinião deles, o literária dos evangelhos sinóticos. ~ecolhem-se neles peq~enas trad1~o!s
essencial para finalizar o seu livrinho: o anúncio da ressurreição e a preexistentes. Tentou-se com bons resultados recçinstru1r a trad1çao
reação adequada ao mesmo. usada por Marcos, em Me 16,1-8. E pergunta-se,_ qual terá sido a
Para o anúncio da ressurreição usa-se uma fórmula querigmática: origem (ou a Sitz .im Leben) da mesma. ~xis.tem ~uas respostas. con-
cjesus de Nazaré, que foi crucificado, ressuscitou». É o núcleo do que- vergentes. Urna primeira sugere que ela teria sido usada com~ «le1tu~~
rigma que tantas vezes se encontra nos Atos dós Apóstolos (cf. At na celebração litúrgica anual da Páscoa do Senhor, por CUJ'_l ocas1ao
2,22-24.36; 3,13-15; 4,10; 5,30; 10,38.40; 13,29). Em forma de predição os cristãos visitavam o sepulcro de Jesus e lhes era anunciada esta
da morte e ressurreição, este mesmo núcleo do querigma encontra-se narração. Em vez de pensar na festa anual_ dos cristãos da__c_omuni-
várias vezes no Hróprio evangelho de Marcos (Mc,8,31; 9,9-13; 9,30-31; dade de jerusalém pode-se melhor pen~ar, dIZ a s~gund~ op1n1ao, ~m
10,33-34). Em Me 16,6 proclama-se a realização destas predições pela romeiros cristãos que de lonue peregnnavam a Jerusalem e tambem
citação do núcleo. querigmático, base da fé cristã e conteúdo central visitavam o sepulcr.o de jesu~. Naqueles tempos havia na Palestina
da pregação apoStólica pós..pascal. Em outras palavras: o evangelho muitos monumentos :sepulcrais judaicos que eram visitados pelos judeus,
de Marcos termina onde começa a pregação apostólica. Ora, conforme corno se faz até hoje: os túmulos dos patriarcas eJJ.1- Hebron, o sepul-
o prescrito, o livrinho quer apresentar «O início do Evangelho de jesus cro de Davi em Jérusalém etc. Visitavam-se estes ,sepulcros na supo-
Cristo» (Me 1,1) e não se alongar em <atos dos ·apóstolos>. sição de que neles os venerados antepassados estivessem de alguma
Uma das razões por que a autenticidade de Me 16,1-8 como cláusula manira presentes. De maneira semelhante os cristãos Vieram ao sepulcro
final é combatida é que a reação das mulheres sei'ia inadequada e im- de Jesus. E contava-se-lhes a narração da ressurreiç'ão de jesus. Neste
pensável como criiiclusão de um evangelho. Mas déve-se saber primeiro pano de fundo altera-se de vez a função desta narração. Através dela
o que é, aos olhOs de Marcos, uma reação adequada a uma manifesta- explica-se aos peregrinos que procuram o sepulcro, q_ue erraram o ende-
ção de Deus e de onde vêm as expressões que ele usa em 16,8. reco: «Ele não está aqui!» Em distinção dos patriarcas, de quem se
Em Me é freqüente o «medo» e o «pavor» dos acompanhantes de pe~sava- que de alguma maneira continuasse~ nos .s.epulcros, procJama-
jesus, dos discípulos e do povo. cEm várias ocasiões, Marcos termina se de jesus: «Não está aqui!» Tanto faz, vir aqu1~ O sepulcro pouco
suas narrativas _de milagres, mencionando o pav'or das testemunhas, importa. O que importa é o Jesus vivente. E este encontra-se alhures,
cf. 1,27: a cura do demoníaco na sinagoga· de Cafarnaum; 2,12: a cura não aqui no túmulo. <Ele vos precede na Galiléia» (Me 1&,7), na .•Ga-
do paralítico; 4,41: a tempestade ac_almada; 5,42: a ressurreição da liléia dos gentios» {Mt 4,15), isto é, na própria terra de onde viestes
filha de jairo; 6,51b-52: a marcha de jesus sobre as águas. É ver- para visitar o Seu sepulcro: <Lá O verão!» (Me 16,7).
dade que duas passagens não terminam pelo tema do temor {Me 9,6: Assim entendictd e explicada a Narração de Me. 16,1-8 talvez deixe
a transfiguração, e 10,32: o terceiro anúncio da paixão), mas ele é de novo os ouvintes perplexos e apavorados por «terem procurado entre
salientado no contexto» (H. Grass, citado por Trilling, p. 196). Em
Me 16,8 retornam, pois, os dois motivos do «medo» e do «pavor», os mortos quem eslá vivo» (e!. Lc 24,5).
acentuados pela fuga das mulheres. «0 'mistério: de jesus', que em Bibliografia: Os comentários de Se h ·w e i z e r, . T. a Y 1 o f.· Se h .mi d,
Marcos toma impressionante vulto, torna-se ainda mais denso preci- Se h na e k e n b u r g {Vozes). W. O. K ü mm e i, Etnlellung rn daf! N.T.,
samente no fim do Evangelho» (Trilling, p. 196). Que este pode ter l973l&; T. B ai J ar j n 1, e o., Introdução à Biblia, Tomo IV, Petrópolis 1912,
p. 144-146; W. T r i 11 i n g, A Ressurreição .de Jesus, Começo da Nova Era:
sido o pensamento de Marcos reforça-se pela resposta à pergunta de em: Jd., O Anlincio d~ Cristo nos Evangelhos Sinóticos, S. Paulo 1976, p. 193-221,
B. i\t F. v a n J ~ r se I, Het Iege graf (Me 16,1-8), em: H. Alou~ 1 t s, e.o.,
onde vêm as expressões usadas em 16,8. Elas são de natureza apo- Evangelie zonder Masker, Utrecht 1971, p. 199-207. P. B e no 1 t - l\1. E:
cal;ptica e têm os seus paralelos nítidos em Dn 10,7: B o l s mar d Synopse' des Quatre bvangiles, Paris, Tome I _1977'1; Tome II 1972,
s v o J "t ~'U 28 1-10· em· A Jlfesa da Palavra Ano A :!:::: REB 37 (1977/148).
264•-257•; Í.\. D. à o u't d e r, J\lark XVI,1-8 and' ParaJlels, em: NTS 24 (197~).
0

Dn 10,7 Me 16,8 235--240; o. w. T r o m p f, The First Ressurrection Appearance and the Endmg
of i\'larl,'s Oospel, em: NTS 18 (1972), 308-330; E. S c_b i II e b e e e k x, ]ezus,
<E ... elas Íugiram (ephugon) ... het verhr:al van een levende, Bloemendaal 1974.
«.. . mas apode!ou-se deles um ,
grande estupor ( ekstasis) e eles pois um tremor e um estupor Raul Ruijs, O.F.M.
fugiram (ephugon), cheios de me- (ekstasis) se apossaram delas ... · Petrópolis, RJ
do (en phoboi)». pois tinham medo (ephobounto)~.

Este mesmo versículo de Dn 10,7 é usado também em At 9,7, no Sugestões para a Homilia
contexto da aparição de Jesus ressuscitado a Paulo. Não se deve, pois,
ler Me 16,8 sorne'nte como urna informação histórica que faz conhecer Vigília Pascal: Luz sem Sombras
uma reação psicológica de mulheres assustadas. Em termos de linguagem
Anos atrás, correu por todos os cinemas do mundo o filme
r 142 143
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1.
1
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americano intitulado Trevas sem luz, que deu muito que falar. dos mortos que um dia hão de ressurgir para a vida que jamais
Aí se abordava o seguinte tema: Um sábio arqueólogo empreen- conhecerá a morte.
deu escavações nos arredores de Jerusalém, oude hoje se encon- Nesta Vig!lia Pascal, não celebramos Trevas sem Luz, não
tra a basílica do Santíssimo Calvário. Certo dia comunica ele estamos na sexta-feira santa, mas na Páscoa, a festa da Luz
a todos os meios de imprensa: Eu encontrei a sepultura de Jesus sem Sombras. É pena que estejamos já por demais acostumados
de Nazaré, crucificado no ano 33. Esta sepultura, porém, não a ouvir estas verdades e já tenhamos perdido o senso pela no-
está vazia, mas dentro dela se encontra um cadáver mumificado; vidade que elas trazem. O homem antes de Cristo não sabia
Cristo, pois, não pode ter ressuscitado; Cristo não ressuscitou. nada disso. Ele sabia apenas sobre a incoercibilidade da morte.
Esta novidade se espalha, aos quatro ventos, por rádio, televisão O homem de hoje sem Cristo é como o pagão: nada sabe da
e imprensa. O mundo entra numa densa treva. Tudo o que re- absoluta esperança. A crença na ressurreição futura dos mortos
cordava Cristo foi feito desaparecer. Igrejas foram destruídas, é mais uma bela hipótese que uma verdade passivei de verifi-
conventos fechados, padres abandonaram suas paróquias, missio- cação. Em Cristo ressuscitado os apóstolos e nós experimenta-
nários do mundo inteiro retornaram a suas pátrias, irmãs aban- mos e vimos a realidade de um sonho, o fato de um desejo
donaram suas escolas e hospitais; enfim, o mundo entrou numa querido ao coração humano. Então compreendemos por que
enorme confusão. Até que enfim é desmascarado um embusteiro, Paulo escarnece da morte e triunfante lhe pergunta: «O morte,
comentavam alguns. Abaixo com a moral cristã e com a cruz, onde está a tua vitória? O morte, onde está o espantalho com
símbolo do sacrifício e da aceitação da morte - gritavam que amedrontavas os homens?» (lCor 15,55). A morte foi tra-

t,, outros. Outros tantos não deixaram de observar: Ê muita pena


-que tudo isso tenha sido uma falsidade, pois o Ressuscitado
ainda nos dava o sen1ido e esperança de enfrentar a vida e de
gada pela vitória de Cristo. A festa desta noite é de alegria;
é de se cantar e ouvir o Aleluia. A nossa vida está assegurada;
esta vida que aqui vivemos não nos será tirada com a morte;
't,.
superar seus absurdos. Agora, porém, com dor, temos que ve- a morte será apenas um fenômeno biológico, mas que não po-
'"
1
rificar nossa frustração. derá destruir o nosso verdadeiro ser. O nosso amor jamais po-
' Assim, e com outros tantos pormenores, o filme Trevas derá ser destruído. Com a ressurreição de Cristo viemos saber
sem Luz vai mostrando o que significa o mundo sem o fato que a vida é mais forte que a morte, que a morte é só uma
e a fé na ressurreição de Cristo: verdadeiramente trevas, con- passagem forçada mas que não nos poderá fazer mal algum.
fusão, frustração e angústia nos corações humanos. Porém, no Levemos um pouco da luz desta noite para dentro de nossas
1 final, o filme mostra o sábio arqueólogo no leito de morte.
Antes de entrar em agonia, ele quer ainda uma vez falar. E
vidas; semeemos sementes de ressurreição no chão escuro de
nossos problemas e alegremo-nos: Cristo ressuscitou. Nós res-
então revela ao médico professor da universidade que sua des- suscitaremos com ele. Aleluia!
coberta fora uma falsidade, que ele interpretou mal o cadáver Leonardo Bo!!
mumificado. Este não era do ano 33 mas do ano 333 dC. Petrópolis, RJ
Esta história, de um filme moderno, mostra-nos à maravilha
o que seria o mundo sem a fé na ressurreição. Paulo já nos
dizia em sua epistola aos coríntios: Se Cristo não ressuscitou,
vã é a nossa pregação, vã a nossa fé; nós seríamos falsas tes-
temunhas e os mais miseráveis de todos os homens ( cf. l Cor
15,15s). Quereriamas viver de fantasias e em vez de enfren-
tar a vida e a morte, procuraríamos fugir da dureza com falsas
projeções de nossos desejos. Porém com o fato da ressurreição
de Cristo entrou uma novidade total em nosso mundo fechado
pelo círculo da morte. Alguém rompeu esse circulo e deu espe-
rança a todos nós. Bem diz São Paulo, novamente na sua carta
aos corintios: Se Cristo ressuscitou, então havemos nós tam-
bém de ressuscitar. Ele é apenas o p~imeiro da enorme cadeia
l 145
144
l j
escrúpulos de pureza legal, porquanto o que Deus purificou não é
impuro (AI 10,15.18). No Concílio de Jerusalém, evocando tal visão,
Domingo de Páscoa Pedro dirá que Deus purificou os pagãos pela· fé (temor de Deus,
prática da justiça), não já pela circuncisão (At 15,9).
Pistas Exegéticas Nos vv. 37-43 Pedro, em nome dos Doze, embora suponha algum
conhecimento («vós sabeis» ... ), traça breve resumo da vida pública de
Primeira Leitura: At to,34a.37-43 jesus, após o batismo (1,22), quando inaugurou oficialmente a tarefa
messiânica, insistindo na realidade dos milagres, de sua morte e ressur-
Neste capítulo, Lucas narra como S. Pedro, após misteriosa visão reição. No v. 38, «Deus O ungiu com o Espírito Santo e com o· poder»
(10,9ss), se dirige aos pagãos - Cornélio e sua familia -, admitindo-os parafraseia Is 61,l: «O Espírito do Senhor repousa sobre mim, porque
na comunidade cristã pelo batismo, não sem reclamações da parte dos o Senhor consagrou-me pela unção; enviou-me a levar a boa-nova aos
judeu-cristãos (11,1-3). A partir do v. 34 se nos oferece o 1° discurso humildes ... » - passagem que Jesus se aplicara na sinagoga de Na-
que Pedro faz perante um auditório não-judeu, anunciando a salvação. zaré, ao iniciar sua vida pública (Lc 4,17-21). O Apóstolo pretende
A cena empolga e a autoridade de Pedro se impõe. O discurso se compõe: justificar o proceder («fazendo o bem ... curando») e os miJagres de
(a) de uma espécie de exórdio (vv. 34-36, aqui omitidos); (b) de um Cristo: é o <IUngido» do Senhor Javé, segundo atestam as profecias.
resumo da vida de Jesus (vv. 37-41), a quem Deus constituiu juiz Como em 2,22ss esboça a figura de Cristo qual se encontra no evan-
dos vivos e dos mortos (v. 42) e do qual dão testemunho todos os gelho de Marcos que reproduz os sermões de Pedro. «Cristo» é o
profetas (v. 43).
mesmo que «Ungido», «Messias». Não se trata de unção propriamente
No exórdio se diz com realce que, diante de Deus, todos os homens dita, como no caso dos sacerdotes, profetas e reis (Ex 28,41; Lv 8,12;
são iguais (v. 34s; cf. OI 3,26ss); a _de;ipeito desta semelhança _geral, lSm 10,1; 1Rs 19,16), mas de escolha .divina para certa missão, acom-
no v. 36 insinua-se uma certa supenondade, um certo pnv1lég10 de panhada de graças especiais (2Sm 12,7; Is 61,1; SI 44,8). Deus «ungiu»
L; Israel, porquanto a ele é que foi dirigida em primeiro lugar a men- a jesus quando o constituiu Messias. Esta <s:unção» em substância deu-se
sagem evangélica (At 3,26; 13,46; Rm l,16i 3,2). Pedro refere-se a já na Encarnação, todavia manifestou-se publicamente no batismo (Jo
uma convicção, adquirida agora graças à misteriosa visão de jope (At
1,31-34) e, mais ainda, na ressurreição (AI 13,33).
1011-16) confirmada com o evento-Cornélio (10,20-23). Sabia que em
D~us nã~ há acepção de pessoa, que Ele não prefere injustamente este Apela-se ao testemunho dos apóstolos: viram, ouviram, sentiram
ou aquele (Dt 10,17), entretanto até este momento considerava natural tudo - vida, palavras, obras, morte, ressurreição. Eles são testemunhas
que Javé, Senhor absoluto, preferisse o povo judaico às outras nações, que Deus escolhera de antemão (v. 41) para pregar ao povo ( = todos)
fiel a seu plano (cl. Gn 17,7; Ex 19,4-6; Eclo 36,14). Aliás, Jesus em e testemunhar que Jesus de Nazaré foi constituído por Deus «juiz dos
várias ocasiões e de vários modos dissera que todos os povos fariam vivos e mortos» (v. 42; cf. Lc 24,47). O que diz Pedro encaixa perfeita-
parte de seu Reino (MI 8,11; Me 16,15s; Jo 10,16; AI 1,8). O próprio mente com o modo de agir divino, ao qual se refere também Paulo, no
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Pedro, em suas alocuções anteriores, supunha esta verdade, quando sentido de levar os homens à salvação pela fé e através do ministério
estendeu a salvação messiânica não só aos judeus mas. tambêm aos de outros homens (Rm 1,l6s; 10,13ss). Para o príncipe dos apóstolos
1: que cestão longe» (At 2,39), ou ainda, quando ensinou que aos judeus, sobressaem, como acontecimentos decisivos da salvação, a morte e res-
1 em primeiro lugar, foi enviado o Salvador (At 3,26). Isto posto, n~da surreição de Jesus.
impede que o chefe dos apóstolos, em virtude de sua formação judaica, É conhecida a predileção dos soberanos de então por títulos e
continuasse a fazer distinções entre judeus e pagãos. homenagens. A eles se contrapõe Jesus de Nazaré, como verdadeiro
Recorde-se que, já no VT, havia profecias concernentes à universa- benfeitor e único salvador, o Senhor de todos. Em seu primeiro discurso
lidade da salvação, segundo as quais judeus e pagãos formariam um aos judeus Pedro declarou que Jesus Cristo fora constituído «Senhor
só Povo sob o Messias (Is 2,2ss; 49,1-6; JI 2,28; Am 9,12; Mq 4,1). e Messias; (AI 2,36). Agora (10,42) o proclama «juiz dos vivos e
Eram conhecidas dos Israelitas que, porém, as interpretavam a seu modo, mortos», expressão mais adequada para um ambiente pagão (cf. At
vale dizer, os pagãos deveriam sujeitar-se à circuncisão, à Lei mosaica. 17,31). A expressão «vivos e mortos» (cf. 2Tm 4,1; IPd 4,5) passará
Como Povo eleito consideravam-se únicos, superiores aos demais, po-
' . .
dendo aceitar os outros povos, contanto que renunc1assem a sua na-
para o s~mbolo dos apóstolos. Confirma a doutrina paulina, segundo
a qual os homens da última geração, que viverem no momento da
cionalidade para fazer-se judeus civil e religiosamente. Semelhante men- parusia, não hão de morrer (cf. ICor 15,51; l!s 4,15ss). Cristo, ao
talidade permanecia mesmo após a conversão a Cristo. Para um judeu ressuscitar, foi constituído «juiz» dos que então viverem e dos «mortos~
era, pois, óbvio que todo o não-circuncidado, embora simpatizante do
que ressuscitarem para o juízo (jo 5,22). Pedro, finalmente, aduz outra
mosaísmo, como era o caso de Cornélio (At 10,2.22), se considerasse razão para crer em Jesus Cristo, - o testemunho dos profetas (Js
impuro1 indigno de sentar à mesma mesa.
49,6; 61,I; Jr 31,34; Zc 9,9), segundo o qual é crendo em seu nome
Assim pensou Pedro até a mencionada visão (At 10,14.28; 11,5-17), que se obterá a remissão dos pecados, a salvação messiânica (v. 43).
assim pensava a igreja de jerusalém (At 11,3), assim continuaram pen- É mais uma prova das a1tas prerrogativas de Jesus. Já antes o
I,' sando certos judeu-cristãos mais tarde, estando a questão já esclarecida, Apóstolo mencionara em seus discursos (2,38; 3,16; 4,12) a necessidade
quando inclusive tentaram intimidar a Pedro (cf. GJ 2,12). A visão de crer nele para salvar-se.
celeste de jope levou Pedro a mudar de opinião: deverá banir seus

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I·:
Bibliografia: K fi r z J n g e r, J., Atos dos Apóstolos, trad. de J.-J. Kloh p11, mente, Cristo tornara-se o Cordeiro Pascal definitivo. E nessa perspectiva
Petrópolis, Vrnes, 1971; T u r r a d o, L., Biblia comentada, IV, BAC/.Madrid 1965;
L e a 1, J., Hechos de los Apóstoles, La Sagrada Escritura, NT, 11, BAC/Madrld terá continuidade a reflexão cristã que a partir da identificação de jesus
1965. com o cordeiro, feita por joão Batista e relatada no Evangelho de
Pe. Matheus F. Giuiiani, S.A.C. joão (1,29: «eis o cordeiro de Deus~), eXpressa na catequese batisma1
Santa Maria, RS de lPd 1,19 («fostes resgatados... pelo sangue precioso de Cristo,
como de um cordeiro sem defeitos e sem mácula»), e no Apocalipse
(5,6: «vi um cordeiro de pé corno que imolado»), o que será a iden-
Segunda Leitura: 1Cor .5,6b-8 tificação definitiva feita peJa liturgia cristã, Cristo é o verdadeiro cor-
deiro (Prefácio da Missa de Páscoa). Certamente para tal contribuiu
Paulo escreve a uma comunidade cheia de altos e baixos. Nela a cronologia de joão que põe a morte do Cristo no momento em que
se encontrava o entusiasmo dos carismáticos (12-14), mas também a os judeus imolavam o cordeiro (19J14) e fi:Ublinha o fato de que nenhum
divisão causada por contendas internas (1-4), os casos de incesto (5), osso lhe foi quebrado (19,33-36; cf. Ex 12,46).
de apelo a tribunais pagãos (6) e a fornicação (7). Na comunidade de Paulo assim, segundo tradições litúrgicas cristãs, anteriores a e1e,.
Corinto já se refletia a constante da lgreja, que é ao mesmo tempo afirma ser «Cristo o verdadeiro cordeiro sem mancha imolado por nós».
santa e pecadora.
O nosso texto faz parte do cap. 5, que trata do incestuoso pre- Bibliografia: E. W a 1 ter, A Primeira Epistola aos Corintios Petrõpolis 1973;
X. L.-D u f ou r, Vocabuldrio de Teologia Blblica, ·verbete "Cordeiro 1', PetrópoJis 19'17.
sente na comunidade, e Paulo toma como ponto inicial de sua reflexão
o fermento, certamente inspirado pela proximidade da festa dos Azimos Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.J.
dos judeus, que lhe forneceu o.s termos ázimo, cordeiro, imolação, Pás- Paulista, PE
.coa, e na qual o fermento desempenhava um papel importante. Podemos
afirmar que o fermento é um símbolo universalmente conhecido, de-
-corrente do uso culinário doméstico presente entre os povos. E sua Terceira Leitura: ]o 20,1·9
.ação de levedação e fermentação é universalmente conhecida. Na Bíblia
esta simbologia já fora usada por Cristo no duplo sentido, do fer-
mento bom que leva para o bem (Nlt 13,33 = o reino) e o mau fer- Encontra-se uma Pista Exegética desta leitura na Jl1esa da Palavra,
Ano A, p. 203-204 (R. Ruijs).
mento que ]eva ao ma] (Mt 16.6 e par. = os fariseus), comO também
:será usada por Paulo em Gl 5,9.
Paulo usa a simbologia do fermento .mau, no caso o incestuoso,
que pode contaminar toda uma comunidade. Esta então tem de se pre- Leitura da Missa Vespertina: Lc 24,13-35
eaver e afastar de seu seio tal fermento, fermento velho .s:da malicia
1-e da perversidade», e substituí-lo pelos «ázimos da pureza e verdade». Comentário na A Mesa da Palavra, Ano A, p. 218-220. CI. A
A culpa de um membro contamina toda a comunidade, e a comunidade Mesa da Palavra, Ano B, p. 166-168 (comentário de Lc 24,35-48).
é também responsável por seu membro que erra. A idéia de persona-
lidade corporativa está aqui presente, juntamente com aquela do corpo
que é a comunidade (cf. 12,12-30).
Paulo não fala em usar um bom fermento, masJ estando em clima S11gestões para a .Homilia
de Ázimos, de tornar-se a comunidade semelhante ao pão· sem fer-
mento, símbolo de pureza e integridade. O pão sem fermento é feito
do trigo como a natureza produz. A comunidade sem pecado será pura Que significa a vida ressuscitada?
e íntegra segundo a nova natureza, purificada e renovada, recebida no
nascimento pelo batismo em nome de Cristo (Ef 4,22ss).
A festa judaica dos Ázimos exigia a destruição do pão fermentado Introdução
que havia na casa (Ex 12,9) e por oito dias ele devia estar ausrnte
(Dt 16J4). Agora a Páscoa do cristão já foi imo1adaJ e de uma vez A festa da ressurreição de Jesus celebra o tri11nfo da vida
para sempre. 1sso significa, então, que todo o pão da maldade deve
ser definitivamente destruído; o fermento do pecado, destruído pelo contra todas as forças que se opõem a ela. Por isso, o centro
Cristo, não deve ter mais vez. E o ser morto e ressuscitado com Cristo da fé cristã não consiste na celebração da memória de 11m
para uma vida nova supõe uma vida pascal de pureza e santidade, herói morto, mas da presença de um Vivo e Vivente no q11al
simbolizada no pão sem fermento. Os cristãos tornaram-se novos, e se decifrou para todos nós o sentido último da vida. Há duas
devem manter~se como tais.
Do ponto de vista exegético é interessante a referência a Cristo
perguntas básicas que os homens sempre levantam: que é a
Páscoa, pois isto signiUca que por volta do ano 57 dC, em que foi vida? qual o futuro da vida? A ressurreição projeta uma luz
escrita a Primeira Coríntios, a Páscoa já fora reinterpretada cristã- explicadora sobre esta realidade tão vital.
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Corpo 2. Vida de ressurreição é vida de plena comunhão

l. A vida é chamada para a vida Que significa, propriamente, a vida ressuscitada? Para
respondê-lo precisamos olhar para o Cristo ressuscitado, pois
Se olharmos ao nosso derredor, o que constatamos é o do- só nele nos foi dado contemplar, aqui na terra, esta forma de-
mínio da morte; tudo vive, mas chega um momento, em que finitiva de vida. Primeiramente se trata de vida humana. É a
tudo começa a envelhecer, se deteriora e morre. A vida é um mesma pessoa - no caso Jesus - que é entronizada na vida
mistério. Quem no-lo repetem continuamente são os próprios plena. É aquele que andou entre nós, é o crucificado. Na vida
c;entistas. Podemos estudar as condições da vida, mas ela mes- ressuscitada tanto o corpo quanto a alma são conservados e
ma permanece uma realidade aberta. É verdade que onde há
transfigurados. Não se trata, portanto, apenas de uma imorta-
vida sempre ocorre uma troca de matéria para ganhar energia
lidade espiritual para uma parte do homem. Todo homem e o
e uma multiplicação como forma de se conservar. Mas tudo
homem todo é chamado a esta vida nova. Em segundo lugar
conhece um limite, apesar de formas muito inferiores de vida
se trata de vida nova. Atente-se: não se diz outra vida, mas
manterem-se vivas por milhares e milhares de anos. Assim, por
vida .nova. Se fosse outra vida, não haveria relação com a vida
exemplo, na pele de um elefante Mamut, que se congelou na
Sibéria, cerca de 10.000 anos atrás, foram encontradas bacté- que agora vivemos. Com a ressurreição se dá a transfiguração
rias ainda capazes de serem revivificadas. Em muitos campos desta nossa vida mortal. Paulo o diz, claramente, quando aborda
de sal mineral foram encontradas bactérias, há milhares e milhões esta questão na sua carta aos Coríntios (15,35-38): «é preciso
de anos fixadas vitalmente (que não morreram), que podem ser que este corpo corruplível se revista de incorrupção e que este
reconduzidas à vida ativa. É comum hoje em dia que bactérias ser mortal se revista de imortalidade» (15,53). Em terceiro
sejam submetidas a baixíssimos graus de temperatura e aí con- lugar se trata de vida plena. Que é para o homem a plenitude'
servadas, sem necessidade de alimento ou de multiplicação, por da vida? A plenitude da vida acontece ou nos acercamos dela,
mais de 40 anos e depois novamente reativadas com todas as quando todos os dinamismos latentes da vida se expressam e se
funções da vida. Mas apesar de tudo, chega também para elas, ativam. O dinamismo fundamental de toda vida, também daque-
um dia, o fim não-desejado. la mais inferior, é o da troca, do dar e receber, da comunhão.
No homem, a morte sempre constitui um drama e uma No homem viver significa, simplesmente, comungar, entrar em
angústia. Tudo em seu ser chama para a vida em plenitude relação com todos os seres, potenciar ao máximo a abertura que
e, contudo, não pode deter os dinamismos de morte. Paulo já agora possui.
exclamava: «Quem me libertará deste corpo de morte»? E res- Na vida presente podemos realizar formas altas de comunhão
pondia: «Graças a Deus, por Nosso Senhor Jesus Cristo» (Rm e comunicação. Pelo corpo nos expressamos, fazemo-nos presen-
7,24-25). Aqui se encerra toda a certeza e a alegria cristã. tes aos outros; pelo pensamento e pelo amor penetramos até
Alguém libertou-nos da morte. Em alguém, a vida que clama na intimidade do outro e instauramos laços de unidade. Mas
pela vida, triunfou e manleve sua força contra os bafejas da sempre topamos também com obstáculos à comunhão. O corpo,
morte. É o sentido da ressurreição. Por ela se professa a fé certamente, é grande instrumento de presença; mas, ao mesmo
da vida em plenitude. Não se diz que, simplesmente, sobrevi- tempo, é um obstáculo à presença porque não podemos ocupar
veremos. Diz-se que a vida mortal do homem não é mais mortal, todos os lugares; precisamos do espaço e do tempo para nos
que nele a vida é tão realizada, densa e perfeita que a morte locomover e fazermo-nos presentes a outros em outros lugares.
não consegue penetrar e realizar sua obra de destruição. A nossa O corpo não é translúcido: comunicamo-nos somente por pa-
alegria é tanto maior quanto sabemos que Jesus é o primeiro lavras, sinais, gestos que conservam uma inevitável ambigüida-
dos mortos a possuir esta plenitude de vida, e que nós segui- de. O ideal seria, e esta é a nossa suprema aspiração, de su-
remos a ele e somos chamados a herdar esta mesma vida ressus- perar todos estes empecilhos à comunhão e sermos totalmente
citada. A angústia milenar desaparece, sossega nosso coração. transparentes para todos. A utopia do coração é penetrar na
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Enfim, o futuro é aberto e um desembocar feliz desponta para intimidade de todas as coisas e viver com o universo inteiro
o sentido da vida chamada, para sempre, para a vida. uma profunda fraternidade e comunhão.
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Ora, ressurre1çao deve ser representada como a realização Segundo Domingo da Páscoa
completa e exaustiva destas potencialidades presentes dentro de
nossa vida humana. Pela ressurreição o homem desabrocha total- Pistas Exegéticas
mente. As sementes em nós de comunhão e de amor nascem
para sempre; os botões de fraternidade, de abertura terna para Primeira Leitura: At 4,32-35
com os outros, enfim se abrem e floresce, finalmente, a pleni-
É mais uma descrição da comunidade cristã primitiva e de sua
tude da vida no Reino de Deus. ação social em favor dos carentes. Lucas já fizera, em 2,42-47, um
Em Jesus ressuscitado notamos a realização desta utopia, belo retrato da vida íntima da comllnidade cristã de Jerusalém: escutan-
cujas raízes se encontram no mais profundo do coração, nos do o ensino apostó1ico, vivendo unidos na caridade, prestando culto
sonhos mais ancestrais e nos mitos mais arcaicos de nossa histó- público e sacramental. Com expressões encantadoras torna a insistir na
missão fraterna de todos os fiéis que, por sinal, punham tudo em·
ria. Agora tudo isto não é mais utopia, nem mais esperança, é comum (v. 32). At 2,42-47 se concatena com 4,32-37 e forma trilogia
fato histórico e realidade completá. com 5,12-16; o autor de Atos intenta evidenciar a obra do Espírito
Santo na comunidade. Em conseqüência, não havia necessitados. A ausên-
cia Qe carentes é hiperbólica. A comunidade de Jerusalém sempre foi
pobre (6,1; 11,27-30); provam-no as coletas de S. Paulo por ela. A
Conclusão
hipérbo1e reaJça o empenho de muitos em socorrer os pobres, desa-
pegando-se de seus bens. Tal desapego é caro a Lucas (Lc 6,20-26;
Não basta ficarmos alegres com o triunfo da vida. Cumpre 9,36; 12,33; 18,22; At 2,45; 4,34). Trata-se de um conse1ho de per-
entrar na contemplação da forma de vida que Deus nos pro- feição, mais do que um sistema a impor. ..
meteu e realizou, de forma exemplar, em Jesus Cristo ressusci- Todos que possuíam, punham à disposição dos apóstolos para que
tado. Mais importante ainda é garantirmos para nós semelhante repartissem segundo as necessidades (vv. 34-35). Tal comunhão de
bens não deve entender-se em sentido absoluto. Havia, com efeito,
futuro ridente. E o garantimos à condição de nos pormos no união de esp:ritos e de corações, a ponto de pôr em comum os bens
seguimento de Jesus Cristo, de sua mensagem e de seus exem- materiais (2,44s). Naturalmente é o caso de uma descrição de ideal
plos. Quem tenta viver como ele viveu, já começa a sentir em si nem s.empre atingível. Tudo indica que não passou de um entusiasmo
as forças de ressurreição. Dentro de sua mortalidade vai se inicial de pouca duração, aprovado sim pelos apóstolos, porém nunca
exigido formalmente. Embora 2,44s e 4,34 ·insinuem norma geral, todavia
formando a imortalidade. A morte apenas deixará cair o invólu- não se deve urgi-la, já que o caso de Ananias e Safira (5,1-11) prova
cro que escondia o tesouro precioso: a vida, agora plena porque ser algo livre e a atitude de José Barnabé (4,36), algo raro. Sabe-se
realizada na tola! comunhão e amor com todas as criaturas que, em Jerusalém, cristãos possuíam casa~ (12,12; 21,16). Mesmo admi-
de Deus. tindo tais restrições, semelhante prática não deve ter dado bons resul-
Leonardo Boff, 0.F.M. tados. É possível que isso tenha motivado a pobreza geral da comuni-
Petrópolis, RJ dade jerosolimitana, o que levou Paulo a organizar várias coletas em
seu favor (11,29; Rm !5,25ss; !Cor 16,1-4; 2Cor 8,1-9; 01 2,10). A
situação não aconselhou o mesmo nas comunidades paulinas. Inclusive,
não teria sido fácil emprestar a tal prática dimensões universais. O
Cristianismo sempre admitiu a propriedade particular. contanto que não
fosse nociva ao bem comum.
A comunhão de bens derivou, mais do que dos essênios, do exemplo
de Jesus com os . apóstolos, como continuidade lógica, particularmente
se se tem em vista a condição da primeira comunidade cristã. Só mesmo
por motivos re1igiosos foi possível tal comunhão parcial dos bens. :e
algo bem diverso do atual comunismo. Não por nada se diz no v. 32:
«Ninguém dizia que eram suas as coisas. que possuía; mas tudo entre
eles era comum». A renúncia dos bens brotava da fé e da esperança
no Senhor.
«Um só coração e uma só alma» (v. 32) exprime unidade interior
i, de pensamento e afeto, colimando num sincero altruísmo. É a irrupção
espontânea do amor fraterno, sem preceitos nem imposições, mas pro·
vocado pela vivência da salvação e pelo exemplo de Cristo. O «coração»

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para os semitas conota mais, a inteligência, ao passo que «alma» se do .Pai e ~alva dor do mundo (Jo 4,29.42). Não basta reconhecê-lo,
refere antes à vida afetiva. A fé e o amor comum são o verdadeiro faz-se mister submeter-se a Ele, vivendo? unido a Ele. Crer na divin-
principio da pobreza de espírito. Objeto do testemunho intrépido dos dade de Cristo é sinal de que se nasceu de Deus. Sem fé não hã
apóstolos é a ressurreição dê Cristo. Efeito desse testemunhQ. é o ca- nem filiação : divina nem caridade. O novo nascimento implica em cari-
risma dos milagres, que o vinha corroborar. «Em todos eles era grande dade fraterna porquanto estabelece entre os crentes relações de uma
a graça» (v. 33) pode ser a simpatia do povo ou o favor junto a mesma vida. Impossível amar a Deus, autor de nossa geração espiritual,
Deus. Deus se revela através da vida dos apóstolos e primeiros cristãos. e odiar aqueles que ele regenerou. O anior que temos a Deus atinge
Como eles o fizeram, será que nossa vida agora revela a situação também seus filhos. Odiar os irmãos é' não possuir a vida eterna
de uma nova criação? Como sentimos hoje a verdade salvífica? Algo (3,15). Crer em Deus é amar a seus filhos porque são irmãos.
apenas externo e remoto? Estamos capacitados para captar a intensidade O cristã.o é essencia1mente homem n~scido, gerado por Deus para
da fé dos inícios da Igreja? Somos, como eles então, um espetáculo sempre, em .continua dependência dele. Possui nova vida: a da graça.
ao mundo hodiernO? Continua a receber, ao longo de sua existência, o ser e a vida divina
de seu Pai, diversamente do que acontec~ na geração natural «Quem
Bibliografia:. Cf. Domingo de Páscoa, 1,, leitura.
ama. aquele que o gerou"' (v. 1) evoca a piedade filial, o amor do
Pe. Matheus F. O,iuliani, S.A.C. filho para ~u progenitor. Se no plano humano as reJac;ões de carne
Santa Maria, RS e sangue engendram um amor natural tão forte, quanto mais no pJano
divino o cri~tão deverá amar seu Pai celeste, por lhe ter dado, con-
) servado a vida espiritual e prometido a eterna.
Segunda Leitura: lJo 5,1-6 Portanto;i amar o Pai inclui amar truítbém todos os que dele nas-
ceram, os cristãos. E amá-Jos por amor de Deus, já que se está ligado
O tema central desta p~rte, desde 4,7, é o amor,• a predileção. a eles pela mesma natureza e graça. Deus mora continua e pessoal-
São joão sugere que tal amor não é imposição arbitrária, mas exigên- mente no cr.istão. Em virtude da graça e da participação da mesma
cia da natureza divina, já que Deus é amor. EJe, ao suscitar cristãos natureza divina, surge uma relação íntima, urna semelhança entre o
para uma nova vida, lhes coinunicou sua própria natureza_ e vida, com fiel e Deus, motivo de amor. Assim a fé dá origem, em nós, a novas
o que podem amar como o· Pai celeste ama. A prática da caridade relações de fraternidade, uma espécie de parentesco espiritual. Em 4,20
provará sua filiação divina. Aqui está a mais alta concepção do Ãgape, o amor fraterno é critério do amor de Deus. Aqui (5,2) é o amor
segundo joão, para quem o ·,amor é participação da vida divina~ pro- de Deus que é critério do amor ao próximo. São inseparáveis, se com-
cede de Deus como de sua )onte, é efeito de nosso nov'o nascimento, plementam mutuamente, porquanto há um, só autêntico amor: o amor
é germe divino recebido no ,batismo (4,7). Sem o amor fraterno não (ágape) com que Deus se ama e nos ama. A ausência ou presença de
pode existir conhecimento autêntico de Deus, porque Deus é amor. A um marcará r a existência ou não do outro.
Encarnação é plena manifest,ação do amor de Deus (4,9) e não há
verdadeiro amor sem união e
comunhão com Deus, o qual leva a uma Como póde S. João estabelecer critério da verdadeira caridade fra-
terna um sihal incontrolá.vel, qual é o amor de Deus? O apóstolo
grande confiança fiJiaI. O teip.or, ao contrário, separa.
O cristão deve amar a Q"eus porque Ele nos amou primeiro (4,19), explicita (v. - 2s): a observância dos mandamentos de Deus é sinal
Pretender amar a Deus, seni amar aos irmãos, é mentirá. Como pode certo de que -existe caridade fraterna. O efeito supõe a causa. O cristão
amar-se o Deus invisível se hão se ama o próximo que Se vê? Final- que cumpre os mandamentos (efeito) possui o verdadeiro amor de Deus
mente, deve-se amar, pois e;dste um preceito do Senhor, o primeiro, (causa). Sempre que amamos a Deus - o que se prova observando
o maior, o único. Amar é ciimprir os preceitos de Deus, os quais se sua Lei - possuímos com certeza também o amor que nos une aos
resumem no de amar o próximo. É claro, devemos amar antes de tudo irmãos. Praticar os mandamentos é critério certo de que se ama a
a Deus. Todavia, no plano ':divino, é impossível amá-lo sem amar o Deus e ao próximo (2,3; 3,24). É um ideal ao qual se deve tender
próximo. com esforço, r pois o reino de Deus o exige. A porta que leva ao céu
João fala-nos da fé em Jesus Cristo e respectivas utilidades (5,l-13). é estreita (Mt 7,13). A vitória consiste em ser fiel até ao fim (5,4;
Crer na divindade de Cristo é nascer de Deus (la), é amar ·a seus cf. Rm 9,19.23). Este texto demonstra egregiamente o caráter so-
irmãos, filhos do mesmo Pai '(lb-2), é observar os mandaiilentos (v. 3) brenatural do amor ao próximo na Igreia cristã, amor que só pode
e vencer o mundo (4). A partir de 5,14 anuncia que a fé é a raiz, o existir nas almas virtuosas e unidas a Deus; Quais mandamentos (obras)?
pressuposto da caridade fraterna, a qual não pode existir sem o ver- João· não o diz, supõe-nos conhecidÚ~. Sb 6,18 dissera: O amor
dadeiro amor. A fé torna-se· ·critério de nossa filiação e esta constitui- consiste na .observância ·das leis. Cristo - insistira no cumprimento de
se em razão profunda do amor. Fé e caridade são correlatas: onde seus preceitos (2,3-6; 3,22ss; Jo 14,15.21.23; 15,10), visto que não
existe fé, há legítimo renascimento espiritual, dando lugar ao amor. basta escuta~ e crer nos seus ensinamentos, mas urge praticá-los (Mt
Entretanto a fé, como tal, é uma causa que predispõe para a graça 7.24). É o axioma evangélico das «obra~». é a conformidade com a
(GI 2,16; Rm l,16s; 3,22). · vontade de Deus. Para animar, S. João ·garante que os preceitos do
A fé, critério de filiação' divina (Jo 1,12), confessa qúe Jesus é o Senhor não são pesados. Com efeito Deus não impõe a seus filhos
Cristo, -0 Filho de Deus (5,1), o que significa acreditar ·na divindade carga demasiada. O Concílio de Trento, ~o ensejo desse texto, afirma
e na encarnação de Jesus (2,22; 4,2s; Jo JJ,27; 20,31), ccimo revelador que Deus não ordena coisas impossíveis (Dz 804.828). Já Filo acerta-

154 155


damente dissera: «Deus não pede nada de pesado, complicado, difícil, 14,1.30; 16,10.33). E o Espírito da verdade e atesta Cristo na lgreja com
senão o que é absolutamente simples e fácil: amá-lo como benfeHor seus carismas e sua ação santificadora.
(De spec. leg. 1, 299). Os preceitos de lJo são fáceis: é só crer na
Encarnação redentora de jesus, no amor do Pai e de Cristo para co- Bibliografia: T o m ã s d e A q u i n o, Suma Teológica; Ha a g- B
A use j o, Dicclonario de la Biblia (v. "propiciatorio"). Herder, Barcelona
or n -
1963;
nosco, é amar a Deus e ao próximo. Mole r o, F. R., Epistolas de San Juan, La Sagrada Escritura, Ili (NT), BAC/
A religião do AT se fundava particularmente no temor; - a do i\1adrid 1962; Salgue r o, j., Epistolas católicas, Biblia comentada, VII, BAC/
Madrid 1965; S pi e q, C., Agape, Ili, Paris 1959.
NT, no amor. jesus censurou nos fariseus o imporem fardos pesados
(Mt 23,4; Lc 11,46). Cristo, por sua vez, declara seu jugo leve e Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
suave (Mt 11,30). A lei antiga era pesada porque conscientizava do Santa Maria, RS
pecado e não dava forças para superá-lo (Rm 7). A fé de' Cristo unida
à caridade, ao invés, torna acessível o cumprimento da lci, conferindo
ainda forças para isso. Para quem ama, o preceito é fácil e delicioso Terceira Leitura: Jo 20,19-31
(Agost., PL, 35, 2033; 40, 448). O discípulo de Cristo já não é servo
mas amigo: vai ao Pai por amor, alegre. O caminho do amor facilita <t.Felizes os que crêem sem O ver»
a vida. A graça, que nos faz filhos de Deus, confere-nos outrossim
potencialidade para _observar o amor e vencer as dificuldades que ofe- Outras Pistas Exegêticas de Jo 20,19-31 e 20,19-23 na .Mesa da Palavra, Ano A,
rece o mu_ndo e o demónio contra tal preceito (v. 4; cf. 2,16). Dita e na REB 37 (1977/148 e 149) p. 2so~-2S3• e 329~-331•.
vitória se obtém pela fé, a exemplo de Cristo (.i\'lc 9,23; ]o 16,33; É opinião comum entre os exegetas que o quarto Evangelho ter-
Ef 6,15; Hb l l,33s; lJo 2,13; 4,4). E um estado de liberdade interior mina com 20,30-31 e que o c. 21 é um apêndice, certamente inspirado
que dá leveza à vida. e canónico.
No v. 5 aponta-se o objeto da fé: Jesus é o Filho de Deus. A Em 20,30-31 o autor resume o conteúdo de seu livrinho e esclarece
verdade que leva à vitória é crer em jesus, o Filho de Deus. Sem os leitores sobre a intenção com que ele o escreveu. Ele explica que
fé em Cristo não há filiação divina (5,1) e sem filiação não se terá pretendeu dar uma descrição e interpretação de alguns dos muitos
força para vencer. A fé fornece aos cristãos um ideal sublime, pelo sinais - o que não é o mesmo que «milagre»! - que jesus fez. O
qual hão de lutar, e o auxílio da graça divina. acréscimo «na presença dos seus discípulos» é uma alusão às teste-
munhas qualificadas e fidedignas dos sinais de Jesus (cf. ]o 15,27;
Insiste-se aqui na identidade do Jesus histórico com o Filho de Deus, uma
verdade fundamental do Crlstianlsmo. jesus veio ao mundo para cumprir a missão Lc 1,2; At 1,21s). O critério da escolha e da descrição dos sinais
redentora, recebida do Pai e realizada por melo da água e do sangue (v. ô). consistia na aptidão de suscitar e/ou fortalecer a fé na dignidade
"Agua" e "sangue" são meios de salvação (Jo 19,34ss), personificados por joão
quais testemunhas de que jesus é Pilho de Deus. A "água" aludiria ao batismo de messiânica e divina de jesus, fonte de vida para todos que n'Ele crêem.
Jesus e o "sangue", à sua morte de cruz. jesus manifestou aos homens sua missão Em 20,19-29 descrevem-se os últimos sinais de todos aqueles que
divina, no início de sua vida pâblica, quando no Batismo se ouviu a voz do Pai:
"Este é meu Filho muito amado" (l';lt 3,7; jo I,32ss). Esta proclamação divina, a foram aproveitados no decorrer do Evangelho. Todos os sinais ante-
descida do Espirita Santo, ao sair da água, testemunham e explicam sua missão riores prepararam e culminam nestes. Estes últimos realizaram-se no
divina. O "sangue" (:= morte de cruz) também testemunhou sua divindade com
vários milagres: rasgou-se o véti do templo, tremeu a terra, fenderam-se as rochas, primeiro (v. 19) e no segundo (v. 26) dos «primeiros dias da semana»
abriram-se os túmulos, ressuscitaram muitos santos... a ponto de os guardas e ou «domingos» (cf. Ap 1,10: «dia do Senhor»). É importante captar
o centurião, assombrados, reconhecerem que jesus deveras era o Filho de Deus a intenção do evangelista. Ele escreveu no fim do primeiro século. Du-
(Mt 27,51-54). Portanto, batismo e morte de jesus resumem sua vida e sua missão
salvífica. João acrescenta (v. 6) ainda que jesus "veio não só pela água, mas rante várias décadas as comunidades cristãs se reuniam no primeiro
pela água e pelo sangue", querendo significar que o mesmo jesus do Batismo foi dia da se.mana para celebrar a eucaristia e comemorar a ressurreição
quem morreu na cruz. E alusão aos erros de Cerinto e dos ps~udoprofetas, os
quais pretendiam isto: na cruz só morreu o homem jesus, não o f'ilho de Deus. do Senhor Jesus (At 20,7-12; lCor 16,2). Escrevendo o Evangelho, o
Outros exp:ícam esta passagem de modo diferente: Cristo teria vindo por melo evangelista colocou este costume na perspectiva das aparições de jesus
da "água" e do "sangue", saídos de seu costado, para testemunhar sua natureza
humana (Agostinho). Para outros, ainda, "água" e "sangue" seriam meros simbolos ressuscitado. A celebração dominical - ensina o evangelista nesta etio-
dos sacramentos do batismo e da eucaristia, os quais, a seu modo, atestariam o logia da «Missa Dominical» - tem as suas raízes na reunião vesper-
imenso amor de Cristo para com os homens e .sua divindade.
Individualmente, a I' explicação é mais justificável. Entretanto se concilia
tina no primeiro dia da semana em que jesus ressurgiu do sepulcro
bem com as outras, porquanto não se repelem: Cristo velo pelo batismo e pela e subiu para seu Pai, e na repetição desta reunião oito dias depois.
cruz, como pela água e pelo sangue - slmbolos dos sacramentos... S. Paulo Estas reuniões de jesus ressuscitado com os Seus discípulos são a
não associa o batismo com a morte de jesus?
inauguração das assembléias semanais das comunidades cristãs de todos
Ademais (V. 6) é posto o fundamento da fé: ela se estriba no tes- os tempos. Todas elas são assembléias em redor do Senhor ressusci-
temunho divino, mais precisamente no do Espírito Santo. .E critério na tado, em que Ele está tão realmente presente como naquelas primeiras.
discrição dos espíritos (4,2), é a chave para melhor entender a cari- Naqueles dois primeiros domingos Jesus veio .ainda de modo visível,
dade. O Espírito Santo atesta sem cessar, na Igreja, que Jesus é o depois de modo invisível. «Felizes, porém 1 os que crêem sem O ver»
Filho de Deus e Redentor. O próprio Cristo predissera tal testemunho (v. 29).
(Jo 15,26; 16,Sss; 8,13ss). O Espírito transforma os apóstolos, capa- O sentido da celebração litúrgica semanal é dado em três etapas,
citando-os para testemunhar Cristo até ao sangue. Além disso1 converte marcadas pela antiga saudação litúrgica «A paz esteja com vocês»,
o escândalo da cruz em vitória plena de jesus sobre o demônio (jo que se repete três vezes, como uma espécie de «antífona» (vv. 19.21.26).

156 • 157


Na primeira (v. 20), sublinha-se a «rea1is praesentia» de Jesus apesar Comumente entendemos que crer é aceitar como verdadeiro o
das portas fechadas. Jesus mostrar as mãos e os lados significa que que os outros dizem, sem prová-lo ou sem experimentá-lo por
é o próprio Jesus morto e ressuscitado que está presente, não somente si mesmo. E um ato intelectual sem base na experiência. Como
nesta primeira reunião do Senhor com os discipuJos, mas também em o crer se baseia no que outros afirmam, quem «Crê» pode ser
todas as demais assembléias litúrgicas.
Na segunda etapa (vv. 21-23), destaca-se a fundação da Igreja que considerado como um «Maria-vai-com-as-outras», sem persona-
se realiza em três atos: a comunicação da missão (v. 21b), do Espirita lidade para se apossar dos conhecimentos por sua própria atua-
Santo (v. 22) e do poder de perdoar e reter os pecados (v. 23). ção. «Ver para crer» torna-se um ideal. É estar disposto a aceitar
Esta fundação da Igreja nestes três atos é obra do Senhor morto e mesmo as coisas mais incríveis, desde que se possa verificar
ressuscitado, realizada no primeiro dos «primeiros dias da semana?J.
Ela não se repete, mas se renova e atualiza em cada celebração euca- com os próprios olhos, a partir da experiência, se de fato é
rística dominical em que se celebra a «memória» da mesma. assim. Um São Tomé realista, empirista ... tal a imagem vulgar
Na terceira etapa (vv. 26-29, preparada por vv. 24-25) realça-se e corrente.
que em todas as ceJebrações eucarísticas do «primeiro dia da semana» Bem diferente é o que o Evangelista nos quer dizer com
o Senhor morto e ressuscitado está tão rea1mente presente como na sua narrativa. Primeiramente porque Tomé não é modelo a ser
segunda celebração deste dia, em que Tomé podia pôr o dedo no
lugar das chagas. É a fé dos fiéis de todos os tempos que Jesus seguido, mas exemplo contra o qual precaver-se. Não é ele o
decJara bem-aventurada com as palavras; «Felizes os que crêem sem «bem-aventurado», o «feliz», mas os que não vêem e crêem.
Me ver!» Esta fé expressa-se na confissão Jitúrgica «Meu Senhor e Entretanto, esta atitude está bem distante da inocência ingênua
meu Deus!» Ela não é fé de segunda mão. É a mesma fé e a mesma que n.1s entrelinhas se atribui aos que não são como Tomé.
comunhão com o Senhor. O vivo contato com o Senhor é diferente,
mas não menos real. A diferença reside em como se deve entender o verbo «Crer».
Raul Rui ;s, O.F.M. Teologicamente crer não é simples aceitação por oitiva de um
Petrópolis, RJ fato esdrúxulo. Crer é em primeiro lugar entregar-se a um Tu,
empenhar-se com a totalidade de nosso eu pela causa de Outrem.
Tema Principal Crer não faz fechar os olhos; pelo contrário: abre-os para re-
conhecer em Cristo o sentido da vida, e assim leva a prostrar-
CRER É ENTREGAR-SE AO TU DE DEUS E DO PRóXIMO se e clamar: «Meu Senhor e meu Deus!» Crer traduz-se em ir
até o fim com Aquele por quem se opta. É uma relação pessoal
e, por isso, transforma-se em amor. Amar e crer são duas faces
Sugestões para a Homilia da mesma atitude. Crer, portanto, não se reduz a uma atividade
' intelectual. Crer é vida, práxis, atuação na história, a partir
Introdução daquele a quem se aderiu.

São Tomé entrou no linguajar de cada dia como símbolo de


2. Crer e observar os mandamentos
cet:cismo. «Sou como São Tomé: ver para crer». São Tomé é
considerado o homem com os pés na realidade que não se deixa Por isso a fé transborda em amor. E não só amor a Deus.
levar por sonhos. Graças a essa concepção popular, ele galgou Ou melhor: a fé transborda em amor a Deus no sentido cristão,
há pouco o posto de propagandista de sabão em pó. . . O «teste um amor que só chega a Deus, passando pelo irmão. É a
de São Tomé» desafiava o consumidor a experimentar as virtudes própria lógica da fé em jesus como Filho de Deus e Messias
de Orno ... que nos leva a unir amor a Deus e amor ao próximo. Só pôde
amar a Jesus de Nazaré, quem sabia amar a qualquer pessoa
Corpo humana por sua dignidade própria, mesmo no maior despoja-
mento. Pois o Filho de Deus perambulou como um pobre pelas
1. Crer
estradas da Palestina. Sem paradeiro nem pousada. Comeu com
O que não se pergunta é se o Evangelho de São João, de os pecadores e publicanos, falou às prostitutas, acolheu os mar-
onde a tradição popular haure sua figura de Tomé, a compreen- ginais. Só quem estava aberto ao amor às pessoas, real e sem
de de fato assim. O problema radica no próprio sentido de «crer». preconceitos, era capaz de amá-lo.

158 159
A própria lógica da fé em Jesus, Filho de Deus, nos manda seguir seus passos. Não viram a jesus também os fariseus?
unir inseparavelmente amor a Deus e aos irmãos. Nem pode ser Por acaso lhes serviu de algo? Mas quem segue as palavras
de outra maneira, quando em Cristo nos tornamos filhos de de Cristo, quem adere à sua pessoa no concreto da vida e na
Deus. Não há meio de amar o Pai, sem amar os filhos. E a construção da história humana, esse é feliz. Seus olhos viram
melhor forma de amar o Pai é amar os filhos. Fraternidade é mais que muitas «testemunhas oculares», pois souberam descobri-
a base de nossa relação com Deus; e a fé em Deus tem por lo, quando lhes vem ao encontro no pobre, no necessitado que
exigência indispensável a fraternidade. hoje em nosso continente é o estmturalmente pobre e necessitado.
Também aqui, como na primitiva Igreja de jerusalém, se
3. A fraternidade é concreta
trata de começar a construir fraternidade a partir das bases.
O encontro com Cristo no rosto do irmão abrirá os olhos e
Fraternidade não é castelo no ar, som oco, palavra nas o coração para a responsabilidade social numa ação transfor-
nuvens. Fraternidade se constrói na concretidade do econômico madora. E essa, em movimento progressivo, partindo da defesa
e do social. É ai que ela se torna verdade e deixa de ser retó- do direito mais elementar dos irmãos desamparados, chegará à
rica. Palpável e histórica, no terra-a-terra, é a fraternidade que transformaÇão global da sociedade. Nessa opção orientada por
a fé no Deus revelado em Cristo exige de nós. uma adesão profunda e viva a Cristo (= crer), seremos «felizes».
Os primeiros cristãos o entenderam. Por isso São Lucas Porque não vimos a atuação histórica de Jesus, mas captamos
os descreve unidos num só coração e numa só alma. Coração sua presença e o imperativo que decorre da opção por ele. Não
e alma que não se fundiam no sonho, mas na realidade econô- vimos, mas cremos.
Francisco Taborda, S.].
mica e social: «Ninguém considerava seu o que possuía, mas São Leopoldo, RS
tudo era comum entre eles» (At 4,32). «Não havia entre eles
indigente algum ... » (At 4,34). O Reino de Deus que é fra-
ternidade a partir do Pai, em verdade não se realiza pelo eco-
nômico, mas no econômico. E, enquanto perdurar a história,
só nele se torna mais do que palavreado oco.
Crer é amar. Amar a Deus é criar fraternidade, a partir
da qual o possamos invocar como Pai. E fraternidade se con-
cretiza num projeto social, político, econômico. Ao cerne mesmo •
do ser cristão pertence a responsabilidade política, a contri-
buição a um projeto histórico que aproxime a sociedade mais e
mais do ideal fraterno. Não se pode ser cristão sem quebrar as
estruturas injustas que impedem o amor a Deus, expressão de
nossa fé. Estmturas injustas impedem o amor a Deus? Eviden-
temente, na mesma medida em que são concretização e força
motriz do desamor ao próximo.

4. «Felizes os que não viram e creram-;

Quem lutar por «romper as cadeias injustas, desatar as


cordas do jugo, mandar embora livres os oprimidos, quebrar
toda espécie de jugo, repartir o alimento com quem tem fome,
der abrigo aos sem teto, vestir os maltrapilhos» (Is 58,6-7),
dá verdadeira expressão a sua fé. Podem não ter visto as obras
de Jesus, seus sinais, seus gestos. Que importa? Decisivo é
160 • 151
Os cristãos reconhecem no misterioso sofredor de Isaías (42; 49;
Terceiro Domingo da Páscoa 50; 52-53) o Servo de Javé, a pessoa de Jesus Cristo. Tencionam superar
a repugnância judaica por um Messias sofrer.lar (2,23; 8,32s; 17,3; Lc
Pistas Exegéticas 24,26; lPd 1,11). A glorificação que Deus lhe confere (v. 13) é sua
ressurreição com todas as conseqüências (2,32ss): agora é o Senhor!
E-lhe, outrossim, aplicado o título de «Autor (ou príncipe) da vida»
Primeira Leitura: At 3,t2a.13-15.17-19 (v. 15), em ant;tese ao assassino Barrabás, destruidor da mesma. A
comparação com Barrabás poderia levar a crer que se trata da vida
É o segundo discurso de Pedro perante o povo israelita. A pri- física. Entretanto, na perspectiva de Pedro trata-se, também e· sobre-
meira parte é mais apologética, fazendo ver que o milagre de curar tudo, da vida sobrenatural (fé, salvação). Aliás, Jesus falara de «Vida»
o coxo, à porta do templo (3,lss), não é obra dos ap?stolos, nem neste sentido (Jo 10,10.28; 17,2s). Hb 2,10 e 12,2 aponta Cristo como
mérito do enfermo, mas deve atribuir-se à fé em jesus Cristo (v. 16), «autor da salvação. . . e da fé». Sem ir tão longe, Pedro pouco depois,
entregue, renegado e crucificado pelos próprios judeus, a quem Deus perante o Sinédrio (5,31), em contexto análogo, parece dar a explicação
ressuscitou dentre os mortos - evento que .os apóstolos podem teste- autêntica, quando diz ser Jesus «autor da salvação ou príncipe que
munhar (vv. 12-16), isto é, a salvação de Deus em jesus Cristo. A nos salva» mais do que Moisés (7,25.35). De resto observe-se o para-
segunda parte, de caráter parenético, exorta os ouvintes ao arrepen- lelismo implícito entre Moisés e Cristo nos primeiros capítulos de Atos
dimento e à fé em Jesus Cristo, condição indispensável para participar (3,22; 7,35-53).
aos bens messiânicos (vv. 19-26), já que o Messias se destina antes O apelo para o arrependimento e para a conversão (v. 19) está
aos judeus. Para os antigos o non1e é inseparável da pessoa, é a em função da parusia (vv. 20s), e eles são necessários para merecer
essência, a força de uma pessoa ou divindade. Crer no nome de Jesus a Bênção de Deus por meio de Jesus Cristo e o perdão dos pecados.
é o mesmo que crer em Jesus. O milagre dá ensejo à manifestação Sinal deles é o batismo. A conversão supõe uma transformação inte-
da palavra. Foi o que aconteceu em Pentecostes e amiúde nos Evan-
gelhos:· fatos exteriores e palavras explicativas unem-se para eviden-
• rior do homem: para os pagãos é voltar-se sinceramente ao verdadeiro
ciar a salvação. Deus e abandonar os ídolos (lTs 1,9; OI 4,9; At 14,15; 15,19; 26,18-20),
para os judeus é aceitar Jesus como Senhor (At 9,35; 1Cor 3,16).
Entre as duas partes figura uma «Captatio benevolentiae», atenuan- Já no AT há referências à conversão. A novidade na proclamação
do a culpa dos judeus, porquanto agiram por ignorância (do mistério da 1greja consiste no entrelaçamento da conversão radical e do perdão
divino de Cristo, de sua niissão), pensando tratar-se de um blasfemo com a obra salvífica de Jesus Cristo. Aderindo a Cristo pela fé e
e transgressor da Lei. Sem aperceber-se, contribuíram para o cumpri- pelo batismo efetua-se a justificação portadora de salvação. A remissão
mento das profecias relativas ao Messias sofredor (Is 52,13-53,12; SI de pecados e a consecução da salvação estão vinculadas ao sacrifício
21,2-19). «Pela boca de todos os profetas»... Os profetas formam expiatório de Cristo (Lc 22,19s).
um todo, un1a unidade. Não equivale dizer que o sofrimento de Cristo Ter-se-á Pedro lembrado de sua própria negação ao dizer: «Vós
se encontra em todos e em cada um deles. Assim fez Jesus em Lc renegastes o Santo ... »? Certo, não terá esquecido seu deslize, inclu-
24,26s, At 10,43; assim fez Pedro (!Pd l,11). É o tradicional argu- sive deve ter-se equiparado aos ouvintes («Deus de nossos pais»).
mento das profecias. De maneira análoga falou Paulo em Antioquia Talvez se deva a isto o fato de falar tão francamente do pecado contra
da Pisídia (13,27; cf. Rm 10,3; lCor 2,7s; l,23s), inclusive aplicando Jesus. O que, porém, mais conta é testemunhar o feito salvífico de Deus
a si tal ignorância para escusar-se da antiga incredulidade ( 1Tn1 11 13). em Jesus Cristo: «Deus o ressuscitou.; .. Disto. som~s. te~temunhas~ (y.
Semelhante desculpa aduziram Jesus, na cruz, para con1 os que o 15). A afirmação da culpa humana esta hgada a testif1caçao do des1gn10
haviam crucificado (Lc 23,34) e Estêvão para com os que o apedre- divino que se cumpriu nos sofrimentos de Cristo.
javam (At 7,60). Naturalmente essa ignorância não os isentou de toda
a falta porque foi ignorância culpável: Jesus provara suficientemente Bibliografia: Cf. Domingo de Páscoa, J:i. leitura.
sua mi~são divina (jo 15,22ss; 19 11). Pedro submeteu a cura milagrosa
1

não a um suposto seu poder pessoal, mas à ação de Deus através de Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C.
Jesus Cristo. Santa Maria, RS
Segue uma exposição comovente da história da salvação, na qual
se sublima o ato salvífico de Deus por intermédio de Cristo. É um Segunda Leitura: ljo 2,1-5a
brado afetuoso à mentalidade israelita, um apelo envolvente à consciên-
cia religiosa do Povo eleito. Deus não é Deus dos mortos. É o Deus Ao iniciar a carta, João dá um testemunho preclaro e pessoal
de Abraão, de Isaac, de Jacó e de nossos antepassados. É o Deus sobre Jesus. Como -Deus é luz, o cristão deve caminhar na luz, fazendo
da A1iança, um Deus pessoa que falou a Moisés, o Deus vivo. Aparecem o bem e rompendo com o mal. Com efeito, Cristo nos purificou com
aqui também os tjtu1os messiânicos de Jesus: o «Servo de Deus», o seu Sangue, mas é necessário purificar-nos continuamente (isto contra
«Santo», o «Justo» (v. 14; cf. 2,27; 4,27; 4 130; 7,52; 22,14; lPd 3,18; os hereges e gnósticos que se diziam impecáveis). Dizer que não se
ljo 2,J;, Mt 27,19; 12,18; Lc 1,35; 4,34; 23,47; jo 6,69; Is 42,lss; 53,11; tem pecado é enganar-se a si mesmo, é faltar à verdade (1,8-10). A

'
1
Jr 23,5; SI 15,10) muito usados pelos primeiros cristãos. Note-se que
o Cristianismo está ainda muito influenciado pelo judaísmo.

162 1
auto-suficiência gera o auto-engano. Se pretendermos ser impecáveis, nos
seduzimos e enganamos. Se nos obcecamos não poderemos ver a luz,

163
1
!
a verdade. Ninguém pode dizer-se livre de pecado. A universalidade e incessante, porque é o Justo. Dissera Paulo: «Deus o destinou para
dele consta do AT (lRs 8,46; Jó 4,17; 15,14; Pr 20,9; Ecl 7,20; Eclo ser, pelo seu Sangue, vítima de propiciação mediante a fé ... » (Rm 3.25).
19,17; SI 142,2) e do NT (Mt 6,12; Rm 3,9-18; !Cor 4,4; Tg 3,2). foi
confirmada pelo Concilio de Trento (Dz 833). João parece referir-se a "Hi1astérlon"/"hilasmõs" na LXX traduz o hebraico "kapporetb", a tampa, re-
pecados pessoais e atuais (cf. Tg 3,2), graves ou leves, não perdoados vestida de ouro, que recobria a Arca da Aliança, a peça mais importante e_ signi-
ficativa do santuârio. Teologicamente "kapporeth" simbolizava a presença de Javé
porque ainda não confessados. e aquilo que realizava a reconciliação no dia da expiação (Yõm Kippur). Seria o
centro do Santo dos Santos, o trono de Deus, onde residia Javé, lugar inacesslvel
Em vez de iludir-se com os pecados, melhor é reconhecê-los e con- ao povo somente aberto ao Sumo Sacerdote. Ai Deus se revelava e comunicava
fessá-los (1,9). Como Tiago (5,16), também S. João aqui parece referir- com o Povo; ai perdoava os pecados . e mostrav~ . S!Ja misericõrdi~. Por. isso, tornou-
se 0 centro do culto mosaico, onde o sacnf1c10 da expiaçao obtmha toda a
se a uma prática de confissão em uso entre os judeus e, depois, entre eficácia aplacando a Deus. No NT, no. sacrifício da cruz, Cristo é para sempre
os cristãos (Me 1,5; Didaquê 4,14; 14,1). nosso ~propiciatório" pelo qual nos reconciliamos com Deus. jesus r.ealizou em
sua pessoa a propiciação. prefigurada !'º "kapporeth" da Are~. asper~1do com o
san!!lle das vitimas. A purlhcação mosaica com o sangue e a nitercessao do sumo
Quis-se ver nesta passagerii (1,9) uma alusão à confissão sacramental, iã que sacêrdote, no dia da expiação, Jesus as concretizou de modo (mico e superior na
S joão ê quem recorda o poder conferido aos apóstolos de perdoar pecados (Jo paixão e morte, e contin,ua fazendo-o no céu para sempre e para todos (Ap 5,6;
2Ó 23). Deveras, hã um paralelo literal evidente. Entretanto, a exegese antiga vê cf. ST, III, q. 48, a. 2).
aq'ui apenas uma acusação humilde e interior dos pecados diante de Deus. O
Concilio de Trento, ao falar da instituição dã Penitência, aduz IJo 1,9 e Tg !J,16 Portanto, todos podem salvar-se contanto que saibam aproveitar do
sem, porêm, definir-lhes o sentido exato (Dz 899). A partir de S. Roberto Belarm!no,
muitos teólogos inferem dele (J,9) a confissão sacramental. É- fazer o texto dizer perdão que se lhes oferece (4,14; Jo 3,16-21; 4,42; 12,47; JTm 2,4ss).
mais do que intentava. i\lelhor ê ver nele a necessidade de confessar noss.os peca- S. Jo.ão responde aos gnósticos, que admitiam a eficácia redentora de
dos, sem especificar onde e como. Deus perdoa a quem sincera . e .hunuldemente
pede perdão, porque ê fiel e justo (Ap 16,5ss; Hb 10,23; 11,11), m1sencordioso, em Cristo só para os bons. Nos vv. 3-5 se discerne paradoxalmente quem
virtude de seu Sangue redentor (l,7; 2,2). são os filhos de Deus. Para ser filho de Deus não basta fugir do pe-
cado, mas é preciso guardar seus mandamentos, peculiarmente o do
Todos somos pecadores, mesmo depois da justificação. Negá-lo é amor (1,5ss). Este é o critério dos verdadeiros conhecedores de Deus
tratar a Deus de mentiroso (v. 10), já que a Escritura a toda hora (contra os gnósticos). Não é suficiente conhecer a Deus em teoria,
afirma ser o homem pecador. Quem não se reconhece tal, priva-se da como os filósofos. Urge também conhecê-lo experimentalmente, mediante
luz que lhe subministraria a Palavra de Deus, única a dizer a ver- uma· fé viva, que envo1va o homem todo para uni-lo eficazmente a Deus,
dade e a nos libertar. - Até. aqui o contexto antecedente. tornando-se assim norma de vida. «Conhecer~ significa «Saber» e tam-
A pecabilidade universal é conseqüência da fragilidade humana. Tal bém «saborear algo» ou «estar u~ido a e1e» (cf. 2Cor 13,6; OI 4,9).
condição não autoriza a pessimismos ou desesperos. João, falando ao Conhecer a Deus é participar de sua vida, é estar em comunhão com
círculo íntimo dos fiéis (note-se o diminutivo de afeto: «meus filhi- Ele.
nhos»), previne de que não se peque, mas, se acontecer, sugere a espe- Destarte, o conhecimento de Deus não pode andar separado da prá-
rança: Jesus Cristo, o Justo, é nosso intercessor e defensor junto a tica dos mandamentos (3,5). O mesmo se diz em Tg 2,14ss: a fé está
• Deus Pai (2,l), advogando nossa causa, como vítima de nossos pe- Jigada às obras. Em Paulo o que vale na vida cristã é a fé que age •
cados. O cristão, ciente de sua fraqueza, deve recorrer constantemente • peta. caridade (GJ 5,6). São conceitos que servem para diferenciar o
a tal Advogado e a seu Sangue propiciatório. verdadeiro cristão do herege. Nota-se o tom po1êmico contra os gnós-
ticos: o conhecimento, meramente especulativo de Deus, se não leva
Filo aclara o que seja o "paráclito", referindo-se com este te~mo ora ao Sumo à prática dos preceitos, nada vale. Não há conhecimento verdadeiro
Sacerdote munido do peitoral do julgamento (Ex 28,29). o qual intercede na terra
por Jsraei ora ao Verbo que dá eficãcia no cêu à intercessão do S. Sacerdote na de Deus, nem comunhão com Ele sem a conformidade com sua vontade.
terra (De' vita M~sis, 3, 14, 155). Quem obedece aos mandamentos prova Que deveras conhece a Deus.
Pretender conhecer a Deus sem_ a prática dos preceitos é ser men-
Jesus, ainda em vida, prometera este outro defenso~ junto ao ~ai, tiroso (v. 4), é como aquele que está nas trevas e pretende estar em
o Paráclito (Jo 14,16), sinal de_ que Ele . o era. lambem. A doutrma plena luz (1,6). João se refere aos falsos doutores que ostentavam
consoladora da intercessão de Cristo nos ceus fazia parte da catequese sua ciência (gnosis), mas faltavam aos mais~ elementares deveres da
antiga (Rm 8.34; Hb 4,14ss; 7,24s; 9,24; !Tm 2,5). Fácil é pecar, vida cristã. Sob pretexto de sua liberdade, obtida mediante a gnose,
porém. consola saber que há um intercessor, poderoso e amigo; logo, davam largas à libertinagem moral, à rebelião contra a Lei de Deus.
não se trata de um Juiz severo, senão de um Pai amável, que escuta O Apóstolo os chama de embusteiros, dada a falsidade de sua ciência,
seu Filho quando suplica por nós sem cessar. Não sem mérito, porque destituída da graça divina, única a_ habilitar para o reto conhecimento
jesus é ~ justo: não ten1 pecado, é a própria santidade, é o Filho de de Deus. Este colima para o amor, que por sua vez se explicita pela
Deus. Sua intercessão, em decorrência, é infinitamente eficaz. vivência dos mandamentos (Jo 14,15-23). A obediência à Palavra supõe
Ademais, Jesus é a expiação pelos -nossos pecados e. pel~s. do mundo atos e esforços que plenificam o amor a Deus. Aqui a caridade goza
inteiro. Expiação ou propiciação (gr.: «hilasmós» ou «hl1astenon»; 4,1~) de primazia sobre o conhecimento e, em Paulo, sobre a fé ( 1Cor
significa uma -situação definitiva de vítima pelos nossos pecados, atraves 8,2s; 13).
de seu Sangue e de seu sacrifício que nos reconciJiou com Deus. Uma O falso cristão (v. 5) difere do autêntico: este cumpre e guarda
vez que jesus se ofereceu a si mesmo. em sacrifício expiatório (Is 52,13- a Palavra divina. «Guardar a Palavra» diz mais do que «guardar os
53,12), agora pode aplacar ao Pai, apresentando seu Sangue derramado seus mandamentos», porquanto a Palavra de Deus enfeixa toda a Re-
por nós pecadores (Hb 9,11-14; Ap 1,5). E o faz de modo permanente velação e não apenas alguns mandamentos (Jo 14,24; Ap 22,7.9). A cari•
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dade, em quem guarda a Palavra de Deus, é bem mais perfeita do que de seu desaparecimento. A narração da apar1çao aos apóstolos é uma
naquele que sô observa alguns preceitos. Aí está o critério do lídimo acumulação de provas da identidade do aparecido - primeiro confun-
cristão (l,lO; 2,14; Jo 5,38; 8,31). dido com um fantasma! - com jesus de Nazaré crucificado.
A caridade, virtude essencial no Cristianismo, refulge nos escritos Um terceiro critério da divisão em três partes encontra-se nas
joaninos, em especial no Evangelho e na 1~ Carta. A caridade de I]o instruções que as três categorias de pessoas recebem. Também nestas
é uma realidade sobrenatural ontológica, conferida por Deus ao homem, instruções pode-se constatar um clímax. As mulheres são ensinadas pelos
não apenas uma resposta psicológica ditada pela gratidão humana. Assim anjos de que jesus mesmo, antes de sua morte, já instruiu os discí-
a caridade do homem é uma verdadeira participação· da caridade incria- pulos de que a sua morte não seria o fim de sua história. Faz-se
da -de Deus. «A caridade é a própria essência divina, com a qual ·par- uma· referência à predição da paixão, morte e ressurreição que jesus
ticipadamente amamos de maneira formal ao próximo (ST, II-II, q. 23, proferiu durante a sua vida terrestre (v. 7j cf. 9,22). Duas vezes insiste-
a. 2). É um verdadeiro dom real de Deus, que o homem não recebe se nesta «memória» do passado (vv. 6 e 8). No segundo painel é o
passivamente, mas aceita livremente, cooperando com Ele com todas próprio jesus que retoma esta predição. Mas os discípulos de Emaús
as forças. Deus ama primeiro, confere ao homem a capacidade de amar
a Deus e ao próximo. Na caridade do homem se unem o elemento somente recebem estas instruções de jesus depois de terem dado a
divino e o humano: o amor de Deus para o homem e o amor do versão deles da história de Jesus (vv. 19-24). Esta versão é, de fato,
homem para Deus. Tal amor é «perfeito» (v. 5), isto é, em sentido um resumo de todo o Evangelho anterior, inclusive dos dados do pri"."
escatológico e finalístico, - em sentido de perfeição à grega (por meiro painel do triplico (vv. 22-24 = vv. 1-12!). Por isso não se espera
evolução), - ou em sentido de estado perfeito pleno, graças ao ele- uma reação tão vio1enta de jesus a esta versão dos fatos. A repreensão
mento divino e humano. · · de Jesus: «Ô insensatos e lentos de coração ... » (v. 25) só pode signi"."
ficar que à história como ela foi contada pelos disc;pulos faltava o
Bibliografia: Cf. 29 Domingo de Páscoa, 2• leitura. essencia1, a saber, a chave de seu entendimento e de sua interpre-
tação. É o próprio jesus ressucitado que fornece esta chave, ensinando
Pe. Matheus F. Giuliaui, S.A.C. a necessidade salvífica da paixão e demonstrando como os aconteci-
Santa Maria, RS mentos pascais de sua morte e ressurreição estavam inscritos nos planos
de Deus, revelados nas Escrituras (vv. 26-27).
Terceira Leitura: Lc 24,85-48 Na instrucão dos apóstolos (vv. 44-49) Jesus ressuscitado repete,
primeiro, a inStrução dada aos discípulos de Emaí1s (v. 44 = v. 27);
«Mostrou-lhes as mãos e os .péS» depois, a instrução dada às mulheres (v. 46b = v. 7;_ cf. v .. 26). Por
fim há na instrução aos onze um elemento novo, nao mais voltado
• O último capítulo do Evangelho de Lucas (Lc 24) divide-se em
três parles: vv. t-12.13-35.36-53. Esta divisão ·baseia-se em diversos
par~ o passado, mas para o futuro: acrescenta-se que esta história
há de ser pregada a todas as nações (v. 47). Ele declara os apóstolos
critérios. O conjunto todo apresenta-se como um tríptico ou quadro de as ieslemunhas qualificadas desta história (v. 48). E promete o Espi-
três painéis.
Um primeiro critério para distinguir os painéis é aquele das pes- rito, ·necessário para a devida execução desta missão (v. 49).
soas que desempenham um papel. Há três grupos diferentes. No pri- Como já foi dlto, também nestas instruções existe um çlimax muito·
meiro painel (24,1-12) apar~cem algumas daquelas mulheres que acom- claro acentuado pelas repetições e progressos em cada painel. Não
panhavam jesus durante a sua vida pública e que «tinham vindo com há ~ais dúvida de que Lucas compôs este Ciipítulo final de seu Evan-
Jesus da Galiléia> (e!. 8,1-3; 23,55). No segundo painel (24,13-35) geJhO com muito cuidado. Parece que Lucas, pelo modo de estruturá-lo,
encontram-se dois representantt!s dos setenta (e dois) discípulos que quis dizer que a figura de jesus e as vicissitudes de sua história s~­
Jesus mandou à sua frente (e!. 10,1-20). No terceiro painel (24,36-53) mente são inteligiveis e relevantes para os discipulos à luz da re~surre1-
domina o grupo dos onze apóstolos. Constat~-se um certo clímax nesta ção e, mais ainda, à luz da paJavra e da presença do ressuscitado.
seqüência de grupos de pessoas. ~ Talvez exista um quarto critério para distinguir os painéis. A reação
Um segundo critério é fornecido pelas aparições. Distinguem-se três à primeira aparição consiste somente em descrença . (~.. 11). ~ue a
tipos de aparições, um para cada paiD;el. As mulheres não aparece o fé em Jesus e a interpretação adequada de sua hi~toria supo_em. a
próprio jesus ressuscitado, mas «dois homens com veste fulgurante» presença do próprio ressuscitado - que não se realizou no primeiro
(v. 4) ou anjos (v. 23). Aos discípulos de Emaús aparece jesus, mas caso quando somente apareceram anjos! - Lucas sugere P.elo fato
Ele não é reconhecido. Nó próprio momento em que O reconheceram, de que os olhos dos discípulos de Emaús somente se abriram no
Ele desapareceu. A aparição de Jesus aos apóstolos é a mais evidente: momento em que jesus «tomou o pão, o abençoou, depois partiu e
. os onze são convidados a ver e apalpar as mãos e os pés de Jesus distribuiu a eles» (v. 30). Trata-se do gesto eucarístico, já comum
e Ele come à vista deles. quando Lucas escreveu este capítulo. Que a devida _pregação da his~ó­
-Como na seqüência dos diversos grupos de pessoas existe nesta
seqüência das aparições um clímax inegável. As mulheres são informa- ria de jesus, expressão da fé adequada, su~õe uma presença esp~~1a1
das do evento da ressurreição; o dois discípulos gozam da presença do Senhor ressuscitado, encontra a sua expressao na promessa do Espirita.
de jesus ressuscitado, mas não O identificam a não ser no momento

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' O terceiro painel: jesus e os apóstolos: vv. 36-53 Tema Principal


No terceiro painel o evangelista quer demonstrar a identidade de A palavra de Deus nos é · proclamada para que a gente tenha
jesus ressuscitado com o jesus da vida pública. Para isso ele recorreu fé em Cristo ressuscitado: ele está na glória do Pai, na sua amizade.
o fatos e ditos. A fatos, porque Jesus mostrou mãos e pés, marcados Ele se mostra presente no meio de nós para que, crendo, sejamos
pelas chagas, e comeu alguma coisa diante deles. A ditos, porque Jesus perdoados dos nossos pecados. Mesmo ofendido pelos nossos pecados,
retomou as predições da paixão e ressurreição proferidas durante a ele nunca se afasta de nós, mas vem chamar·nos para a conversão.
vida p~blica (e!. Lc ?,22.44; 17,25; 18,31-33). 'É este Jesus morto e Vejamos em jesus que ressuscitou, o amigo.
ressuscitado, que admite de novo os apóstolos à sua comensalidade Mas somos chamados a não pecar mais. Sua Palavra e seu modo
e comunhão - o que representa um sinal efetivo ou sacramento de de viver nos fazem evitar o pecado.
perdão -, é este Jesus que encarrega os apóstolos com a missão de Ouvir a palavra de Deus perdoa nossos pecados e também nos leva
pregar a todos os povos a penitência e a remissão dos pecados em Seu a viver sem .cometer o pecado.
nome (v. 47).
Eles devem pregar esta mensagem, colocando-a nas perspectivas O conteúdo das leituras
da história da salvação como esta está anotada em toda a Bíblia nos
livros de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. ' - A Palavra de Deus é clara: para obter o perdão dos pecados
Lucas conhece três etapas na formação dos apóstolos. A primeira é preciso mudar de vida, voltar para Deus (1' Leitura). Só a cegueira
coincide com. o ministério terrestre de Jesus (v. 44) antes da morte; da ignorância pode levar à rejeição daquele que é justo e santo e
a segunda situa-se durante os quarenta dias entre a ressurreição e a vem justamente para que sejamos perdoados de nossos pecados e nos
ascensão (vv. 45-48; cf. At 1,1-11); a terceira começa no dia de Pen- tornemos santos e justos como o Cristo. Quem condena uma pessoa que
tecostes com a missão do Espírito Santo (v. 49a). O mestre que dá nunca fez nenhum mal? Talvez aqueles que não aprenderam a praticar
e?ta for!11a~ão_ é o Jesus mortal, o Jesus ressuscitado e o Jesus entro- o bem.
nizado a d1te1ta do Pai (e!. At 2,33). - João (2' Leitura) com especial carinho chama os cristãos de
Comparando-se vv. 44-48 com a parte querigmática dos discursos «meus filhinhoS» e logo afirma que «escreve. . . para que não cometam
dos Atos dos Apóstolos (p. ex., At 2,22-24.38; 3,13-19; 5,30-32), vê-se pecado». Sair da ignorância é reconhecer que Jesus é justo; sua vida
que Lucas acentua muito que Jesus mesmo está à origem da pregação traz lições. Mas não basta repetir as palavras de Jesus nem mesmo
da lgreja pós-pascaJ. Isto quer dizer, ele sublinha que a corrente de é suficiente aceitar que são verdadeiras. Quem «conhece» que o ensi-
tradição que vive na Jgreja não começou com os apóstolos mas com namento é certo e não obedece, é mentiroso. Mentiroso é o pouco que
o próprio Senhor ressuscitado (cf. OI 1,1.11.15ss). Foi o Senhor ressus- se pode dizer neste caso. Seria muita maldade no coração querer errar
citado que abriu o espírito dos discípulos para que compreendessem de propósito; então a gente prefere se enganar, quer dizer: mentir
as Escrituras (v. 45). A interpretação adequada das Escrituras não para si mesmo. É claro que, com isso, se pretende mentir para Deus.
era,. pois, uma questão de teologia, mas de revelação. Nem o Jesus IssoJ porém, é impossível.
mortal conseguiu abrir os olhos dos discípulos mais íntimos para a - O Evangelho insiste que é preciso crer e fazer experiência de
Sua verdadeira missão. Foi o Senhor ressuscitado que lhes revelou o Jesus, sobretudo de sua ressurreição e de sua vida em Deus, para
sentido da Cruz (v. 46). Não existe prova mais clara de que a fé no acolher a mensagem de perdão que ele traz. Mas Jesus ressuscitado
Messias de Deus exige mudança de mentalidade e remissão dos pecados não aparece para cada um de nós. É preciso fazer uma experiência
(v. 47). A revelação de Deus em Jesus revela de um modo assustador pessoal e contá-la aos outros. Mesmo assim, quem ainda não fez expe-
a incapacidade e indignidade do homem diante do divino. Mas ela não riência de Jesus vivo e presente se assusta se alguém aparece dizendo
foi dada para condenar e sim para salvar o mundo. Jesus é o salvador «A paz esteja convosco». Ficando no pecado não se pode conhecer
de todas as nações (v. 47b). Para que a salvação alcance realmente a paz. Pela remissão dos pecados, voltando para Deus, mudando de
a todas elas, E1e encarrega os apóstolos de serem testemunhas desta vida, a gente entende que não é preciso tremer. A paz de jesus estará
Boa-Nova (v. 48). em nós. Não cometendo mais o pecado, a paz permanece em nós e já
Jesus despede-se deles com uma promessa (v. 49) e com uma podemos dar testemunho dela.
bênção (vv. 50-51). Por isso esta despedida não causa tristeza pela
separação mas «grande júbilo> (v. 52) e· <louvor a Deus» (v. 53).
A ida ?e Jesus _não é o fim de uma esperança lograda (cf. v. 21), Sugestões para a Homilia
mas a inauguraçao de uma nova etapa da História da Salvação a do
Espírito e da Igreja. '
Introdução
Bibliografia: Os comentários de R e n g s t o r 1 P J u m m e r \V i k e n h a u s e r
S tu h 1 m u e 1 J e r. Lc 24.13-35 foi comentado ~a J\1esa da Palavra, Ano A. p:
218-220; ai outras indicações bibliogrâficas. Os textos da Palavra de Deus, hoje lidos, nos fazem refletir
Raul Ruijs, 0.F.M. sobre 3 comportamentos: a ignorância - causa de tantos males,
Petrópolis, RJ o conhecer por experiência - que leva a não cometer o pe-
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cado, e o testemunho de que, com a rem1ssao dos pecados, Outros discípulos haviam tratado o Cristo ressuscitado como
encontramos a paz. Vejamos, rapidamente, cada um destes um peregrino, ou melhor, um estrangeiro. Depois de terem apren-
comportamentos. dido os ensinamentos das Escrituras, explicadas pelo próprio
Jesus, o reconheceram «num gesto de partir o pão». Viram
Corpo como o saber pela explicação dos profetas é muito diferente
do «Conhecer» pela presença que se revela. Eles contam sua
1. A ignorância, causa dos males experiência mas os outros discípulos não prestam atenção. Tanto
assim que, ao ouvirem aquela saudação bem característica do
E preciso reconhecer e denunciar os males. Matar alguém, mestre: «A paz esteja com vocês», julgaram ver e ouvir um
condenar o inocente, viver na injustiça, oprimir os mais fracos fantasma. Quantas vezes somos semelhantes aos discípulos: o
e tantos outros males semelhantes, todos percebem. Mas a igno- normal seria a gente ouvir boas referências aos nossos irmãos.
rância faz dizer que podemos continuar fazendo tais coisas. Até Mas estamos ·tão desacostumados com isso que julgamos ter
Pilatos, que não tinha tanta instrução sobre o verdadeiro Deus uma visão quando nos contam boas notícias; as coisas erradas,
dos antepassados do povo judeu, já havia decidido soltar Jesus. mesmo não verdadeiras, sempre deixam marca em nós. Ao menos
Mas Pedro denuncia o povo por ter condenado Jesus. Insiste no pairam dúvidas sobre as pessoas que sofrem calúnias. Até a
fato de reconhecerem que foram eles os responsáveis pela morte sociedade em que vivemos parece ter mudado o princípio fun-
de Jesus. Primeiro passo para a conversão: reconhecer que somos damental do direito: «o réu precisa ter sua suposta culpa com-
responsáveis pelos males existentes. A tendência é sempre achar provada para ser condenado». Hoje, gente é presa, banida, jul-
que os outros são responsáveis. Um exemplo: discutia-se sobre gada, desprezada. . . e depois se verifica que era inocente. São
a paz no mundo. Alguém levantou-se e disse: «eu não sei o centenas. Quantas prisões preventivas não indenizadas!
que os grandes vão fazer, mas eu quero a paz no mundo. E O Ressuscitado conhece bem as pessoas humanas. Não se
vou começar. Como? Na minha casa vou encontrar o caminho irrita porque os discípulos não acreditam. Nem mesmo que o
da paz verdadeira. Minha casa está no mundo. Assim o mundo chamem de «fantasma». Leva-os à experiência: mostra pés e
terá um pouco mais de paz». Tratava-se de uma pessoa analfa- mãos. Olhem, toquem. . . Pede peixe e come; fala com eles
beta, mas não ignorante. para que prestem atenção às Escrituras e façam a experiência
Ignorância é ficar como está, sem ver os erros. Os judeus de que isto que fora predito está acontecendo. Só assim acolhem
da época de Jesus, e todos nós, somos responsáveis pelos males a «mensagem do perdão dos pecados». São João convida os
existentes. Se nos recusarmos a aceitar isso, somos ignorantes. «filhinhos» a fazerem a experiência de obedecerem à Palavra
Mas Pedro não pára nisso. Ignorância não traz culpa. «Vocês de Jesus, de a colocarem em prática e assim chegarem ao «Co-
não são culpados» muito embora o pecado da morte de Jesus nhecimento». Quem conhece e não pratíca, mente para si mesmo.
e tantos outros pecados estejam aí, diante de nossos olhos. Quem põe em prática o que perdeu, conhece por experiência
«Convertam-se, mudem de vida, voltem para Deus e os pecados como é bom tornar-se justo como Jesus «O nosso Justo». E «não
serão remidos». comete mais o pecado» de rejeitá-lo. A rejeição é fruto da igno-
rância. Havendo conversão, mudança de vida, voita para Deus ...
há perdão dos pecados.
2. O conhecimento - para não pecar
1 Muitas coisas a gente sabe porque ouviu dizer, mas ninguém 3. Testemunhar - para encontrar a paz
! está disposto a dar a vida pelo que ouviu dizer. Responsáveis
mesmo pelas «fofocas» e também pelas verdades são aqueles A ignorância leva à rejeição. O conhecimento tira da vida
que nos disseram. Não se trata de apenas «saber». E preciso fa- mentirosa e perdoa os pecados. O testemunho permite encontrar
zer a própria experiência numa dinâmica de con-viver, de «saber a paz do Cristo. E a dinâmica da experiência humana. E tam-
com» quem aprendeu profundamente. Conhecer é perceber com bém o processo do crescimento na fé. O testemunho dos discí-
o íntimo do coração a realidade que se compreendeu com a pulos de Cristo não produz a fé. Esta é dom do Cristo ressusci-
mente desligada do restante da pessoa. tado. Ele é quem diz: «A paz esteja convosco». Mas mostrando
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com pés que andam para fazer o bem, com mãos que se abrem
generosamente, repartindo com os outros a comida, um peixe Quarto Domingo da Páscoa
apenas. . . entendemos aquilo que lemos nas Escrituras. Cristo
apareceu para abrir os olhos dos discípulos e assim deixarem de
ver fantasmas onde havia um verdadeiro homem que se entre- Pistas Exegéticas
gou por amor, para a remissão dos pecados. Esses mesmos
discípulos se tornam os anunciadores, aqueles que vão contar Primeira Leitura: At 4,8-12
sua. experiência para que outros façam a mesma experiência. Pedro e João, retidos, estão ante o Sinédrio, cuja autoridade não
Ass m lodos encontrarão a paz. Hoje, em nome do Cristo a desconhecem, o qual lhes pede justificativas de sua pregação cristã.
Igreja diz ao mundo: «A paz esteja ... » O mundo pensa que O milagre do coxo, junto à porta «Formosa», deu o que fazer às auto-
ela é fan!asma. Mas a verdade é que a Igreja quer a paz para ridades religiosas judaicas: o fato era evidente (3,7ssi 4,14ss) e, por
outra, elas obstinavam-se a crer. Crescia assombrosamente o número
todos os povos e luta por isso. Sofre também perseguições, de adeptos da nova religião que punha em perigo a mosaica. Não
mas não se acovarda. João Paulo li é testemunho eloqüente restava senão encerrar a questão e intimar os apóstolos a não mais
dis~o e a imprensa mundial lhe confere esta autoridade, já re- pregar. Ao que Pedro e João responderam com delicadeza e franqueza
cebida de Cristo. não ser possivel calar, porquanto fazia-se mister obedecer a Deus,
antes que aos homens (4,19s; 5,29). Embora devessem obedecer às auto-
Conclusão ridades legitimas (lPd 2,13s; Rm 13,1-7; TI 3,1), tinham ordem de
pregar o Evangelho (1,8; Mt 28,19ss; Lc 24,47). Contra uma ordem
Perdão dos pecados, paz e Eucaristia expressa de Deus não valem leis humanas; à pergunta tios sinedritas
sobre a autoridade e jurisdição dos apóstolos em matéria de religião,
Nesta liturgia da Palavra ouvimos que somos ignorantes Pedro, não como simples homem, porém cheio do Espírito Santo, res-
e por isso rejeitamos o perdão e a paz. Parece que estamos pondeu respeitosa e intrepidamente com uma admirável profissão de fé
vivendo até fora do mundo de hoje. Se acolhermos a Palavra em jesus Cristo: «Nós pregamos a todos em nome de Jesus Cristo
de Nazaré, a quem vós crucificastes. Ele ressurgiu dos mortos e curou
e esta m'ssa se tornar uma experiência que nos leve ao conhe- o coxo, como bem sabeis. Apesar de rejeitado, não há outro nome
cimento da presença de Cristo em nosso meio, leremos o perdão pelo qual possamos ser salvos» (vv. 11-12). No v. 12, com mais força
dos nossos pecados. Vivendo a comunhão com Jesus e dando e insistência do que nos discursos anteriores, Pedro assegura que Jesus
testemunho desta fé comum, uns aos outros, encontraremos a é o único Salvador. A idéia de salvação está contida em jl 3,5 e na
paz. Na Eucaristia de hoje, mais uma vez Jesus nos diz, por própria etimologia do nome de Jesus (Mt 1,21).
me10 daquele que preside esta celebração: «A paz esteja com Lucas, autor de Atos, evangelista do Espírito Santo, anota a pre-
sença da 3' pessoa divina nos Apóstolos, o que vinha realizar a pro-
vocês». messa de Jesus para depois de sua morte (Lc 12,1 ls; 21,13ss; Mt 10,12;
Agora já podemos vencer a ignorância, aceitar Jesus que Jo 14,26; 16,7-15; At 1,5.8; 2,4.38). Ao longo de Atos, é o Espírito
quer comer conosco, conhecer quanto isto é bom. Teremos, nesta Santo quem dirige a vida da Igreja inefável e eficazmente.
celebração, o perdão dos pecados, se «nos arrependermos da A crucifixão e a ressurreição são dois fatos-chave na história de
nossa rejeição e ignorância, mudarmos de vida e voltarmos para Jesus e da fé Ciistã: aquela é a prova mais clara da realidade da
morte . de jesus, - esta explica seu poder. O mistério da vida da
Deus». Hoje podemos fazer a experiência do que significa a Igreja entra em ação. As palavras de Pedro são de grande alcance,
1
«Paz do Cristo». nas quais já não se faz sequer menção da Lei corno fator de salvação.
!
Maucyr Glbin, S.S.S. Até mesmo nem se pode confiar nela em termos de justificação. Coisa
'1 Brasilia, Df igual se dirá no Concílio de jerusalém para solucionar a questão da
i observância mosaica para os pagãos convertidos ao Cristianismo (At
15,IOs). Pedro não perde a oportunidade de anunciar a mensagem de
' salvação. Não poupa ao Sinédrio: «Vós o crucificastes»! Paulo, logo
mais, ver-se-á na mesma contingência, quando insistirá na universali-
dade da salvação, efetuada por Cristo, sem distinção de raças e de
classes sociais (Rm 10,1 ls; OI 3,26ss).
O príncipe dos Apóstolos repesca no AT uma citação, aplicando-a
a Cristo: cA pedra que foi desprezada por vós, edificadores, é que
1
1. se tornou a pedra angular» (SI 117,22; e!. lPd 2,4.7; Rm 9,33). Tam-

r 172
bém Jesus já o fizera, adaptando a si a referida passagem: apesar de

173
rejeitado pelos judeus, Ele é a pedra angular da nova casa de Israel Segunda Leitura: 1Jo 3,1-2
(v. 11; e!. Lc 20,17; Me 12,10; Mt 21,42). jesus, desprezado pelos
homens, foi glorificado por Deus. Tanto os primeiros cristãos quanto Após ter dado testemunho sobre o Verbo (1,1-4), João passa a
o judaísmo posterior admitiram o caráter messiânico do Sl 117. A intimar o cristão a que ande no caminho da luz (1,5-2,28), rompendo
citação caracteriza inequivocamente a obcecação e a tragédia do Povo com o pecado, observando os mandamentos, precavendo-se do mundo
eleito por Deus. e desconfiando dos anticristos. Numa segunda etapa, convida-o a viver
como filho de Deus (2,294,6), observando os mesmos tópicos de antes,
Quem é que interpela os Apóstolos? São sacerdotes, o chefe do os do caminho da luz. O presente texto anaHsa o princípio de viver
templo e saduceus (4,1), os quais, indignados face ao sucesso dos como filhos de Deus. A idéia de justiça (2,29) liga com o que precedeu.
Apóstolos, sendo já tarde, submeteram-nos à prisão preventiva, na espe- Os que praticam a justiça poderão ir tranqüilos e confiantes ao juízo,
ra de soluções da parte do Sinédrio logo que raiasse o dia. Os sa- jã que Deus é justo e os justos nasceram de Deus para uma nova
cerdotes, a polícia do Templo se revezavam em turnos (ICr 241-19· vida, são de lato filhos de Deus a partir do batismo (Jo 3,3-8),
Lc 1,5). O chefe do Templo' («strategós», cf. 5,24ss), posto im~diat~ mediante o qual o homem se torna participante da natureza divina
após o sumo sacerdote, era um sacerdote encarregado da ordem no (2Pd 1,4). A filiação divina - realidade sobrenatural - comprova a
culto, nos turnos, nas manifestações populares, - cargos de impor- união com Deus e seu amor para conosco.
tância nesse tempo de efervescência política. Quanto aos saduceus não João supõe sabido que Deus é justo, perfeito. Em decorrência,
se vê claro o porquê de sua presença, já que não exerciam função quem nasceu dele e participa de sua vida deve praticar a justiça, obser..
aí, É possível que, entre os ouvintes de Pedro proclamando a ressurrei- var os mandamentos (Jo 14,15ss; 15,10; ljo 2,3-9). Quem faz isto é
ção de Cristo, houvesse também saduceus, os quais, dada sua ojeriza deveras filho de Deus. O critério de filiação dlvina é a semelhança
contra a ressurreição (23,6-9; Mt 22,23), se teriam dirigido aos en- com Deus, a perfeição interior conferida pela graça. Dissera Jesus.:
carregados do Templo a fim de prender os apóstolos. Nesta época, Sede perfeitos, como vosso Pai é perfeito (Mt 5,48). A razão é que,
os saduceus gozavam de grande prestígio, porque era dentre suas nascendo de Deus, participa-se de sua natureza, donde a semelhança
famí1ias que em geral saía o sumo sacerdote, responsável último pelo com Ele. João amiúde aplica a imagem do nascer ao dom da vida
Templo e pela religiosidade. Acresce ainda, segundo Atos, serem os divina (2,29; 3,3; 4,1; 5,1.4.18; Jo 3,3-8) que acontece no batismo. Este
saduceus inimigos ferrenhos do Cristianismo, ao passo que os fariseus novo nascimento confere-nos o nome e, em certo modo, a natureza de
eram mais benignos. Todavia não faltavam fariseus inimigos (cf. 26,5-11). filhos de Deus. E o amor que leva a tanto.
O sinédrio (v. 5), conselho supremo de Israel, compunha-se de prínci- O cristão é filho de Deus não só por uma ficção jurídica, mas
pes dos sacerdotes (aristocracia sacerdotal), anciãos (aristocracia leiga) também no plano entitativo. A filiação adotiva humana só comunica
e escribas (doutores da Lei, em geral fariseus); era detentor do poder externamente um direito entre o adotante e o adotado, - ao passo
civil e religioso, tanto quanto Roma permitisse. O presidente nato do que a divina consiste na participação de nova vida, de nova natu-
sinédrio era o sumo sacerdote, no caso Caifás (cf. ]o 18,13), que pon- reza, semelhante à de Deus, mediante um novo nascimento (ST, III,
tificou do ano 16 a 36 de nossa era e foi deposto pelo legado L. q. 3, a. 2-4). Diante do mistério da filiação divina, João vibra de
Vitélio. Figura também aí Anás, sumo sacerdote deposto por Valério emoção e exclama maravilhado: «Vede que admirável sinal de amor
' Grato, em 15 dC, depois de reinar 9 anos, quando granjeou autori- nos deu o Pai, concedendo.-nos ser chamado~ como de fato o somos,
dade mesmo sobre seus sucessores. filhos de DeuS» (3,1). Deus, em seu amor, não só nos deu seu Filho.
Também nos adotou como filhos, comunicando-nos sua própria natureza
Pode-se compartir da tensão provocada no interior do sinédrio, quando
(1,13; 2,29; Jo 3,16).
1! eles, que mataram a Jesus e assim rejeitaram Aquele que se tornaria
a pedra angular, ouviram ressoar no próprio recinto a proclamação
Se tal é a dignidade do cristão, é óbvio que o mundo não o
conheça, já que não aceitou o Cristo. «Mundo» assume aqui acepção
audaz de que não há fora de Jesus outro caminho de salvação. Nestas pejorativa:· os inimigos de Deus (2,15ss). Como a nossa dignidade so-
1 palavras expressa-se a mensagem fundamental de toda a pregação apos- ·brenatural é participação inefável da vida de Deus, os que não conhe-
tólica e nelas se condensa a preocupação de todos os escritos do NT. cem a Deus não poderão outrossim conhecer os seus filhos. Aliás, já
Nas palavras de Pedro perante o grande conselho de Israel, encontram- o dissera Jesus: «Expulsar-vos-ão ... vos tirarão a vida ... procederão
.
'
se os conceitos «verdade», «graça», «luz», cvida» ... e todas as expres-
sões mediante as quais é parafraseada a salvação que Deus ofereceu
ao mundo em Jesus.
deste modo porque não conhecem o Pai, nem a Mim• (Jo 16,2s).
O amor divino - ãgape - é uma realidade espiritual que foge
aos sentidos. Conquanto seja espiritual, é perceptível em seus efeitos
Bibliografia: Cf. Domingo de Páscoa, ]t leitura. e é objeto da fé. «Ver> e <crer> freqüentemente vêm unidos (Mt 21,32;
Me 15,32; jo 6,30; 20,8-29). O amor dá ao crente possibilidade de
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C. estar em comunhão com Deus e conhecê-lo.
Santa Maria, RS A melhor 1radução de "ágape" não é "amor", termo equivoco e carregado de
sentimen1allsmos. "Caridade" seria mais adequado, porém traz em si demasiado
colorido cristão. Quem sabe, o melhor equivalente seja "predileção", 1ermo que
implica em escolha deJlberada e prescinde da afeição instintiva e mais ainda da
emoção (Splcq, C., Agape, 111, p. 247, nota 5). "Agape" no NT encerra um
triplice e1emen1o: - na visão blbtlca significa 1oda espécie de amor, ternura e
afeto; - na perspectiva ética, exprime escolha, estima, amor IUcido e respeitoso,

174 175
--------- -~---

admiração e veneração (uso ciãssJco); - no aspecto re11gloso, conota a presença Tea-ce!ra Leitura: Jo 10,11-18
de Deus como sujeltoi objeto e motivo do amor, e exprime veneração, deferência,
piedade, estima, respe to a Deus e ao próxJmo.
"Vede" ('Jdeln') conota simpatia, admiração, contemplação jubilosa... é verificar, 1. Contexto da perlcope
dJscernir1 compreender a fundo, saborear, perceber intelectual e afetivamente (Mt
13,17; /i1c 2,12; Lc 17,22; )O 8,56; At 13,41).
Este evangelho é a segunda parte do discurso do Bom Pastor, um
A caridade cujo objeto somos nós mesmos, é um amor excepcional
1
conjunto literário que, provaveJmente, teve uma vez uma existência inde-
('potapós'), generoso, que vem do céu, cuja natureza não pode não ser pendente e foi, por Jo, integrado no evangelho como elemento da
divina (Spicq, ibid., p. 254). J3 uma realidade que Deus nos dá gra- discussão com o judalsmo (como sugere a origem do tema, no AT:
tuitamente ('dédoken'), um dom concedido pelo Pai aos fiéis: o pró- Ez 34, a critica dos pastores de lsraeJ). Assim, atualmente, a primeira
prio Deus que os torna participantes de sua natureza divina mediante parte do Sermão (jo 10,1-10) é a seqüência da critica de Jesus, dizendo
a graça, fazendo-os seus filhos (2Pd 1,14). O novo nascimento para que os chefes dos judeus são cegos (9,40-41, fim do sinal do cego
a vida divina atribui-se ao amor (ágape) do Pai, amor maravilhoso de nascença). A segunda parte (10,11-18, o evangelho de hoje) é a
de Deus com o qua1 ama ternamente aos cristãos como a seus filhos continuação imediata da primeira e trata explicitamente da figura do
(]o 14,21). Bom Pastor. A terceira parte é separada da primeira e segunda. Está
O amor do Pai mostrado aos apóstolos é um afeto nobre e puro, num outro contexto narrativo. Segue depois da conclusão do episódio
ativo e generoso, é uma realidade em si mesma, íntima e concreta, do cego (em 10,19-21) e encontra-se no contexto da festa da Dedicação
que Deus nos comunica e que permanece em nós, fazendo-:nos filhos de (I0,22ss).
Deus. J3 o próprio Deus (2Pd 1,4). Esse amor se estende a todos os A primeira parte do Sermão, lida na liturgia do Ano A, apresenta
que .amam seu Filho Jesus, a quantos são Jegltimos cristãos. «Ser cha- uma parábola inicial (10,1-5), em que é descrito o que acontece com
mado>, na Bíblia, equivale a «Ser>, porque, quando Deus chama ou relação ao redil coletivo das antigas aldeias palestinenses: pessoas entram
impõe um nome, concretiza aquilo que tal nome enuncia (Is 7,14; Lc e saem, ladrões pulam a cerca e pastores entram pela potta pata chamar
1,32). Se o cristão é «chamado~ !ilho de Deus, o é de verdade (3,1). cada um as suas próprias ovelhas pelo nome; e as ovelhas seguem
Assim, nossa filiação divina não é apenas metáfora, mas também con- a voz conhecida (I0,1-5). Depois de uma observação sobre a incom-
soladora realidade (3,9). preensão dos judeus (v. 6), Jo faz uma primeira aplicação (alegorizante)
Em 3,2 joão volta a interpelar com carinho ('queridíssimos') os desta parábola, comparando Jesus com a porta do redil, porta para os
fiéis a que atentem à filiação divina, agora e no futuro, porquanto pastores e porta para as ovelhas (vv. 7-10). Na segunda parte do
sua dignidade é desconhecida do mundo e, em parte, também dos pró- sermão, o evangelho de hoje, jesus é comparado com o pastor mesmo~
prios fiéis, uma vez que ainda não produziu todos seus efeitos. Acon-
tece que os mistérios divinos, aqui e agora, só os podemos entrever
de maneira enigmática, indireta e imperfeita, como por um espelho que 2. Explicação do texto
mal reflete a imagem (cf. !Cor 13,12). Só na eternidade aparecerã
em plenitude o que deveras são os filhos de Deus, quando Ele se re- Nos vv. 7-10, a explicação da parábola era organizada pela repe-
velará tal qual é. J3 ver.dade que o somos desde agora, pois a vida tição da fórmula «Eu sou a porta• (v. 7 e 9). Do mesmo modo, os
eterna já está em nós (3,9; 4,13; Jo 3,16; 6,53). Se tais, devemos vv. 11-18 são estruturados pela repetição cEu sou o bom pastor» (vv.
viver corno tais (3,3-4,6). 11 e 14). Na primeira explicitação desta idéia (vv. 11-13), Jesus des-
Pela fé já conhecemos nossa dignidade de filhos de Deus. A espe- creve o «bom pastor> (ho poimên ho kalos, o pastor cde qualidade»)
rança nos faz prelibar o prêmio que nos espera nos céus. Quando apa- em oposição àquele que não é pastor, mas apenas mercenârio. A dife-
recer Cristo glorioso, na parusia final ou no final de nossa purificação rença principal é que o pastor de verdade dá a sua vida pelas ovelhas
sobrenatural, é que haveremos de saborear a visão beatífica e tornar- (!Ih), enquanto o mercenário foge (cf. Ez 34,5). A segnnda explici-
nos semelhantes a Ele, porque a filiação divina nos descobrirá sua tação, do v. 14 em diante, descreve mais amplamente a figura do
imensa profundidade ao conhecer melhor nossa semelhança com Deus. bom pastor mesmo: 1) Ele conhece as ovelhas e as ovelhas o co-
A visão - pela caridade - implica em união consciente e mais per- nhecem (elaboração do motivo «chamar as ovelhas pelo nome» e «as
feita da alma com Deus. No céu veremos a Deus face a face, sem ovelhas lhe conhecem a voz», vv. 3-4). 2) Ele dá a vida pelas ovelhas
véus, - visão direta, intuitiva, de tu para tu. «Aí, nossa inteligência (v. 15c, cf. !Ih). 3) Em uma nova associação de idéias, diz que hã
alcançará a própria essência da Causa primeira, conseguindo a perfei- também outras ovelhas, não deste aprisco, que precisam ser conduzi-
ção pela união com Deus, como sujeito, no qual está a felicidade única das na perfeita unidade (v. 16). 4) O cerne cristológico de tudo isto
e suprema do homem» (ST, 1-ll, q. 3, a. 8). São as vias dos místicos é o amor, a união entre o Pai e- o Filho, que faz com· que jesus dá
e ascetas: purgativa, contemplativa e unitiva. Só então a filiação di- a sua vida com soberania divina, livremente, assim como Ele a poderá
vina descobrirá sua peculiar essência e sua ocu1ta magnificência - a retomar (vv. 17-18).
semelhança com Deus.
1) jesus conhece as ovelhas e as ovelhas o conhecem. Na linha
BibUograflri: Cf. 2q Domingo de Pãscoa, 2• leitura. do simbolismo, que marca o Quarto Evangelho todo, devemos enten-
Pe. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. der este «conhecer» não no sentido natural, mas dentro do código
Santa Maria, RS da linguagem joanina. Neste código encontram-se o sentido blblico-

176 177

i.
-

existencial de conhecer (experimentar, ter intimidade, familiaridade, ami- com soberania divina: a ressurreição, chamada aqui cretomar a vida»,
zade, relação matrimonial etc.) e o sentido helenístico-gnóstico (conhe- é a prova de que Ele a deu Jivremente. Jesus não é a vitima de uma
cimento por revelação). Jo sugere, por este termo, ao mesmo tempo, tramitação. A doação até o fim é o que Ele quer mesmo (cl. 13,ls),
a relação intima entre Jesus e os seus (cf. 15,15: «Não vos chamo corno executor da vontade do Pai (v. !Se).
servos, mas amigos>) e o conhecimento da revelação em Jesus, expresso, Aqui aparece a existência de jesus e, sobretudo, a doação de sua
alhures, por termos como sejam: cQuem me conhece, conhece o Pai, vida, como ato de uma pessoa (= centro de decisão) divina. Paradoxal-
Aquele que me enviou> etc. (cf. 14,7-9; 16,3; 17,23.25). mente, a submissão extrema de Jesus ao «Ser carne» ( = humanidade
mortal) é a realização da obra divina por excelência: dar vida. Isto
2) jesus dá sua vida pelas ovelhas. Esta realidade é a conseqüên- é o que revela a ressurreição. De modo que o termo «dar a sua
cia do conhecer afetivo, no sentido bíblico. Mas tem também um sentido vida», nos versículos anteriores, não apenas assinala o pastor sacrificando-
de revelação: o dom de Jesus é a revelação do Pai. Conhecemos Deus, se pelo rebanho, mas indica o enviado divino transmitindo aos seus o
assim como Ele é, no dom de Jesus para a vida do mundo (cf. 3,16; dom da vida eterna: <Vida em abundância» (v. 16).
6,51; !Jo 3,16; 4,Sss). O lato de Jesus dar a sua vida em prova íle
amor é idêntico com jesus ser dado ao mundo como revelação do
amor do Pai. De modo que «dar a vida;)) não apenas anuncia a hora 3. Função na liturgia
da morte de Jesus; significa também a totalidade da vida de Jesus
como dom do Pai, Palavra e revelação do mesmo. E significa ainda, Importa sensibilizar os fiéis pelo cCristo pascal», que fala no pre-
que esta vida não é pura e simplesmente aniquilada, mas dada, isto é, sente evangelho e em todo o Quarto Evangelho. Só quando se tem
transmitida a outros: nós a recebemos e vivemos dela. Isto se deve a Ressurreição diante dos olhos, é possivel entender o que o texto
entender no sentido da revelação: conhecendo o Pai, o termo abso- quer dizer e o que é o dom da vida do Bom Pastor. Significa que
luto da nossa vida, em Cristo, podemos viver a sua vida, agora e nós participamos da vida pascal de Jesus. Sua doação existencial (sua
para sempre: é a comunicação da vida divina. «pró-existência»), recebida por nós na fé que se exterioriza em atos,
nos introduz num outro nível de vida que não o da vida material: a
3) Outras ovelhas, outro aprisco. Quais são as «outras ovelhas» vida da ressurreição. Por isso, o presente evangelho estâ muito bem
do v. 16? Qual o «outro aprisco»? Sabendo que ]o escreve seu evan- situado no seu atual lugar litúrgico.
gelho com as divisões internas do fim do l<) século diante dos olhos, O 4' domingo pascal é o Domingo do Bom Pastor. Neste domingo
a gente poderia pensar nas outras comunidades cristãs que não as do se lê, cada ano, uma das três partes do sermão do Bom Pastor, na
Quarto Evangelista. Mas parece mais óbvio - e Jo 11,52 nos convida terceira leitura da missa. Jsto não influi, porém, na escolha das duas
neste sentido - pensar que se trata de cristãos que não provieram primeiras leituras. A gente sente a !alta do texto de Ez 34 como pri-
do tradicional «rebanho de Deus», Israel, mas do paganismo (cf. 7,35; meira leitura. Mas mesmo como está, neste ano B, a descrição da
11,52; 12,19.20ss). Com isto, o autor ultrapassa a dimensão vétero- salvação no nome de Jesus (At 4,8-12, I' leitura) e a meditação
testarnentária das imagens do rebanho e do «pastor de Israel», indi- sobre o amor que Deus nos mostrou em Jesus (ljo 3,1-2, 2' leitura)
Fando a realidade messiânica da reunião das Doze Tribos (Ez 34). reforçam de maneira sumamente feliz as idéias principais do texto de
Na situação dramática da separação de judaísmo e cristianismo, no Jo 10,11-18.
fim do l '> século, interpretada por João e sua comunidade como a
rejeição do messias (rei, pastor) pelo próprio povo eleito (cl. Jo 19,15), Bibliografia: Ver 311 Domingo da Quaresma.
surge agora a figura do pastor escatológico que não é limitado a Pe. Johan Konings
Israel, mas que é pastor de todos, reunindo em um rebanho todas as Porto Alegre, RS
ovelhas, também as que não vêm de Israel.
4) O cerne cristológico. Os vv. 17-18 encerram a segunda parte
Tema Principal
do sermão do Bom Pastor. Explicam o pressuposto cristológico daquilo
que foi dito anteriormente. Este pressuposto tornar-se-á o tema prin- ESCUTAR A PALAVRA DO SENHOR,
!: RECONHECe-LA E vive-LA PARA SERMOS FILHOS DE DEUS
cipal da terceira parte do sermão, em l0122ss. O fato de o pastor dar

t
1
a sua vida pelo rebanho é expressão, conseqüência ou razão - o
substrato semítico do pensamento joanino não permite distinguir cla-
ramente - do amor que o Pai tem para o Filho. E essencialmente a
mesma idéia que Jo 3,16; 15,13; lJo 3,16; 4,9 etc. O amor de Deus
Sugestões para a Homilia
Introdução
se revela na vida de jesus dada .para a vida do mundo. Porém, o v. 17c
acrescenta uma idéia nova: Jesus a dá para a retomar. Isto não dimi- A voz de Cristo, uma «VOZ» enfre muitas
nui o dom, no sentido de que Ele o retirasse. Pelo contrário, é uma
expressão do valor ir.comparável deste dom, pois é o dom de urna Não há dúvida nenhuma de que o mundo de hoje perdeu e
vida «de ressurreição», portanto, de qualidade divina: o dom da vida está perdendo sempre mrus o valor do silêncio, indispensável
de Jesus, na morte, é vida eterna para Ele e para os seus. Assim se
realiza a «lei do grão de trigo» (Jo 12,24). Nesta doação, Jesus age para se escutar alguém que fala. Tudo ao nosso redor é ba-

178 179
rulho. Isso pode levar o homem à alienação total. Milhares são Quando a Igreja, finalmente, por um ato de coragem, se liber-
as vozes que se agitam em redor de nós e dentro de nós. tou do orgulho de considerar-se a única e exclusiva depositária
Muitas destas vozes querem trazer-nos boas-novas, noticias novas da verdade, começou a enxergar melhor. Hoje não mais podemos
de libertação, de verdade, de felicidade. Mas corre-se o perigo nos considerar os únicos possuidores da verdade; ela está pre-
de que a televisão destrua a nossa capacidade pessoal de pensar, sente em tudo e em todos. No diálogo, no respeito recíproco,
de refletir e de discernir. O jornal traz notícias já filtradas e revela-se sempre mais o bem imenso que se esconde em cada
mastigadas segundo normas bem determinadas. O rádio, o ci- homem de boa vontade.
nema, os discos, a propaganda, os pronunciamentos políticos
Esta voz do bem é a voz de Cristo que nos chama. A
tentam manipular sempre mais a nossa consciência em vista de
conquistas pessoais ... Mesmo a voz da Igreja talvez nem sem- vontade de eliminar as injustiças e a própria luta contra todas
as discriminações humanas são a nova voz de Cristo, que vem
pre tenha sido pura e límpida como o evangelho. Nesta mul-
tidão de «Vozes» que gritam de fora e nos agridem por dentro, a nós do coração da mesma humanidade angustiada e em busca
onde se situa a voz de Cristo? de novos caminhos. Para saber distinguir esta voz de Cristo
na voz do homem sofredor que - marginalizado e perseguido
- procura a verdadeira libertação, é indispensável que com
Corpo muita coragem nos dispamos dos preconceitos que nos impe-
dem de enxergar e de escutar o irmão, que com a mesma
1. Uma voz que nos chama sinceridade, como nós, procura a verdade. Só quem é livre, pode
e sabe escutar na multidão das vozes falsas e falsificadas a voz
O homem de hoje há de aprender a se mover nesta flo- verdadeira da bondade e do amor.
resta de vozes e sons e a procurar nela o trilho certo que o
leve à libertação. Precisa antes de tudo assumir uma atitude de
sincera escuta, aberta ao diálogo. Não podemos fechar-nos a 2. Cristo, o Bom Pa$for
nenhuma voz que nos chame, seja qual for a sua origem: a voz No texto do Evangelho de hoje se nos revela toda a gran-
da técnica, a voz da economia, da política, a voz do sexo, do deza do coração de Jesus Cristo. Ele mesmo apresenta-se como
dinheiro. . . Através de cada uma delas chega a nós uma par- o «Bom Pastor». Pode ser que esta imagem não diga muito
cela qe verdade que somos chamados a descobrir, aceitar e a nós, filhos da técnica, que perdemos a simplicidade da vida
vivenciar. dos campos. Tentemos reconstruir na imaginação a vida dura
É necessário não nos considerarmos donos da verdade; mas do pastor que acompanha o seu rebanho de ovelhas pelas encos-
homens em busca da mesma. Quem busca está sempre atento a tas das montanhas em busca de alimento mais substancioso. Este
todos os sinais que o possam levar à meta almejada. Os sinais pastor ama as ovelhas, encontra nelas toda sua riqueza e não
do mundo de hoje ressoam sempre mais polêmicos. A polêmica, mede sacrifícios, colocando-se totalmente a seu serviço.
a critica áspera e partidária, porém, não podem de forma algu- Mediante esta imagem do Bom Pastor, Cristo quis revelar
ma conduzir a um relacionamento mais fraterno entre os homens. aos homens todo o seu carinho e toda sua preocupação para
Quem somente sabe polemizar e criticar, perde a capacidade de com cada um de nós. Como o pastor expõe a sua vida para
escutar e distancia-se sempre mais dos outros. A própria Igreja salvar o rebanho do lobo ou dos ladrões, assim o Cristo arris-
é um exemplo disso. Era-lhe difícil abrir-se ao diálogo com as cou a sua vida pela salvação dos homens. Cristo arriscou tudo
outras religiões, com outras ideologias, com os ateus e comu- para não se comprometer com os fortes e os poderosos da sua
nistas. Ela estava por demais acostumada a condenar e a lançar época. Ele não foi um mercenário: defendeu os pobres, curou
excomunhões. Por muito tempo a Igreja andou de olhos ven- os doentes, anunciou a boa-nova aos humildes. Jesus não teve
dados, incapaz de enxergar o bem naqueles que não pensavam medo de romper as estruturas do seu tempo, favorecendo os
segundo as normas friamente preestabelecidas pelos defensores «sem voz e sem vez», proclamando que o sábado é feito para
! da única e absoluta verdade. Certamente, não era erro de um os homens e não o homem para o sábado. . . Libertou-os das
.i lado só, somente da parte da Igreja, mas também dos outros. escravidões da Lei, dando o novo mandamento do amor.
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1!
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l Cristo conhece cada um de nós Intima e profundamente. 4. A voz de Cristo nos torna profetas
Quem ama penetra o coração do outro, compartilhando todas Ninguém pode receber a palavra de Deus e guardá-la .enter-
as ânsias, angústias e anseios. Por isso, Cristo nos conhece; e rada dentro de si. Precisa revelá-la através da vida. Na leitura
nós O conhecemos, correspondendo ao Seu amor. O amor ver- dos Atos dos Apóstolos nos é proposta a atitude corajosa de
dadeiro não se fecha; se abre sempre mais e para todos. O Pedro. Diante das autoridades constitu!das apresenta a sua fé
coração de Cristo também se dilata, atinge novos horizontes e proclama a verdade, que ele carrega dentro de si. A Igreja
e não se limita às ovelhas que vivem tranqüilas e seguras no sempre precisará de profetas corajosos que como o Bom Pastor
seu aprisco. «Tenho ainda outras ovelhas que não são deste e como Pedro saibam arriscar a própria vida; não somente
aprisco. Preciso conduzi-las também, e ouvirão a minha voz e para defender os irmãos, mas também para denunciar todas as
haverá um só rebanho e um só Pastor» (Jo 10,16). Não haverá injustiças que se cometem continuamente.
um só rebanho no sentido numérico. Já está se formando o único A missão de profeta não se escolhe. É um chamado do
rebanho ou o único povo «daqueles que procuram o Senhor com mesmo Cristo, que Ele faz a quem quer e quando quer. Mas
coração sincero» ( cf. a IV Prece Eucarística). Na medida em a nós todos cabe a responsabilidade de permanecermos atentos
que soubermos olhar mais «O que nos une do que o que nos à sua voz, tentando reconhecê-la no meio do vozerio para depois
divide» estaremos constmindci este novo reino do Senhor. a executarmos com coragem.
Os cristãos anônimos desde já fazem parte deste único O profeta é aquele que anuncia em nome de Deus. Não
rebanho e realizam junto conosco o desejo de Jesus Cristo. proclama a própria palavra, mas a mesma palavra do Senhor.
Ele é um simples porta-voz; não lhe é permitido alterar a pala-
3. A voz de Cristo nos transforma vra. O profeta anuncia, denúnciando. Anuncia a paz denunciando
a guerra. Anuncia o respeito ao homem denunciando o des-
Não podemos permanecer insensíveis à voz de Cristo. A respeito de que continuamente é vitima, por ser profanado nos
gente a aceita ou a rejeita. Aqueles que a aceitarem dinamica- seus direitos fundamentais de liberdade. As palavras de Pedro
mente, vivendo-a, Deus os transformará em filhos do Altíssimo. são uma violenta condenação do falso e doloso agir dos sa-
Esta mensagem da segunda leitura aplica-se a todos que reco- cerdotes que tinham condenado Jesus Cristo. A boca da ver-
nhecem e aceitam a palavra do Bom Pastor. João, o evangelista dade não se cala. O profeta proclama-a em qualquer momento
do amor, •preocupa-se em revelar aos homens a grandeza e a e com todos os meios. Proclama-a com a palavra, com a vida
gratuidade do amor do Pai. Maravilhamo-nos considerando as e com a morte.
delicadezas de Deus. Ele toma a iniciativa de nos amar, de nos
Nós, hoje, somos chamados a proclamar a verdade, denun-
libertar e· de nos separar do mundo, para nos consagrar ao
ciando a mentira com todos os meios a nossa disposição. Tndo
seu serviço. Ser filho de Deus é agir, desde agora, em sinto- deve tornar-se veículo da verdade: a imprensa, a televisão, o
nia com a sua palavra e tornar-se sinal vivo da presença d'Ele rádio, a música. . . Aquelas mesmas vozes que esmagam dentro
no meio dos homens. Um dos motivos do ateísmo · contempo- de nós o desejo do infinito, bem usadas, podem despertar em
râneo e da descrença generalizada talvez seja o fato de a Igreja nós o desejo do infinito e fazermos conhecer sempre mais o
durante muito tempo ter apelado mais à inteligência do que Cristo que está no meio de nós.
ao coração. Um Deus intel~ctnal ou intelectualizado não satis-
faz a ninguém. Somente o Deus vivo que· anda conosco e parti-
cipa dos nossos acontecimentos diários corresponde plenamente Conclusão
aos nossos desejos do infinito. Somos caminheiros nas estradas
poeirentas do mundo, rumo à casa do Pai. Nela introduzidos, A palavra de Deus, proclamada e explicada na litu~gia ~e
O veremos como Ele é e seremos para sempre semelhantes a )loje, mexe no mais íntimo de nosso ser. Chama-nos a d1scermr
Deus. Quem se silencia para escutar a voz de Cristo não so- no meio de tan!as vozes a voz certa, a voz do Cristo. Este Bom
mente será ouvinte da palavra, mas será por ela transforma- Pastor ~os chama a sermos filhos de Deus e a darmos teste-
do em praticante da mesma. munho, com a nossa vida, da verdade encontrada e aceita com
182 183
sincera adesão. Não podemos permanecer tranqüilos, vivendo so- Quinto Domingo da Páscoa
zinhos a nossa fé. Quem vive sozinho a fé, corre o risco de vê-la
lentamente murchar como uma flor sem água, e depois morrer.
A convicção leva-nos a sermos autênticos como Pedro e a assu- Pistas Exegéticas
mirmos as nossas responsabilidades, condenando violentamente Primeira Leitura: At 9,26·31
não só com a ·palavra, mas particularmente com a vida, todas
as injustiças que se cometam ao nosso redor. Se queremos ser «Pregava com coragem o nome de jesus»
realmente filhos de Deus devemos realizar as obras de Deus
e não as obras das trevas. Três ou quatro textos .·nos informam sobre a primeira estadia de
Paulo em Jerusalém depois de sua vocação no caminho a Damasco:
Cristo é o Bom Pastor que nos conhece pelo nome. Será At 9,26-Si; OI 1,18-23; At 22,17-21 e Rm 15,19 (?). Cada um apresenta-a
que nós somos boas ovelhas que reconhecemos a voz de quem sob um ângulo diferente, o que dificulta a harmonização dos dados.
nos chama? Hoje a Igreja comemora o dia mundial das vo- Em At 9 pode-se chegar à conclusão de que Paulo tenha sido vítima
cações. Ela convida todos a manter-se em atitude de escuta das circunstâncias que determinaram suas idas e vindas. Ele fugiu de
Damasco para escapar às mãos dos judeus. Ao vo1tar a jerusalém, de
para perceber o que Deus quer de cada um. A Igreja precisa onde ele saiu como perseguidor, Paulo é recebido com muita reserva,
de novos «bons pastores» que se dediquem de tempo integral porque desconfiam de sua conversão (v. 26). Por meio de Barnabé que
às necessidades do povo de Deus. O problema das vocações lhe serve de intermediário ou «advogado» (cf. 4,36: «.Barnabé significa
na Igreja não é somente problema do Papa, dos bispos e dos huios paraklêseôs!?), ele ganha a cobertura dos apóstolos. Pregando
em Jerusalém Paulo tentou reatar o diálogo com os helenistasJ ou seja,
padres, é problema de cada cristão que se sente Igreja viva com os judeus da diáspora cuja língua era o grego, interrompido pelo
do Senhor. Cristo, o Bom Pastor, continua a chamar. Que nin- martírio de Estêvão, em que o próprio Paulo desempenhou um papel
guém permaneça surdo à sua voz; que ninguém tenha medo (cf. At 7,58-8,1). Mas quando constataram que Paulo correu o mesmo
de responder. risco, os irmãos o levaram a Cesaréia e o encaminharam para Tarso.
Patrlcio Sciadini, O.C.D. Conforme At 22,17-21 não foram as circunstâncias que levaram
São Paulo, SP Paulo a sair de Jerusalém e de Judá, da <terra dos judeus>. Pelo
contrário! Paulo as alegou para permanecer ai e pregar aos judeus na
própria capital espiritual deles (vv. 19-20). A sua salda de Jerusalém
é conseqüência de uma intervenção do Senhor que, em uma visão no
iemploJ lhe comunicou a sua verdadeira missão através das palavras.:
«Va~ porque eu te enviarei para longe, às nações ... » (v. 21).
Segundo OI 1,18-23 toda a iniciativa teria vindo de Paulo. Ele que
- já fazia três anos - pregava o evangelho aos pagãos, procurou
Pedro em Jerusalém. «Fiquei com ele quinze dias... Em seguida fui
para as regiões da Síria e da Cilícia» (18b.21). Neste contexto a
estadia de quinze dias em Jerusalém apresenta-se somente como inter-
valo, uma espécie de visitatio ad limina.
At· 9,26-31 presta-se para uma análise estilística. O trecho vv. 27-30
consiste em quatro partes: a chegada de Paulo a Jerusalém; a apresen-
tação de Paulo aos apóstolos; a pregação de Paulo em Jerusalém, espe-
cialmente ao~ helenistas; a saída de Paulo de Jerusalém e sua viagem
a Tars0-. Como se observou acima, estes acontecimentos parecem
desenvolver-se sob a pressão- das circunstâncias. Ao mesmo tempo trans--
parece no vocabulário usado por Lucas e na composição do trecho uma
teologia dos fatos. Uma tradução literal pode servir como demonstração:
C : Barnabé ... o levou aos APóSTOLOS
(e contou-lhes)
B · que o Senhor havia falado a ele
A : e como em Damasco pregara destemidamente
EM NOME DE JESUS
X : (Paulo permaneceu com eles)

184 185
A': em Jerusalém, pregando destemidamente amor hipócrita; cf. Tg 1,25; 2,12; 15,17); o 2° termo de cada binômio
EM NOME DO SENHOR reforça o primeiro - pejorativamente no 19 (a c:línguru> deturpa a
B': falava também. . . com os helenistas «palavra») e positivamente no 29 (a «Verdade::> anima o «ato»).
e·: os irmãos Ievaram-nfJ até Cesaréia Amar de verdade é amar como jesus amou na cruz (3,16): eis o
e enviaram-no (EKSAPOSTELLô). critério! Toda obra que se fizer em favor dos irmãos, merece ser
executada com o ani-0r que jesus teve na cruz. O Senhor e o discípulo
Mesmo em uma tradução vê-se que, duas a duas, voltam as mesmas são uma coisa só. São frutos do amor fraterno: conhecer que se é
palavras ou palavras da mesma raiz, na ordem indicada pelas letras da verdade (v. 19), paz e tranqüilidade de consciência (v. 20), con-
C-B-A-X-A'-B'-C'. Consciente ou inconscientemente saiu da pena do fiança em Deus (v. 21), eficácia da oração (v. 22), amor e fé (v. 23),
narrador um quiasmo. Esta figura literária é ao mesmo tempo centrípeta comunhão com Deus atestada pelo Esplrito Santo (v. 24).
(C-B-A-X) e centrífuga (X-A'-B'-C'). Isto sugere que a breve estadia
de Paulo em jerusalém junto aos apóstolos na igreja-mãe marcou um A prática da caridade darâ a conhecer que «Se é da verdade», isto
pontq decisivo na sua carreira de apóstolo dos pagãos. é, filhos de Deus (v. 19), - que se vive de fato segundo a vontade
divina, - que se exerce a caridade sem hipocrisia (lPd 1,22; Rm 12,9;
Antes de ser enviado (EKSAPOSTELLô) à diáspora, à terra 2Cor 6,6). Por 'verdade', aqui, compreende-se a verdade transcendenta1
pagã (C'), Paulo foi apresentado aos APóSTOLOS (C). Paulo falou que reside no cristão (1J8; 214): implica em procedência divina, em
somente com os· helenistas (B') depois que o próprio Senhor havia pertença a Deus (cf. ]o 18,37), em designação do próprio Deus.
falado a ele, que também era helenista (B) 1 Nos termos centrais do Se não somos de DeusJ não haverá amor verdadeiro. Se houver, ao
quiasma (A e A'), Lucas caracteriza a atividade missionária de Paulo: invés amor sem hipocrisia, é porque estamos em comunhão com Deus.
ele pregava o nome do Senhor jesus com muita coragem (parrêsia)J O h~mem que assim age estâ no reto caminho, pode ficar tranqüilo,
seja em Damasco, seja em Jerusalém e - subentende-se - em qualquer
outro lugar. Paulo não era pais predestinado para permanecer em
estar em Paz (peithein-LXX), porquanto, mesmo que a
consciência (lit:
«coração») acuse algo (v. 20; crux interpretum), Deus é maior (=
Jerusalém. Depois de ser apresentado aos apóstolos (C) e de ter co- transcendente, poderoso, santo) do que o seu coração; -como juiz infalível,
nhecido a Igreja-Mãe de Jerusalém (X) ele podia ir ao mundo afora conhece tudo que nele anda e sabe perdoar, embora o ser humano seja
e tornar-se o apóstolo das regiões pagãs (C'). ingrato e não mereça tanto (]o 21,17). A despeito da onisciência divina:
nosso coração pode ficar tranqüilo, porque, além de nossos pecados,
Raul Ruijs, O.F.M. Deus vê nosso amor ao próximo, sinal de nosso filiação. Segundo S.
Petrópolis, RJ joão, esta paz do coração se estriba na magnanimidade do coraç~o
do Pai, cujo amor é imenso. Os ll,8s faz ver que a transcendência
divina encerrà a misericórdia infinita; um hino de Qumrân repete a mesma
Segunda Leitura: lJo 3,18-24 coisa. Deus nos ama de modo superior ao nosso, sendo outros os seus
Contexto antecedente. O capitulo 30 da ljo dã como principio o viver como parâmetros. joão adota um princípio essencial da nova aliança: a jus-
fllbos de Deus (vv. 1-2) uma vez que o somos de fato. Para tanto, nos Intima tiça é uma graça, não decorre do homem, nem da observância da Lei,
a romper com o pecado Ívv. 3-10) e a observar os mandamentos. O pecado acontece nem das obras, - mas é puro dom divino. É a linha do otimismo sal-
quando se transgride a el. Pecar e desconhecer a Cristo. Aderir a Ele significa
Ubertar·se do pecado. A observância dos mandamentos se reduz ao amor a Deus vífico de S. Paulo (Rm 8,31: «Se Deus é por nós, quem será contra
e aos Irmãos. Não amar o próximo é ser homicida, é perder a vida eterna. O nós•?), - da parábola do juízo (Mt 25,21-26), - das bem-aventuranças
amor se revela quando se estã disposto a dar, sem interesse, -a vida pelos irmãos,
como agiu Jesus Cristo. A caridade distingue os filhos de Deus, é sinal de que o dirigidas aos misericordiosos e pacificadores (Mt 5,7ss), - do axioma
cristão está em comunhão com Ele. O amor fraterno, atfâs, é um dos aspectos da de Pedro: «a caridade encobre a multidão de pecados» (!Pd 4,8; cf.
Justiça ou da observância da lei moral Como tal se impõe (v. 1l) e, segundo
J>aulo resume toda a LeJ (OI 5,14). João oferece um contraste: ao amor opõe o Pv 10,12).
ôdJo, 'cujos protótipos foram respectivamente Caim (v. 12) e Abe1. O amor vem de
Deus e ê vida para o próximo; o ódio vem do diabo e quer liquidar o Irmão. Agost1nho1 Beda e Calvino, ao fazer exegese deste verslcuto (20), .entendem
Amor e ódio se disputam a humanidade, colocando.a em constante oposição. Se o no sentido aa grandeza de um juiz severo. Aliãs, 51!;m mêrlto, pois o contexto
"mundo" apresenta ódio, Cristo pede a seus membros amor. Depois da teoria, a joanino é de outro feitio: de salvação cer1a, de superação do temor e de vitória
prática (v, 17): quem tiver bens, vá ao encontro do necessitado. Não ter compaixão sobre o mal. No v. 20 faz.se um apelo à confiança de quem se libertou do temor,
do carente equivale a não amar a Deus, a não ser seu fllho. Amor afetivo e efetivo. nada tendo em sua consciência de que o acuse: é o filho que recobra sua audâcia
filial - "parresla" - ante o Pai. A "parresla" é mais do que simples confiança;
é a confiança arrojada, franca de um filho piedoso e obediente ante o pai, cuja
Nosso texto. O ambiente é de afeto - «filhinhos meUS>. O seguidor bondade lá experimentara; é· a liberdade interna que segue à diluição de uma ame&ça.
de jesus deve ter compaixão, como Ele a teve (Hb 2,16ss; 4,15; 5,2; condenat6ria, levando a caminhar de fronte erguida e infundindo segurança jovial,
porque sabe que o pai atenderá aos seus justos pedidos. Observ·e-se o "carlssimos9
Ef 4,32; IPd 3,8). Não é cristão um coração insensível. O amor é sinal (v. 21): conota afeto, ambiente amigo e eclesial; de resto, em S. João, indica
da presença ativa do amor de Deus no cristão. Não bastam palavras, nobreza honra, decorrentes mais da religião socialmente entendida do que da
carldadê; é o nosso "reverendo" e, portanto, além do afeto, apresmta algo dl?
requerem-se obras (v. 18; cf. Tg 2,15s; esmolas, dar a vida etc.). Diz titulo oficial.
lá um provérbio popular: obras são amores e não boas razões. A sin- Deus ouve a oração de quem 1em boa consciência. S. joão, pessoalmente,
fizera a experiência. Para que a oração seja eficai, postula-se como condição
ceridade do amor se prova com atos. Eis a antítese em binômio (v. 18): Jmprescindivel agradar a· Deus, vale dizer, cumprir seus mandamentos (v. 22), o
palavras/llngua x atos/verdade. «Palavras• e «atos> se distinguem como que confere ao homem uma santa ousadia no diálogo com Deus. O to mandamento
é o amor ·fraterno .i\laior o amor maior será também a eficácia da nração, visto
-teoria e prática; clíngua> e «Verdade». se contrapõem como hipocrisia oue amar ao próxiÜto é viver em cÕmunhão Jntima e vital com Deus - a "kolnonla,.~
e autenticidade (o artigo antes de clingua• ressalta-a como fautora de .tonde estiver a caridade orante, ai estará o nuvido de Deus" (Agost., PL 35,2024).
Aliás, jesus havia prometido escutar as preces dos seus (Jo 15,7; 16,23) - prece

186 187
I'
que é pedido (~itêo). Os verbos "pedir" e "receber" estão no presente aqui: sinal conjunto divide-se em três partes: 1' Discurso de Despedida (Jo 14),
de que nossas supllcas serão atendidas logo, "Observar os mandamentos" é expressão 2' Discurso (Jo 15-16), Oração de jesus (Jo 17). Suspeita-se que, numa
tlplca de S. João (18 vezes) ao lado de outra equivalente: "fazer o que é agradável
a seus olhos" (v. 22). primeira redação do 49 Evange1ho, os atuais cc. 15-17 não constavam,
pois o 1° Discurso termina com uma exortação para deixar o local da
O v. 23 resume a exortação anterior (2,18-3,21). Para o apóstolo Ceia (14,31c) e tem uma perfeita continuação em 18,lss. Os cc. 15-16
o que é mais fundàmental e agradável a Deus é a fé em Jesus, aliada (2° Discurso) e 17 (oração) parecem uma inserção. Retomam, outrossim,
à caridade fraterna. Tal fé não é mera adesão intelectual não é só os mesmos temas que o e. 14, embora com novas reflexões. Provavel-
receptiva, senão também viva e plena, a qual se explicita 'na conduta mente encontramo-nos na presença de uma coleção de homilias joaninas,
moral corno obediência absoluta e incondicional aos seus preceitos (Jo colocadas no quadro da Despedida de jesus na última Ceia. A perícope
3,18-ZI); a fé se plenifica com a prática deles (2,3-11); fé essencial- do 59 Domingo Pascal B é o começo do 2° Discurso, começando
mente é ~econhecer a Jesus, Messias e Filho de Deus, é aderir-lhe pela abruptamente, como ocorre mais vezes quando da inserção de matérias
observân~1a de seus mandamentos, vivendo como Ele viveu; esta fé e homiléticas no 4' Evangelho (cf. 3,31; 8,12; 10,1; 12,45). Contudo, não
esta prática da caridade garantem a comunhão íntima e vital com Deus há nenhum indício lingüístico de que teríamos aqui acréscimos de um
e, em decorrência, a eficácia da oração: é o que prometeu Jesus depois outro autor, como antigamente tinham pretendido certos hipercriticos.
da Santa Ceia (Jo 15,7-11; 14,13ss). ]o 15,1-8 e 15,9-17 (5' e 6' Domingo Pascal B) formam um con-
Fina1mente, a observância dos mandamentos é penhor de nossa per- junto: a alegoria da vinha e dos ramos. Não há uma clara distinção
manência em Deus e de Deus em nós (v. 24), - é garantia da ima- entre a alegoria que começa em 15,1, e sua explicação, que se estende
nência divina em nós e da mais intima união com Deus: a «koinonia». até o v. 171 como indica a presença do termo «fruto:t> (v. 16s). Porém
Deus e o cristão formam uma só coisa. Dizia Beda: .;:Que Deus seja somente os versículos 1-6 contém, propriamente, a a1egoria da videira.
tua casa e tu, da mesma forma, sejas a casa de Deus» (PL, 93, 105). Os vv. 7-17 formam uma reflexão sobre um dos temas da alegoria, o
A presença do Espírito Santo em nossa alma - o Espírito Santo mora produzir frutos.
nos fiéis como num templo (!Cor 3,16) - é que atesta se Deus habita
em nós, - se estamos em comunhão com Ele, - se há vida divina 2. jo 15,1-8
em nós. Cumpre-se o que Jesus pedira na oração sacerdotal: «Pffa O gênero literário de Jo 15,1-6 é o do mashal, ou seja, linguagem
que todos sejam um, assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, figurativa. No presente caso, trata-se de um mashal alegórico (uma
para que também eles estejam em nós» (Jo 17,21). No texto não se imagem que na sua totalidade e nos seus principais elementos estru-
diz como os fiéis sabem que possuem o Espírito Santo. Todavia, João turais representa uma outra realidade, não imediatamente acessível). E
pensa na experiência intima do cristão (ljo 2,27) e nos contínuos uma alegoria explicada (p. ex., no v. 3, que pode ser o fruto de reflexão
favores do mesmo Espírito em nós, que são penhor de sua presença em sobre a imagem original). Contudo, enquanto a maioria dos mashalim
nós (OI 3,2-5). Dirá S. Paulo: o Espirito Santo que Deus derramou têm a forma de enigmas (Pr, Eclo etc.) ou de parábolas (narrações
em nossos corações atesta-nos que somos filhos de Deus (Rm 8,16; de acontecimentos sugestivos, estilo preferido de Jesus), o de ]o 15
OI 4,6). é colocado em forma de um discurso de revelação, forma literária
Bibliografia: CI. 29 Domingo da Pâscoa, Ano B (2• leitura), acima, p. 157.
que surge nos últimos livros sapienciais e que se encontra muito em
escri!os extrabíbJicos (p. ex., da gnose mandeica). ]o 15,1-8 distingue-se
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C. também das alegorias puras, que trazem sua aplicação no fim (cf. no AT
Santa Maria, RS as alegorias de Jz 9,7ss e 2Sm 12,lss), porque a chave de interpretação
é dada desde o começo, uma fórmula de revelação de jesus: «Eu
sou a vide verdadeira», urna das sete fórmulas Eu sou + imagem que
Terceira Leitura: Jo 15,1-8 ocorrem no quarto evangelho (cf. ô,35: pão da vida; 8,12: luz; 10,7:
porta; 10, 11 : pastor; 11 ,25: ressurreição e vida; 14,6: via, verdade e
1. Contexto da perlcope vida). Suspeita-se que se trate de invocações litúrgicas da Igreja joa-
Neste e nos próximos domingos, as perícopes evangélicas são to- nina, comentadas nos «discursos de revelação» de Jesus. A semelhança
madas do conjunto dos «Discursos da Despedida» de Jesus no 49 Evan- de Jo 15 com a alegoria do pastor e do rebanho, em Jo 10, é notável:
gelho. Esta escolha é extremamente. feliz, porque, de lato, os cc. 14 a 17 em ambos os casos, o tema é inserido no contexto sem preparação
- como todo o evangelho de João - são escritos como expressão a1guma (10,l; cf. 15,1) e traz uma imagem alegórica, com aplicações
do significado pascal, senhorial do Senhor ressuscitado. Todo o evan- diversas; a diferença principal é que, na alegoria da vide, a chave é
gelho d~ joão deixa transparecer. nos gestos e pa1avras de Jesus, o dada desde o começo. Nas suas homilias, Jo não se atém a um esquema
reconhecimento que, na luz do Espírito, a Igreja tem dele depois da rígido. Na presente, ele mistura imagem e explicação (p. ex., no v. 3).
sua ressurreição. Isto vale especialmente com relação aos cc. 14-17. Para a compreensão é importantíssimo saber se o fundo do pensa-
Não trazem um laudo policial das últimas palavras de Jesus, mas a mento é helenístico-cósmico, ou bíblico-histórico. Se fosse helenístico-
reflexão dos discípulos, iluminados pelo Espírito, sobre o significado cósmico, o primeiro versículo dever-se-ia interpretar como significando
de Jesus, especialmente, de sua morte, entendida como volta ao Pai que Jesus é a vide real (do mundo das idéias) em oposição às videiras
depois de ter realizado a sua obra e missão {14,lss; 17,lss). Este visíveis, que são apenas imagens fracas da realidade prototípica, invi-

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\
i
sível e espiritual (dualismo platônico). Contudo, as continuas referên- de sou exemplo de amor é a mesma coisa (cf. 13,5-10 e 12-16). Por
cias de Jo ao AT e as analogias proféticas de suas imagens nos isso, devemos pensar que os frutosJ aqui, são ao mesmo tempo a fé
levam a pensar que a comparação deve ser entendida a partir da e o agir moral conforme o mandamento do Senhor. O resto do texto
história bíblica. Ora, na história bíblica, a vide ou vinha é Israel (ou torna isto mais claro (cf. próximo domingo).
seus representantes). Então, a oposição, expressa pelo termo «Verda-
deiro:!), não seria entre o visível (físico) e o invisível (espidtual), mas 3. Função na liturgia
entre o Antigo e o NT. Israel é a vide ingrata (como seus chefes eram Se a 3.0 leitura não oferece uma conexão evidente com a 1~ (leitura
os pastores imperfeitos, sua Lei o caminho provisório etc.). jesus Cristo contínua dos Atos dos Apóstolos), tanto mais evidente é a conexão com
(por Jo colocado no lugar do Reino de Deus) é a vide verdadeira, a 2• leitura, tirada da J• Carta de João e expressando as idéias da
que dá seiva e permite produzir frutos.. Para ver mais claramente de observância do mandamento do Senhor, a recepção dos nossos pedidos
que videiras não verdadeiras jesus se distingue, basta ler Is 5,lss e o «permanecer em Deus::>. São as mesmas idéias de ]o 15,4-8. Formam,
(utilizado nas parãbolas sinóticas: Mt 20,lss par); Jr 2,21; e sobretudo portanto, o eixo central da liturgia do dia. Além disto, se deve observar
Ez 17,6. A identificação da vinha com uma pessoa foi facilitada pela que estamos no Tempo Pascal: a liturgia sensibiliza os fiéis pela união
leitura do SI 80(79),15ss (sobretudo na versão grega, utilizada pelos vital com o Cristo ressuscitado, aliás, o único com o qual nos podemos
primeiros cristãos). unir realmente. Sua ressurreição é condição para a nossa união com
A alegoria tem várias aplicações. A primeira, bastante na linha do e1e. Em outros termos, não se propõe aqui uma imitação mecânica do
AT, é a identificação de Deus com o agricultor, aquele que cuida da Jesus terrestre, mas, no reconhecimento que aquele que morreu na
vinha ou vide (cf. Is 5). O conjunto de alegorias mostra, porém, que cruz foi ressuscitado por Deus, ele se torna uma presença imprescin-
o v. 1 não indica tanto o cuidado de Deus para jesus, a vide, mas dível para nós e sua palavra o rumo de nossa vida, unindo-nos existen·
antes, a idéia de propriedade: Jesus é de Deus, e dele são também cialment~ com ele e com o Pai.
os ramos da vide, os fiéis, enquanto pertencem a jesus. Na segunda
aplicação, a idéia da poda ou purificação, o sujeito agente é o agricultor, Bibliografia: Ver próximo domingo.
portanto, Deus mesmo. Temos aqui uma visão bem Joanina: ptla palavra Pe. Johan Konings
de Jesus (v. 3), o Pai exerce a krisis, a separação entre o que é salvo Porto Alegre, RS
e o que é rejeitado (cf. Jo 3,18ss; 5,24ss; 8,50s; 12,47ss). Porém, a
imagem é mais complexa. Não indica apenas a separação entre aqueles Tema Principal
que crêem e os que não crêem na palavra. Diz ainda que os que crêem
são podados pela palavra. A melhor maneira para explicar isto seja ASSIM COMO A SEIVA PERPASSA TODA A ARVORE
talvez a comparação coín o adolescente, que quer ser tudo e não ASSIM JESUS TODA A HUMANIDADE
consegue ser nada, até que se decide a «podar uma série de coisas
da sua vida e assim, determinando-se (delimitando-se, colocando termos
a si mesmo), realiza sua personalidade: O cristão se realiza enquanto Sugestões para a Homilia
«determinado» pela palavra de Cristo. Limitando sua existência dentro
das coordenadas desenhadas pelo mandamento de Cristo - mandamento
do amor fraterno - ele se torna personalidade cristã. E produz fruto. Introdução
A seguinte aplicação considera a união vital entre a videira e os
ramos. Agora, o agricultor ·não é mais considerado; a videira mesma Há uma frase no evangelho deste domingo que encerra um
é o centro da atenção. Por mn jogo de palavras com a preposição em, grande mistério; seus termos devem ser explicados para poder-
se pode dizer que os ramos ficam na videira e a videira (por sua mos compreender suas reais dimensões. Diz Jesus: «sem mim
seiva) nos ramos. Esta aplicação parece dizer que sem a adesão a nada podeis fazer» (Jo 15,5). Para um cristão bem informado,
Jesus Cristo não se pode fazer nada de salvífico. Isto parece fanatismo.
O fundo histórico que estâ atrás desta insistência exclusivista é a esta afirmação não contém problemas. Ele sabe, a partir de sua
rejeição de Jesus como Messias por parte do judaísmo e a atitude fé, que Jesus é o único Mediador e Salvador. Sem Ele, sem
dos gnósticos, que só se interessam nos belos pensamentos de Jesus, sua vida, seus ensinamentos, sua morte e principalmente ressur-
mas o querem tornar supérfluo como pessoa histórica, sobretudo corno reição, estaríamos entregues à nossa própria sorte, incapazes
homem realmente humano e sofredor. Contra estas tendências, joão diz:
sem Cristo, não há fruto de salvação. · de descobrir o rosto paterno de Deus, a face fraterna do próxi-
Os vv. 7-8, que já não pertencem ao mashal propriamente, con- mo e nossa liberdade face aos idolos deste mundo. Sem Jesus,
cluem dizendo que o Pai (o dono da vinha) é glorificado com o fruto em termos de nossa salvação eterna, nada poderíamos fazer. Mas
que os ramos produzem. Porém, ainda não é especificado quais são o que acontece com os demais homens que não tiveram a graça
estes frutos. Se João retoma aqui a idéia expressa nos textos sinóticos que nós tivemos de conhe.cermos a Crislo e podermos ser ramos
(Mt 3,8-10 par; 7,16-20 par; 12,33) o fruto será em primeiro lugar a
conversão, a fé. Mas para joão adesão a Cristo pela fé e imitação vivos da árvore que é Ele? Qual o destino dos homens que

... 190 191


r-
i

viveram antes de Cristo? Eles, mesmo que quisessem, não po- por Ele; todas as pessoas, de todos os tempos e em suas pró-
deriam entrar em contato com jesus, porque Ele ainda nao prias situações são acompanhadas pelo Verbo eterno. Ele é qual
havia entrado na história dos homens. E são milhões e milhões videira cósmica cujos ramos se estendem de ponta a ponta da
de pessoas. E aqueles que nasceram depois de Cristo e vivem história. Todos os homens são ramos desta videira. Mas hã
em culturas que nada sabem nem ouviram d'Ele? Vale também ramos e ramos. Os que se abrem à luz e em tudo procuram
para eles a frase do evangelho: «Sem mim nada podeis fazer?» o honesto e verdadeiro são vigorosos e cheios de vida. Os que
Não seria isto fanatismo de um grupo religioso, entusiasta de vivem d11 mentira e gostam do escuro, definham e morrem. Assim
seu fundador, mas sem sentido de realidade e das reais propor- entendemos a palavra de Jesus: •Eu sou a videira e vós sois os
ções da história humana? ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito
;
Não estamos diante de uma frase de um grupo fanático, fruto. . . O que não permanece em mim é lançado fora como
1. mas de uma profissão de fé acerca das dimensões do mistério o ramo e seca» (]o 15,5-6). Portanto, as palavras de Jesus
de Jesus. A epistola de S. João, lida neste domingo, nos recorda sobre a videira e o permanecer ligado a ela não devem ser
que «Deus que tudo conhece, é maior do que o nosso coração» entendidas apenas segundo a carne, mas principalmente segundo
{ljo 3,20). Jesus de Nazaré, homem que andou entre nós, é o Espírito; não apenas válidas para quem conhece jesus Cristo,
maior do que a história que o acolheu. Ele possui a grandeza mas para todos, mesmo que não o conheçam, porque ninguém
e a dimensão de Deus. Reflitamos sobre esta verdade, pois se encontra fora da atmosfera que é Cristo.
assim descobrimos o acerto da frase: «Sem mim nada podeis O ramo não tem vida independente. Ele a recebe do tronco.
fazer». Recebe-a à sua maneira, produz as suas folhas, dá as suas
Corpo flores e cria os seus frutos. Não é o tronco que produz tudo
isto, mas o ramo. Entretanto, só o produz na medida em que se
1. jesus segundo a carne e jesus segundo o Espirita
encontra ligado ao tronco e recebe a seiva dele. Analogamente
O próprio evangelista S. João nos ajuda a entender que «sem ocorre com cada homem e Jesus Cristo. Há um laço secreto
Jesus nada podemos fazer». Em seu Evangelho, S. João narra que os une. Na eternidade todos saberemos o quanto é verdade
as palavras e os gestos do Jesus segundo a carne, mas inter- a frase: «Sem Jesus, nada podemos fazer».
pretados à luz do Jesus segundo o Espirita, do Jesus celeste
e ressuscitado. Em palavras bem simples: em todas as palavras Conclusão
e gestos de Jesus S. João é capaz de ver palavras e gestos de Não depende de nós a existência da videira que é jesus· e
Deus; vê uma luz que se esconde nas dobras da vida terrestre dos ramos que somos nós. Deus nos criou no Filho Jesus, como
de jesus. Esta luz é a dimensão divina de Jesus. Então a frase: imagens e semelhanças de Jesus. Mas depende totalmente de
«Sem mim nada podeis fazer» equivale a esta: «Sem Deus nada nós sermos ramos vivos ou mortos, darmos frutos ou apenas
podeis fazer». E isto nem precisamos explicar, porque, efetiva- vegetarmos. O Evangelho nos garante: «Se derdes muitos frutos,
mente, sem Deus o homem não se sustenta, não existe jamais meu Pai será glorificado. Se derdes muitos frutos sereis, então,
sozinho, mas sempre acompanhado e penetrado da presença meus discípulos» (]o 15,8). Glorificando o Pai e sendo discipulos
divina. de jesus estaremos para sempre no Reino de Deus. A nossa vida
Sempre, portanto, que lermos os Evangelhos devemos reter terá sido proflcua e será eternamente vida feliz.
estas duas dimensões: a dimensão da carne, daquilo que é nor-
malmente compreensivel, daquilo que é histórico e a dimensão Leonardo Boff, O.F.M.
Petrópolis, RJ
do Espirito, daquilo que é divino, trans-histórico. O jesus-homem
que nos fala, revela o Jesus-Deus que nos visita.

2. jesus, Homem-Deus qual videira cósmica


Como Deus, Jesus é, na expressão feliz do prólogo do
Evangelho de S. João, «a luz verdadeira que ilumina todo homem
que vem a este mundo» (1,9). Ninguém deixa de ser atingido
192 193
..
'

1
Sexto Domingo da Páscoa importância da perlcope, não querer corrigir. O conteúdo essencial
é . a_ atividade salutar de jes?s de Nazaré e a confirmação de sua
Pistas Exegéticas mts~ao por obras, em especial pela ressurreição. Os apóstolos são
enviados do mesmo Jesus e devem apontar o caminho da salvação
pela adesão a Cristo pela fé.
Primeira Leitura: At 10,25s.34s.44·48
1 <Deus não faz distinção de pessoas> (v. 34) - é alusão a ISm 16 7
texto relativo à eleição de Davi: «O homem vê a aparência, mas'~
Lucas, depois de narrar a conversão de Paulo, destinado à IDissao
1 entre os pagãos, aponta um fato novo: a abertura de Pedro para os Senhor olha o coração>. É 1.Jma convicção que Pedro adquiriu agora
gentios, ao constatar que o dom do Espirita Santo se difundia também graças à visão de jope (10,9-16), ilustrada pelo caso-Cornélio. Teori~
sobre estes. Com efeito, At 10,9-23 relata a visão de Pedro em Jope e camente ele admitia que em Deus não há distinção de pessoas (cf.
sua ida a Cesaréia com alguns «irmãos>, para a casa de Cornélio. 2,38; 3,26; Is 2,2ss; 49,1-6; jl 2,28; Am 9,12; Mq 4,1). Contudo, no
Deu-se a ação conjunta do humano e do divino: o Espírito Santo contexto, Pedro, como todo bom judeu, não conseguiu disfarçar de·
interfere na vida de ambos, os quais são importantes para a execução todo um certo favoritismo por Israel. Na história da salvaçãó quando
do plano de Deus. E a Igreja que, dócil ao Espírito Santo, percorre Deus a oferece, não adota critérios humanos: para Ele não 'valem a
o caminho de jope até Cesaréia (50 km), a fim de constatar a obra posição, a ·descendência, a raça, o povo, a diversidade de religião. o
divina. Pedro ó o grande mediador na perspectiva de Atos e o tes- q?~ vale é o temor de Deus e a prática da justiça. E o caminho sal-
temwiho dos cseis irmão&» será eficaz no momento em que ele preci- v1f1co d~ !gi;eja em/por jesus Cristo, cujo múnus é mostrar que está
sar justificar seu proceder perante os Irmãos de jerusalém (11,12). aberto 1nd1stintarnente a todos aqueles que, venerando o mistério de
Neste contexto dá-se o memorável encontro Pedro-Cornélio, cena que Deus e buscando o direito e a justiça, o procuram de coração sincero.
comprova a vocação e atuação de Paulo: evangelizar os pagãos. Im- E a tese de Paulo em Rm 1,16 e 3,21ss, em 01 3,26ss.
pressiona em Cornélio o desejo de salvação. E todo o paganismo que As palavras de Pedro foram confirmadas pelo testemunho do Espírito
anseia pela mensagem salvífica. Cornélia aguardava, cercado de mllitas Santo (vv. 44-48), o qual, enquanto Pedro falava, foi infundido também
pessoas - amigos e parentes - como ele tementes a Deus e à pro- sobre os pagãos. Na história de Cornélio se verifica o cumprimento do
cura da verdade. Sabe-se que no seio do paganismo havia gente sincera plano divino: o encontro de Pedro com o centurião marca a importân-
e de bom cunho espiritual, preparada para o Evangelho, mais talvez cia do novo rumo que a obra da salvação assunie. Como em Pen-
do que o judaismo retrógrado e teimoso. Não dissera jesus a respeito tecostes, quando o Senhor ressuscitado, para justificar o inicio da obra
do centurião de Cafarnaum: «Digo-vos que nem mesmo em Israel salvífica da Igreja, se manifestou na vinda do Espírito Santo e no
encontrei tanta fé» (Lc 7,9)? dom das Unguas, - agora também se verifica na casa de Cornélio, em
A prostração de Comélio, à chegada de Pedro, exótica para um Cesaréia, um novo Pentecostes, corno sinal de uma nova etapa: o
romano e vezeira entre os judeus (Gn 33,3; lSm 24,9; Est 3,2), exprime início da evangelização dos gentios. E o Pentecostes dos pagãos. Pedro
veneração pelo sobrenatural nele existente. O apóstolo recusou tal honra. mesmo confronta os dois fenômenos (10,47; 11,15; 15,8), O evento
É possível que, naquele instante, tenha evocado uma atitude sua idên-
tica, quando, prostrado aos pés de Jesus, proferira estas palavras:
«Afasta-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador» (Lc 5,8;
pesca milagrosa). Não terá lembrado outrossim a !alba lamentável, no
pátio de Caifás, negando a jesus? Pedro, não aceitando a deferência
do centurião, aponta para o exemplo que a Jgreja deverá seguir: voltar
l contrastou com a mentalidade fechada dos judeus (e!. Rm 9-11).
Aqui, como em Jerusalém, homens - amigos, familiares, servos de
Cornélio - são arrebatados pelo Espírito Santo, ·falam em várias linguas
e glorificam a Deus. Ainda não são batizados, apenas foram cativados
pela mensagem salvífica proclamada por Pedro. São sinceros abertos
e dispostos. Eis o valor que a Palavra possul para a sal~ação ! A
sempre ao gesto humilde e despretensioso de Pedro. O culto à pessoa Palavra é sumamente eficaz se é dirigida por quem tem fé e se é
e às honras faciJmente encobre o caminho que Jesus trilhou - o da acolhida por quem é disponível e aberto. Tudo é obra do Espírito"
cruz, o da humilhação, o da «quenose> (cf. Fl 2,5-11). Santo. Será que nossa pregação propicia a vinda do Espírito sobre
Pedro, esclarecido por visão, falando ao grupo, assegura que pe- os ouvintes? O Pentecostes de Cesaréia é um sinal de que a Igreja
rante Deus nada é impuro. Ademais, pede explicação do fato de Cornélia e Pedro estão certos, quando se dirigem à casa de tantos outros «Cor-
o haver chamado para sua casa. Este lhe afiança ter sido, por sua nélioS>. Os companheiros de Pedro, judeu-cristãos, puderam testemunhar
vez, objeto de urna visão divina, em decorrência de sua oração e de admirados que o dom do Espirita Santo se difundia também sobre os
suas esmolas. O centurião e os seus estão de ouvidos atentos às pa- pagãos, sem que passassem por Moisés.
lavras de Pedro, que assim falou: «Em verdade reconheço que Deus O chefe dos apóstolos reconheceu o sinal do Espírito e, aos poucos,
não faz distinção dê pessoas, mas em toda nação lhe é agradável aquele foi se libertando da mesquinhez da mentalidade judaica. A salvação
que o temer e fizer o que é justo» (vv. 34s). Os 2 versos são o inicio é para tódos. Se Deus concedeu o batismo no Espírito, como pode
de um discurso resumido sobre verdades básicas· do anúncio da salva- a Jgreja negar o batismo com água? Note-se uma pergunta similar
ção, perante um auditófio não-Jsraelita; é um sermão missionário dis- do etíope a Filipe (8,36). E ordenou que todos fossem batizados «em
tinto dos anteriores (a judeus), onde se omite·m os argumentos bíbli- nome de jesus Cristo>. Os apóstolos em geral não batizam. Delegam
cos, embora não faltem reminiscências vétero-testamentárias. A estrutura os outros (cf. !Cor 1,14-17). O batismo cem nome de jesus Cristo>
literária é pobre, por ser Pedro imperito no grego e Lucas, dada a é expressão que designa o batismo cristão com fórmula trinitária ( cf.

194 195

Didaquê, 8,t-3). E o único caso em que o Espírito é infundido antes fraterna. O conhecimento de Deus como Pai amãvel estã impregnado
do batismo. Deus. quer convencer de que não é preciso passar pelo de amor e condicionado pelo mesmo (Rm 8,15; GJ 4,6; t Cor 8,3). Para
mosaísmo para pertencer à Igreja e receber o Espírito Santo. Se Pedro conhecer a Deus e permanecer nele é preciso arnã-lo. e.Conhecer> na
os manda batizar, após receberem o Espirita Santo, é porque os quer Bíblia é possuir aquilo que se conhece, é estar em comunhão com ele.
agregar à comunidade cristã. Com isso aumenta o número dos fiéis e Os três atos - nascer, conhecer e amar - estão intimamente ligados.
abre-se um novo caminho para a Igreja realizar, na liberdade do Espi- No v. 8 há, como fator de aprofundamento, o paralelismo antité-
rita, a salvação universal. O «ficou com eles alguns diaS» (v. 48) é tico: quem não ama divinamente prova não ter atingido o verdadeiro
símbolo de que a Jgreja foi ao encontro dos gentios. conhecimento de Deus. Antes (3,11.23; Jo 13,14; 15,12), o amor vinha
Bibliografia: CI. Vigília de Nata1 do Ano B (2" leitura), acima, p. 43.
mais como preceito, como um «espírito», como obrigação. Agora, João
o apresenta como postulado da natureza divina, existente e atuante em
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C. nós desde o batismo. Amamos como Deus ama. Possuir ciência teológica
Santa J\laria, RS (tipo gnóstico) ainda não é ipso-facto um verdadeiro conhecimento
(!Cor 8,2; Rm l,28s). O conhecimento de Deus em S. João não é
apenas racioc1nio; pressupõe uma relação intima e pessoal com Deus,
Segunda Leitura: lJo 4,7-10 proveniente de experiência viva e amorosa. Só quem ama pode conhecer
a realidade íntima das pessoas e coisas; quem não ama, não chega a
Contexto anterior. Tratava-se de viver qual filho de Deus, rompendo com o isto. O ato de fé não fica no enunciável, mas busca a realidade (ST,
pecado, observando os mandamentos -:-- em especial o do amor - e crendo em
Cristo. Sô assim seria posslvel a uniao com Deus (kolnonla). É preciso, ademais, 2-2, q. 1, a. 2). Só quem ouve a Palavra e a põe em prática pode
discernir os espiritos desconfiando dos falsos profetas, e precaver-se dos caminhos afirmar que conhece a Deus. Tal conhecimento se torna perfeito pela
do mundo, enquanto 'se contrapõe a Deus.
obediência e fidelidade (Os 4,6; 6,6). Sem caridade fraterna não há
Nosso texto. S. joão, bruscamente, do tema da fé volta à tec1a do conhecimento pleno de Deus, porque Deus é amor. Esta é a melhor e
preceito universal do amor - o ágape (3,l l.23; 2,15), com o seu mais cabal definição de Deus e o ponto culminante da Revelação. Assim
costumeiro apelo, carregado de afeto: «Caríssimos»! Assunto central sendo, o amor é o atributo cUvino que mais leva a conhecer sua na-
desta secção é a predileção, que não é uma obrigação arbitrária, mas tureza, que melhor a revela.
uma exigência da natureza, porque Deus é amor (4,16). Ele, ao gerar O Sermão da Montanha propugna o amor do Pai, generoso até
cristãos para uma nova vida, lhes comunicou sua própria natureza e para com os pecadores e inimigos (Mt 5,43-48; Lc 15,7-10; Mt 9,13).
viâa. Resulta então que os fiéis podem amar como o Pai celeste, A vida de Cristo é vida de amor, benignidade e paciência, dando a
enquanto o exercício da caridade, nos cristãos, provará a sua filiação vida em resgate dos que ama: é o auge do amor (Rm 5,8; 8,32; 8,39).
divina. Aqui está a culminância do «ágape» de S. joão. O amor é uma O amor para S. João já não é tanto um atributo, quanto a própria
participação da vida de Deus, é uma realidade que procede dele, é natureza divina. É o apogeu da mística e do pensamento humano. l?
«Ser de Deus» (5,19). O amor vem a ser o critério de como discernir o que há de maior. Dizendo-se que Deus é amor, é tudo. O amor não
os bons dos maus, os de Deus e os do mundo: estes odeiam, aque1es é só uma das atividades de Deus. Toda sua atividade é amor, tudo
amam; se o mundo ama (philein) - seu amor é fingido. que' faz é por amor. O AT é uma história do amor divino: criação,
O amor autêntico deriva de Deus como de sua fonte: quem ama revelação, aliança, redenção, providência, misericórcUa, paciência (On
irrestritamente, nasceu de Deus (v. 7; 2,29; 5,1), é filho de Deus, está 1,28-30; Ex 33,IBs; Os 11; Jr 3,12; SI 135; 144,8).
animado de sua graça (3,9). O amor fraterno é efeito inevitável de Contudo, é no NT que o amor se revelou mais pleqPiµiente nos
nosso novo nascimento sobrenatural Fazendo-nos participantes de sua mistérios da encarnação (Jo 3, t 6), da redenção e da graça,'-quando o
vida e natureza, Deus fez-nos também participantes de sua caridade. amor da Trindade é irracUado por sobre os homens. O amo:r do
O amor mútuo não surge por conveniência moral ou atitude de perfei- cristão, em conseqüência, é participação do amor de Deus. Donde ser
ção ideal. É antes um movimento· vital resultante da nova natureza, a o Cristianismo a religião do amor. O amor a Deus e· ao próximo são
divina (5,19; 4,4; 4,2s.6; 3,10). A predileção não é um sirnp1es dom da mesma natureza, porque a essência de Deus é amor - revelação
divino, nem uma graça carismática passageira, mas está em íntima suprema do NT. joão intuiu o amor como manifestação de Deus através·
conexão com o novo nascimento em ordem à filiação divina, quando da pessoa, vida e doutrina de jesus (Mt 11,27; Lc 10,22; 1ágape• no
nos trailsmitiu sua vida e natureza. O amor é fruto do germe divino clássico, na LXX, significa manifestação de amor, como prova de ami-
recebido no batismo. Em Rm 5,5 parece que é o Espírito Santo quem zade). Deus é amor, dom e comunicação total .de si desde a eterni-
ama dentro de nós. Entretanto, S. João esclarece: o próprio cristão é dade, amor perpetuamente em ato e subsistente.
1 que ama por si mesmo, em virtude de sua fi1iação divina, com a qual ·Nos vv. 9-10 aponta-se a encarnação como revelação e manifestação
pode amar divinamente. A caridade confere ao crente a possibilidade surpreendente do amor divino, quando este se tornou evidente e pal-
de entrar em comunhão com Deus e conhecê-lo - conhecimento que pável na vinda do Filho unigênito (monogenés = único-.. e bem amado)
vai de par em par com o amor fraterno. Quem ama, conhece a Deus, para salvar-nos. É o texto joanino que melhor expressa a epifania da
revela Deus, é de Deus e está em comunhão com Ele. Amor e co- caridade (Spicq). O verbo «ephanerõthe» (manifestar-se), no aoristo,
nhecimento crescem paralelamente e se complementam (2,3-11). Filiação sugere que o Amor se revelou em tempo determinado. Na perspectiva
divina e conhecimento de Deus são princípios e fundamento da caridade de S. joão, a encarnação é um fato que já se realizou, porém, se

196 197
VY. 7-10
perpetua, é de permanente atualidade (Jo 14,23; uso do perfeito
<apéstalken»). Cristo continua vindo a nós pela graça, para infundir Se as minhas palavras perma· 7 17 lsto vos ordeno
vida. Semelhante ·mediação vivificadora decorre de sua encarnação ( = o necem em vós
dom do amor de Deus), de sua morte e de sua glorificação (Jo Pedf o que quiserdes, ser· 7 16 O Pai vos dará o que pedirdes
l,14.17s; 7,39; 17,19; ljo 1,7; 2,2; 4,10). «Para que vivamos por Ele>. vos-á dado
A encarnação para o Pai é missão, delegação envio. O Enviado possui Produzir frutos 8 16 Produzir frutos
missão especial: falar e agir em nome do P~, representá-lo junto - aos Tornando-vos meus discípulos 8 16 Eu vos escolhi
homens. Portanto, é o Pai que se revela amor; não mandou qualquer 15 Eu revelei o que ouvi do me.u Pai
um, senão o seu próprio Filho, unigênito, muito amado. Isto prova O Pai me ama 9
quanto amor Deus tem por nós, pois não duvidou em sacrificã-lo por 15 Eu vos chamei de amigos
Eu vos amei 9
nós. Se o mandou a este mundo, foi para que os seus filhos pudessem Vós permaneceis no meu amor 10 14 Vós sois meus amigos se- fazeis
unir-se a Ele (Jo 1,4; 5,26; ljo 1,2), ter a vida da graça e da glória. se observardes meus mandamentos o que vos ordeno
Os 3 grandes mistérios da nova aliança - encarnação, redenção, graça
- resumem o Evangelho. Paulo e joão os entendem como concebidos
e realizados pelo infinito amor de Deus. 12 Meu mandamento: amai-vos ....
O v. 10 ostenta a maravilha do amor cristão: não fomos nós -que
o amamos. Ele amou-nos primeiro, enviando-nos seu Filho para expiar v. 111 Dlss~vos lsto para que a minha alegr1a
esteja em vós
nossos pecados. Nosso amor não foi senão uma resposta a quem nos r

amou desde sempre. A iniciativa da salvação cabe ao Pai, o qual enviou


seu Filho ao mundo com a missão de ser vitima expiatória de nossos
pecados. Jesus Cristo é propiciação (hilasmós) pelos pecados da huma-
nidade, pOrque aplacou a justiça divina ofendida, obtendo assim para
os pecadores a possibilidade de participar da vida divina (Jo 3,16;
ljo 2,2; 4,9s). Outra não é a doutrina paulina (Rm 5,8; 8,32; Ef 2,4s;
Tt 3,3-7). O amor de Deus se patenteou misericordioso, desinteress.ado,
gratuito, generoso. Não nos amou a titulo de reciprocidade, mas espon- O . núcJeo _central da unidade é portanto a comunicação da verda-
taneameote, porque sua natureza é amor. Se põe à morte até seu Fil~o de!fa alegna, que é a conoeqüência da observância da palavra (man~
damento) do Senhor, ou seja, do amor fraterno.- -
amado é porque deseja atrair a si os que tenciona salvar. Nas Odes
de Salomão (s. li) hã a seguinte reflexão: <Não teria sabido amar o ·Enquanto os vv. 7-8 relacionam o cpermallecer em Cristo» (cf. com.
Senhor, se Ele não me tivesse amado primeiro» (3,3). do dom. anterior) com a eficácia da oração - para a glória do Pai
-, os vi:'· 9-10 explicam em que consiste concretamente este «perma-
Bibliografia: Cf. 2<> Domingo de Pâsi;:oa do Ano R t2' leitura), adma, ã p. 157. necer»: e o. pe~manecer no amor. jesus começa pela fonte: o Pai.
Ele ~mou . pnmelfo (cf. IJo 4,10 etc.}. Cristo, palavra do Pai, amou
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C. tarnbem: os «seus». E estes são solicitados para ficarem no seu amor.
Santa Maria, RS Amor de Cristo: isto é, que vem do Cristo, através de sua paJavra
seu : mandam~nto. Co'!1o_ Jesus fic?u no amor do Pai, guardando su~
pal~vra, assim o cr1stao ~eve ficar no amor. de Cristo, guardando
Terceira Leitura: Jo 15,9·17 sua -paJavra. Aparece, aqui, que «amor» em João não é uma coisa
sentimental, mas a Jnesma coisa que Paulo chamaria de «obediência»
1. Contexto da perlcope: cf. domingo anterior (Fl ·2,6-12). É união de vida, não uma sensação sentimentaJ mas um
d~sppr ~ua me~te e ativ!dade para o pJano do Pai. E ent~egar sua
2. ]o 15,9-17 v1d~, Nisto esta a alegr1a - a «reaJização» - de Jesus, e e1e nos
en~m~ este segredo para que a nossa alegria seja compJeta: esta é
Os vv. 7-17 de Jo 15 formam um conjunto, delimitado pela inclu-
são literária «pedir ao Pai, permanecendo em Jesus~ (v. 7), ou _cem a 1dé1a centrai d.a presente perícope. Aqui, devemos recordar o começo
seu nome» (v. 16). _As idéias concentram-se em redor do v. 11, sobre do mashal da videira: a palavra de Cristo nos purifica e nos torna
fecu~dos (Jo 15,2-3); .e a ?hed}ência à mensagem de Cristo que nos
a alegria completa. Pois a mútua imanência de Jesus e os discipulos
permite uma verdadeira «reahzaçao», nos dã uma personalidade definida
- aplicação do mashal da vide nos versículos anteriores, sobretudo faz com que nos sejamos alguém e valhamos algo. ,
vv. 5-6 - tem. como resultado ser ouvido pelo Pai, já que ele é glori-
ficado pelo fruto desta união: fruto que é a caridade conforme o amor 'A nossa identidade é sermos aqueles que pertencem à caridade
que o Pai manifestou no Filho, e que é o conteúdo da «palavra» na exercida conforme o espírito de Cristo. Buscar realização e contenta~
qual os discípulos devem permanecer. R. E. Brown visualiza is!.,, no mento numa . outra direção, é contrário à nossa identidade. E trata-se
de urna caridade que não nos pertence. Muitas pessoas enganam-se
seguinte esquema:

198 199
r
neste ponto. Festejam à vontade, e fazem caridade dando as sobras da
mesa para a negrada, como dizem. . . ExpJoram seus empregados e prios, mas porque o cjusto e Fiel> os designou para isto. Por causa
depois fazem caridade aos filhos dos mesmos (que têm tão lindos disto, os frutos que produzem são realmente glória do Pai, confir-
olhos cheios de agradecimento ... ) . Ou delimitam-se um mundo de que mação do sentido absoluto da vida que os torna diforentes do mundo
judaico e de qualquer mundo auto-suficiente.
eles são os donos, da caridade e de tudo. . . Isto não é o que Cristo
nos diz. Ele quer que a nossa caridade permaneça fiel à sua palavra, Para terminar, Jesus resume ainda uma vez seu preceito: amai-vos
que é a de Deus. A caridade não é uma veleidade, mas uma obediên- uns aos outros. Pois este é o critério, que, embora não exclusivo é
cia a um preceito. Não somos nós que inventamos. Colocamo-nos a especifico do cristão: quem ama à maneira de Cristo é Cristão' e
serviço do apelo que vem a nós, muitas vezes, num modo e numa continua sua obra. '
aparência que não nos agrada nada. Por exemplo, na forma da exigên-
cia de uma nova estrutura da sociedade, uma estrutura que não. nos 3. Função na /ilurgia
permite ser tão «donos» corno éramos, para que haja mais garantia de Como no domingo anterior, também no presente a relação entre
justiça para todos. a 2' leitura e o evangelho é evidente. O cristão permanece no amor
Depois da frase central (v. 11), o terna é aprofundado na ordem que vem de Deus (pois Deus é amor, Ijo 4,8), e que se manifestou
contrária. O v. 12 especifica agor.a, explicitamente, o «permanecer no em Jesus Cristo. Nesta imanência no amor, ele se pode dirigir a
amor de Cristo:&- como sendo o amor mútuo conforme o modeJo do Deus com confiança: não lhe faltará nada que for preciso para viver
amor de Cristo. E este modelo é claro: é a doação da vida pelos esta união vital. Sua existência será uma glorificação (honra e mani-
camigos~ (ou por quem se ama) (v. 13). Para que não haja dúvida festação) de Deus mesmo. E esta serã sua alegria.
sobre quem são os amigos, pelos quais o que ama dá a sua vida, .A. liturgia deverã ser conduzida de tal modo, que sensibilize os
v. 14 continua: «Vós sois meus amigos~. Como já dissemos, porém, participantes para o que se pode chamar a «existência pascal> do
amor e amizade não é coisa sentimental. E união da vontade: fazer cristão. É uma existência diferente da natural, carnal. ~ unida com a
o que o Senhor ordena, guardar sua palavra. Isto faz parte da lógica do Ressuscitado. Seu critério não é a satisfação dos desejos ou pro-
do amor. Se o preceito de Jesus é o amor, quem não o observar não jetos imediatos da vida natural, mas a plena alegria de permanecer
participa do seu aroor. O v. 14 só se entende se a gente sabe que no Deus-amor e de revelá-lo pela caridade vivida em atos.
o preceito de Jesus é o próprio amor.
O v. 15 traz uma idéia que já apareceu em jo 8,32ss: a idéia de Blbllografla: Comentários de R. E. Brown (Anchor Blbl~, R. B u 11 ma n o
(Meyer). R. Se h na e k e n b u r g (Herder). S. Se b u J z N.T. Deutsch). e.
que os discípulos - agora «amigos::> -, são «gente da casa». Eles H. D o d d, A lnterpretaI-ilo do Quarto Evangelhl!i São Pa o, Paulinas, 1917;
sabem o que seu amo faz, participam na realização de sua vida. J. K o n 1 n g s, Encontro com o Quarto Evangelho, :t'etrilpoHs, Vozes, 1975.
Este saber recebe aqui a categoria de revelação. O que jesus nos
ensina, vem do Pai. Traduzido em tennos existenciais: o mandamento Pe. johan Konings
do amor não é opcional, mas a expressão do Absoluto da nossa Porto Alegre, RS
existência~_ E assim como ele mesmo do Pai saiu e a ele volta (13,1),
assim também sua reflexão que saiu da consideração da glória do Tema Principal
Pai (vv. 7-8), agora volta a este tema (v. 16). Somente, a função
mediadora do Filho .. fica mais clara agora: ele escolheu os seus 3-Jlligos A MANIFESTAÇÃO DO AMOR DE DEUS EM JESUS DE NAZARB
para que andando seu caminho produzissem frutos para o Pai -:- e E O AMOR CRISTÃO
o Pai lhes dará tudo o que se insere nesta união de vida Pc:iucas
são as frases que com maior densidade resumem a existência do ~van­
gelizador. A iniciativa vem de Deus, através de Jesus Cristo. Ninguém Sugestões para a Homilia
se constitui apóstolo a si mesmo. Aliás, não seria possível, pois a
palavra de Deus, que trazemos «:corno em vasos de argila», nos trans- Introdução
cende, fica sempre uma surpresa para seu próprio portador. Atraídos «Amor» é uma das palavras gastas pelo uso. Palavra que
pelo amor convidativo do Cristo, o cristão se coloca a serviço desta
iniciativa. É bom lembrar-se em que consistiu, concreta e historicamente, talvez ainda continue a chamar nossa atenção. Que talvez ainda
o que joão expressa aqui na frase altamente teológica do v. 17: jesus pareça ser uma palavra-chave para qualquer -pessoa de «bons
de Nazaré tratou de renovar, qual um profeta, a vivência religiosa sentimentos». Que talvez ainda represente obviamente um valor
dos que se chamam os filhos de Abraão (cf. jo 8,39ss). Para. este indubitável.
fim, reuniu em seu redor pessoas que, aos poucos, foram participan-
do do mesmo critério transcendente que o conduzia. Aos poucos tam- Mas, pensemos bem, se não há aí um engano. Uma doce
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bém, foram pertencendo menos ao «mundo», mesmo ao mundo reUgioso ilusão. Quando falamos de amor, falamos de quê? De um sen-
de seu tempo, e mais absolutamente ao apelo transcendente. Tornaram- timento? De um calor que dá lá por dentro? De um respeito
se inadaptados. Tudo isto, não porque o desejavam ou porque de. ma- abstrato ao outro que é tanto mais fácil de ter, quanto mais
neira auto-suficiente procuravam sua realização conforme critérios pró- louge o outro está? Ou quanto menos necessidades o outro iem?
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Esse é o «amor» que nos infundem as novelas da televisão a 2. A manifestafão concreta do arizor de Deus
p~opaganda comer~ial, os «~onhos» da adolescência. «Amor» que • O amor é concreto. Por isso temos em Cristo a manifesta-
nao passa de ego1smo, pois procuramos a nós mesmos, nosso ção histórica do amor de Deus. «Ninguém tem maior amor do
bem-:star, e não o outro. Amor fácil, porque não precisa sujar que aquele que dá a vida por seus amigos» (Jo 15,13).
as maos com o concreto. · Embora «dar a vida» seja algo muito concreto e palpável,
Hoje a liturgia nos convida a refletir sobre o amor, sua estamos tão acostumados a ver a cruz de Cristo, que dela já
verdadeira natureza, sua fonte, sua concretização. não luz tão obviamente o amor. Os próprios símbolos e imagens
que deveriam tornar próxima a expressão do amor de Deus na
Corpo cruz se tornaram corriqueiros. A cruz, de instrumento de suplí-
cio, se fez adorno. Foi estilizada em obra de arte.
1. «Deus é amor». Que amor? Só reconhecemos na verdade o que significa o amor de
A primeira epístola de São João traz aquela expressão la- Deus, na medida em que concretizamos o que foi a morte de
pidar, tantas vezes repetida~ «Deus é amor» (lJo 4,8). Acostu- Cristo: conseqüência de uma vida que provocou ódio, divisões,
mados com o desgaste da palavra «amor», essa «definição» de escândalo. E por quê? Não é Jesus de Nazaré a manifestação
Deus, isolada do contexto, pode dizer-nos muito pouco.: Ou do amor de Deus? Justamente por isso a resposta foi ódio e
pensamos que ela diz muito, quando na verdade bem pouco diz. desamor. Estranho? Então tente instaurar amor num ambiente
«Deus é amor» não nos informa puramente sobre a natureza de ·ódio e desunião! Verá.
interna de Deus, mas sobre sua atitude para conosco. Que Deus Jesus quis concretizar o amor de Deus, mostrando amor aos
é amor, não se manifesta por declarações ou declamações, mas que mais necessitavam dele. Dirigiu-se aos pobres, aos doentes,
pelo amor que Israel e a Igreja descobriram em sua experiência aos marginalizados, aos pecadores. Mostrou-lhes que a lei e os
histórica de Deus. costumes que os mantinham na posição de objetos não vinham
Basta lermos o texto da primeira epístola de São João para de Deus. Deus queria fraternidade. Os homens não eram irmãos,
sabermos que Deus manifestou seu amor ao enviar seu Filho pelá culpa dos homens.
unigênito ao mundo (v. 9), ao libertar-nos do pecado (v. 10), Mas, para implantar amor, não basta falar, explicar as
ao dar-nos vida em seu Filho (v. 9). Sua ação histórica, con- razões do desamoF. É preciso agir, porque o amor não são pa-
creta, mostrou-o como o Deus-amor. Amor não é uma palavra lavras, são obras. Jesus agiu. Mostrou-se irmão dos que não
altissonante para definir a Deus. Amor são atos concretos em eram tratados como irmãos, dos que não tinham irmãos. Mas,
meio à história dos homens. com isso, desgostou os monopolizadores dos direitos e privilé-
O amor de Deus, o amor tão humano de Deus, é para nós gios da sociedade de então. A «ordem» vigente foi abalada ..
termômetro do amor. Quem é de Deus, ama. Quem nasceu de Como ousava o carpinteiro de Nazaré desafiar a desigualdade
Deus, ama. Quem «conhece» a Deus, ama. Ama a quem? O que os poderosos diziam sancionada por Deus? «Crucifica-o».
texto da leitura de hoje é muito claro: ama o próximo. «Amemo- O amor de Deus manifesta-se em Jesus bem concretamente,
nos uns aos outros» (lJo 4,7). Se o amor de Deus se mani- encarnado nas circunstâncias sócio-polítitas e religiosas da épo-
festou no amor aos homens, também o amor dos homens deve ca. «Dá a vida por seus amigos»: morre, porque se mantém
manifestar-se no amor aos semelhantes. solidário com os desclassificados e ensina-os a descobrirem que
É assim que faz quem «conhece» a Deus. «Conhecer» na
são homens, irmãos dos poderosos, filhos de Deus.
teologia de João não é só tomar conhecimento de algo, estar E a ressurreição confirma sua vida como expressão do ver-
informado sobre algo. «Conhecer» é mais: é saber, é amar, é dadeiro amor de Deus.
viver de acordo com o que se sabe, é saber experiencialmente.
3. Um exemplo concreto
Por isso, quem «conhece» a Deus, faz como Deus faz .. Seu
amor é como o amor de Deus: é amor aos homens. Essa atitude ' A primeira leitura nos diz como os cristãos entenderam o
pertence de tal forma ao conhecimento de Deus que, quem' não caminho de Jesus e o trilharam com coragem, embora não sem
ama seu irmão, não conhece a Deus. · relutância.

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A divisão entre judeus e pagãos era o problema social fun- diferente a resposta. Uma coisa é certa: não basta afirmar que
damental do cristianismo primitivo. Em termos modernos fala- «Deus é amor». Amor é concreto. E o concreto é doloroso,
ríamos de racismo e «apartheid». Entre judeu e pagão não havia conflitivo. Mas também pascal, porque é através do amor con-
comunhão possível. Que fazer com os pagãos que ouviam e creto que experimentamos a ressurreição em nosso dia-a-dia.
aceitavam a mensagem de Jesus ressuscitado? Deveriam tornar-se
judeus? Ou os judeus deveriam reconhecê-los como irmãos, sem Francisco Taborda, S.J.
condições prévias? São Leopoldo, RS
Aqui o amor se tornou concreto para os primeiros cristãos.
Aqui eles podiam provar se «conheciam» a Deus, se haviam
entendido a Jesus.
Quando o amor se deve tornar concreto, é difícil amar.
Também para os primeiros cristãos. Até para os apóstolos. É
o que a primeira leitura nos mostra. Dizer «somos todos irmãos»,
é bonito. Viver com um pagão como irmão, é outra questão.
O amor precisa ser como que «imposto» da parte de Deus pela
ação visível do Espírito Santo (cf. At 10,47). É sempre assim:
o homem gosta de falar de amor e ouvir falar de amor. Mas
traduzi-lo no concreto é desagradável, incômodo, porque exigente.
4. Hoje não é muito diferente . ..
Que significa o amor concreto hoje? Onde o Espírito Santo
tem que «impor» o amor concreto a nós cristãos? Basta abrir-
mos os olhos. Não temos todos um pouco de racismo? Não
têm as classes alta e média ccmsciência de superioridade, e a
classe baixa consciênci:i. de inferioridade? Qual é o patrão que
chama o empregado à sua mesa para a refeição? E qual o
empregado que se sente bem em tal amb'.ente? Tudo isso ma-
nifesta algo mais básico: nossa sociedade calcada em moldes
capitalistas, nosso sistema sócio-econômico capitalista periférico
dependente.
O amor concreto precisa ver essa realidade. Que é amar
num país com tais estruturas sociais? Certamente o amor con-
creto vai muito além do assistencialismo. O desafio que o Espí-
rito Santo nos «impõe» hoje é colaborar na libertação das
maiorias oprimidas em nosso país e nosso continente.
«Libertação», porém, pode ser igualmente uma palavra linda
de encher a boca, mas abstrata, tremendamente abstrata, enga-
nadora e assim alienante, enquanto fica só na palavra. Precisa
tornar-se ação. O amor de Deus exige aqui e agora que cola-
boremos na libertação de nosso povo, para que surja uma nova
sociedade, mais fraterna. Para tanto será preciso perguntar o
que é possível fazer aqui e agora. Para cada pessoa, em cada
comunidade, em cada classe social, em cada profissão, será

204 205
Sétimo Domingo da Páscoa Os discípulos são enviados a pregar. Aqui, como em l\lt 28,16-20
e Lc 24 47 o mandato apostólico acompanha a aparição pascal do
Ascensão do Senhor Ressuscit;d~. O autor deste pseudolinal conferiu a tal mandato uma
forma especial, ressaltando a ação missionária a todas as. cri~tur~.
Não se pense é óbvio que devessem pregar também aos 1rrac1ona1s,
Pistas Exegéticas porquanto no 'v. 16 à , pregação deve corresponder a necessária. fé, a
qual só é concebível nas criaturas racionais. Em Mt 28,19 se diz: «a
todas as naçõeS». Trata-se aqui do avanço vitorioso do Evangelho,
Para as Pistas Exegélicas da Primeira e da Segunda Leitura, cf. qual se descreve em lTm 3,16: «Sim, é tão subJime - unanimemente
A Mesa da Palavra, Ano A, p. 245-246. o proclamamos - o mistério da bondade divina: manifestado na carne,
- justificado no Espírito, - visto pelos anjos, - anunciado aos povos,
- acreditado no mundo, - exaltado na glória».
Terceira Leitura: l\lc 16,15-20
No Igreja ficará determinado: salva-se .q?em tiver fé e f~r ba-
O final de l\lc (16,9-20) falta nos manuscritos mais antigos, é tizado; quem não tiver fé será condenado no ]Utzo ?e ~eus. Os tJ?llagr_es
desconhecido a vários SS. Padres da Igreja. Tudo leva a crer que que acompanharão a pregação revelam uma exper1ê?c1~ da Jgre1a mis-
sionária: a dos carismas. As curas, os portentos ai citados~ ~contecem
foi acrescido mais tarde. Pressupõe os outros evangelistas, dos quais também nos Atos dos Apóstolos. São eles: expulsar demon1os, falar
deduz as aparições, especialmente de Lucas e João. De estilo trôpego,
novas língúas, manusear ou caminhar sobre serpen~e~ e beber 'Yeneno
sem penetrar a fundo as idéias, entretanto é altamente ilustrativo para sem ser afetado (c!. Lc 10,19). No mandato exphc1ta-se o universa-
a mentalidade da comunidade posterior. Salientam-se neste final duas lismo cristão entre os pagãos, universalismo que em Marcos prova ~~r
seções: na primeira narram-se as aparições a Maria Madalena (vv. coisa pacífica em Roma em comunidade formada de ex-pagaos, abas
9-11: resumo de jo 20,11-18 e Lc 8,2 e 24,1-11), aos discípulos de
Emaús (w. 12s) e aos Onze (w. 14ss, cl. Lc 24,36-43.13-35), -
..
em germe em Me 7,27 ~ 13,10. Quanto ªº~ carismas, el~s indicam um
poder especial conferido aos apóstolos e f1e1s para dominar os i_nimi-
quando repreende a falta de fé nos discípuJos, os quais não deram gos espirituais do homem. Entretanto valem menos que a r:al1dade
crédito àqueles que o haviam visto. É uma advertência aos futuros interior da graça .ou a eleição para o Reino. A cura material dos
fiéis de crerem nas testemunhas da ressurreição, mesmo sem terem enfermos pela unção com óleo tornou-se um sinal do poder ~obre as
visto pessoalmente o Senhor (cf. ]o 20,25.29: Tomé; Lc 24,lOs). A enfermidades dado aos apóstolos. Recebidos de graça, os carismas se
censura se estende também aos Onze: são descrentes e duros de co- eXerçam também de graça. O poder sobre os demõn.ios vtsa d_estruir
ração, porque não acreditam nas testemunhas de sua ressurreição. Quer- seu domínio no mundo como se pensava nos ambientes bibhcos e
se aí inculcar a necessidade de uma fé sincera. Após a censura, os extrabíblicos de então. 'Os diabos são chamados imundos porque se
apóstolos teriam ensaiado uma desculpa, como sugeriu um copista pos- julgava habitassem nos túmulos, cujo contato produzia impur~za legal.
terior que forjou um minidiálogo entre Jesus e os Onze, o qual se Cur_ar doenças é um carisma afim: visto que a doença era tida como
conserva num manuscrito grego do s. IV ou V. Notam-se nele um teor efeito do pecado, curá-la era anular .as conseqüências_ do pecado e,
espiritualizante, urna visão soturna do mundo e do poder de satanás. assim derrotar Satanás. «Falar novas hnguas» (glossoJaha) nao é falar
Vale transcrevê-lo: língu~s estrangeiras, mas faculdade de emitir, em êxtase, ~ons ininteli-
gíveis e palavras incoerentes - interpretáveis apenas àqueles que
"E eles se desculparam, dizendo: Este eõnlo sem lei nem fé está sujeito a possuem o carisma da «interpretação». Não intenta e~ificar, s_en~o tes-
Satanás, que não permite que tudo o que está sob o poder dos esplritos Imundos temunhar a presença do Espírito de Deus. A g1ossolaha, sem interprete,
chegue ao conhecimento da verdade e do poder de Deus (? o texto está truncado).
Por Isso manifesta já agora tua justiça, diziam eles a Cristo. E Cristo respondeu- pouco adianta, pode mesmo ser prejudicial à ·comunidade - com.o acon-
lbes: Está completado o limite dos anos para o poder de Satanás. Mas ap:roximam- teceu eJil Corinto. Os carismas não são diretamente para confirmar a
se outras coisas terríveis. E eu fui entregue à morte pelos pecadores, a fim de
que eles se convertam à verdade, nem pequem mais. oara poderem herdar a fé que está sendo anunciada, mas um dom aos crentes, embora_ com
espiritual e imperecivel glória da justiça no céu". valor apologético secundário. Os portentos têm valor global: nao se
exige que se realizem em todos os crentes. Os mesmos acontecem «em
A segu'nda seção (o texto comentado) aduz o discurso missionário nome de Jesus». Os apóstolos já haviam recebido tais carismas (Mt
- o mandato - do Senhor ressuscitado (cf. l\lt 28,19s). Exorta a 10,1.8; l\lc 3,15; 6,7-13; Lc 9,1-6; 10,19). .
evangelizar o mundo inteiro e estabelece que a fé e o batismo são Na Igreja primitiva, os carismas eram mais fre.qüentes em virtude
necessários para a salvação. Aos que pregam, prometem-se carismas das circunstâncias: expulsão de demônios, dom das hnguas, andar sobre
especiais (vários tipos de milagres) para apoiar e confirmar a pre- serpentes e escorpiões sem perigo (Lc 10,l9). S. Paulo é mordido por
gação da Palavra. Com a ascensão, Jesus separa-se afinal dos discí- serpente e nada sofreu (At 28,3). S. João, em Ptamos, foi envenenado
pulos, - cena que literariamente acopla e resume Lc 24,50-53 e At com bebida, nada acontecendo. A imposição das mãos não estaria rela-
1,9-11 - e passa a sentar-se à direita de Deus. A Ele a comunidade cionada com os efeitos da unção que sanava os enfermos (Me 6,13)?
eleva os olhos, porque coopera na sua missão terrena; assim pensava Em toda a história da Igreja, o milagre sempre teve lugar e impoitância.
e cria firmemente a Igreja primitiva engajada na evangelização do A dureza da condenação aos incrédulos sem discernir entre boa e
mundo inteiro. má-fé, a insistência nos gestos prodigiosos ao longo da missão1 são
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condicionadas aos tempos e não se podem absolutizar para sempre. costuma figurar nas teofanias (Ex 13,2ls; 16,10; 19,9; Lv 19,2; SI 96,2;
Me encerra .afirmando a ascensão/assunção de jesus ao céu e sua entro- Is 19,1; Ez 1,4). No NT a nuvem aparece na Transfiguração (Lc
nização à direita de Deus (cf. SI 109,1). «Sentar-se à direita de Deus> 9,34s; At 1,9). O profeta Daniel assere que o Filho do Homem virá
é expressão semita e significa estar na mesma esfera divjna e parti- sobre as nuvens para estabelecer o reino messiânico (7,l3s), - texto
cipar de seu poder divino. A linguagem evoca a «ascensão» de Elias ao qual jesus alude aplicando-o a si mesmo (Mt 24,30; 26,64). J'l
(2Rs 2,11; Eclo 48,9). O titulo «Senhor jesus> só aqui aparece nos natural que jesus ao entrar na,' glória, após ter cumprido Sua missão,
Evangelhos. Nas cartas é mais encontradiço. Na Igreja antiga, o titulo apareça também sobre a nuvem, símbolo da presença e majestade di-
«:Senhor» (Kjrios), aplicado a Cristo, era uma confissão de sua di- vinas. Ademais, as personagens vestidas de branco anunciam a parusia,
vindade. Ê com ela que Marcos inicia seu evangelho. Lucas concebe quando jesus, ao invés de subir, descerá glorioso - motivo de espe-
a «:ascensão» como um «arrebatamento» corporal de jesus (Lc 24,51; rança e perseverança para os cristãos (cf. 3,20s; JTs 4,16ss; 2Pd 3,8-14).
At 1,11), concepção que se impôs, embora a expressão não se encon- A exortação do Ressuscitado ao trabalho missionário é formulada
tre nos outros evangelhos; além de conciliar-se com a cosmovisão do num otttro «final» mais breve de '.Marcos, presente em muitos manuscritos:
tempo, permitiu imaginar que jesus se afastara dos discípulos e, ao
mesmo tempo, garantira sua presença na comunidade. O Senhor-Jesus, "Mas elas (as mulheres) re1atararo com brevidade, tudo o que lhes fora
junto ao Pai, fica em comunhão com a comunidade terrena, que dá ílrdenado, àqueles que estavam (reunidos) ao redor de Pedro. Mas, em seguida,
enviou o próprio Jesus, do nascer ao põr-do-so1, por meio deles, a santa e JmpereciveJ
continuidade à sua obra, ajudando-a mediante cooperação, que Marcos pregação da salvação eterna".
discerne através de sinais acompanhando a pregação. O final de Me
reconhece a obra missionária dos apóstolos e a respectiva confirmação jesus continua sua pregação, graças à Igreja, - pregação que, por
de Cristo com prodígios. É a pregação e a extensão da fé umas décadas apoiar-se na sua ressurreição, tem a certeza da vitória. O Evangelho
depois. de Cristo, anunciado na Igreja, transformou-se pelo suplício na cruz em
Mais detalhes sobre a Ascensão (cf. Lc 24,50s e AI 1,9-12): Mt força salvífica. A comunida,de cfistã que, depois de sua morte, se via
e Jo nada dizem; supõem-na. Me relata só o fato, que se deu diante comprometida com o dever de anunciar o Evangelho, sente-se agora
dos apóstolos. Lc descreve-o um pouco mais no evangelho e, ainda enviada a isto, não por virtude própria, mas pelo Cristo Ressuscitado.
mais pormenorizadamente, nos Atos. Não há conexão cronológica com O mandato apostólico proclama a missão universal docente e sa-
o que antecede. Segundo Atos, um belo dia jesus conduziu os apósto- cramental : a universalidade de ; seu ensino e de seu batismo. Cristo,
los "'até Betânia, no lado oriental do Monte das Oliveiras, perto de detentor de todo e qualquer poder (jo 13,3; Mt 28,18), faz os apóstolos
Jerusalém. A tradição assinala um lugar, no alto do mesmo monte, participar de sua autoridade, enviando-os a concretizar sua missão, o
como local da Ascensão. Af, Jesus, levantando os braços à guisa dos apostolado recebido do Pai: «Ide por todo o mundo e pregai o Evan-
sacerdotes no templo, os abençoava. Enquanto dava sua última bênção, gelho»! Nisto eles atuam e obedecem com poder derivado e participado,
separou-se deles. As palavras «foi arrebatado ao céu> são muito discuti- mas real, porque em nome de Cristo. Manda-os a todos os povos, cria-
das pela critica (Nestle, NT) e parecem interpoladas. Os apóstolos «se turas, realizando a universalidade da salvação prevista já pe1os pro-
prostraram» diante dele ( = adoraram-no) - é frase também contestada fetas. Tal missão se reveste de dupla finalidade: ensinar e batizar.
pela 'critica, segundo Nestle. Em todo o caso, é um ato de acata- Institui-se destarte o magistério apostólico na Igreja. Não basta conhe-
mento da majestade de Cristo, enquanto subia ao céu. Na pesca mi- cer o Evangelho. Urge incorporar-se no Reino pelo batismo. «Batizar»
lagrosa (Lc 5,Sss), Pedro, em seu arrebatamento, se prostrou aos pés (baptlzo) não é apenas csubmergir-se> (bápto), senão também <lavar/
de jesus, rogando-lhe que se retirasse porque era pecador. Ora, não purificar> (Lc 11,38; Me 7,14): Além de pregar o Evangelho, faz-se
admira que se repita aqui a mesma cena, numa reação espontânea mister batizar, com o que o homem se purifica, produzindo um «novo
ante o Cristo que sobe aos céus vitorioso, já que depois «voJtaram nascimento» espiritual (jo 3,5s). Para Paulo, o batismo leva o cristão
para jerusalém com grande júbilo, permanecendo no templo, louvando a con-viver com Cristo, a incorporar-se a Ele (Rm 6,8). O lavacro
e bendizendo a Deus». batismal deve fazer-se em nome das três pessoas trinitárias (Mt 28,19).
A Ascensão dá a impressão de ter sido um fato mais demorado Batizar «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo», isto é, para
(cf. At 1,9-12). Após ter-lhes falado, elevou-se da terra diante deles a .:pessoa», ou em virtude da «pessoa» do Pai, do Filho e do Espírito
e uma nuvem o ocultou. Os apóstolos, na· medida em que o acompa- Santo - o que sugere uma Pl!rificação e uma consagração do fiel à
nhavam com seus olhares, vendo-o afastar-se para o alto, eis que Trindade. «Em nome de» expressa também autoridade. Na passagem
lhes apareceram dois homens vestidos de branco, que lhes disseram: paralela, segundo Mateus, Cristo manda ensinar a observar seus pre-
'Homens da Galiléia, por que ficais aí a olhar para o céu? Este jesus ceitos. Me o supõe, quando assere que a fé é condição absoluta para
que acaba de vos ser arrebatado para o céu, voltará do mesmo modo salvar-se. Com efeito, a fé surge da audição da Palavra (Rrn 10,14).
que o vistes subir para o céu' (AI 1,9-11). É descrição segundo as A pregação do Evangelho é requisito prévio para o batismo, o qual
aparências físicas, sem pretensão cientifica. Ê o céu atmosférico, acessí- para quem não observa a lei de Cristo ·pouco ou nada resulta.
vel ao olho humano, sem alusão aos vários céus da cosmografia hebraico- Marcos, ao acrescentar a promessa de carismas à comunidade cristã
helenista (cf. 2Cor 12,2). As duas personagens com vestes brancas (16,17-18), aponta para um privilégio, vale dizer, os prodígios demons-
são anjos em forma humana, corno aqueles que apareceram às mu- tram a autenticidade renovadora do Batismo, que marca o ingresso
lheres junto ao sepulcro vazio (Lc 24,4; jo 20,12). A nuvem, no VT, no Reino. São Paulo, escrevendo aos Gálatas, prova-lhes a verdade

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da fé cristã, mostrando que os carismas, existentes em sua comunidade, o eixo de nossa vida - que o adoramos em espírito e verdaac
não provinham da Lei judaica, mas eram fruto da pregação da fé De nada adianta freqüentarmos a igreja, acendermos velas, fa-
(OI 3,2).
zermos promessas, se não abrimos o coração a Jesus ressuscitado.
BibJJografla: R. S eh n a e k e n b u r g, O Evangelho segundo 1Uarcos (trad.
de E. Blnder), Vozes, Petrõpoiis 1974; j. A 1 o n s o, Evangelio de San J\farcos,
La Sagrada Escritura, NT, 1, BAC, Madrid 1961; M. de Tu y a, Evangelios, 2. Atitudes de ascensão em nossa vida
Biblia comentada, V, BAC, Madrid 1964.
a) A oração. - O que significa «abrir o coração a Jesus
Pe. Matheus F. Giuliani, S.A.C. ressuscitado»? Isso requer duas atitudes que, em nossa vida,
Santa Maria, RS
encontram a sua síntese: uma atitude de oração e uma atitude
Tema Principal de ação. Deus não é a nossa subjetividade ou uma sensação
psicológica. Deus é uma pessoa e, como tal, entramos em rela-
«OU DEUS SE ENCONTRA NO CORAÇÃO DOS HOMENS ção com ela assim como nos relacionamos com as pessoas a
OU NÃO SE ENCONTRA EM LUGAR NENHUM» quem amamos: conversando, criando laços, partilhando intimi-
dade. Eis a prática da oração. A oração é o nosso momento
Sugestões para a Homilia de diálogo e abertura a Cristo. Quando rezamos, deixamos que
o Espírito dilate o nosso coração para que possamos, aí dentro,
Introdução apreender, na fé, a presença inefável de Deus. Por isso, o cristão
que não reza é como um marido que não dialoga com sua
Hoje os cristãos celebram a subida de Jesus aos céus. Quando esposa. Aos poucos, um se fecha ao outro e a relação vai
ouvimos o termo céu, somos impelidos a imaginar um lugar esvaziando-se. Quando rezamos, somos como a terra que, sob
í acima da estratosfera, onde Deus habita em companhia de seus a chuva, se abre para fecundar a semente. Como diz Maria,
j~
,, santos e anjos. Ora, quando o príncipe de Florença, desconfiado, nessa abertura orante, Deus realiza em nós maravilhas ...
'i
indagou de Galileu se ele havia visto, por sua luneta, Deus lá b) A ação. - A atitude de ação é conseqüência, e também
em cima no céu, o grande cientista do século XVII deu-lhe uma causa, da nossa atitude de oração. Esta nos torna mais sensí-
resposta lapidar: «Üu Deus se encontra no coração dos homens veis à presença do Senhor ressuscitado em tudo isso que é a
ou não se encontra em lugar nenhum». negação do «Céu» e se nos apresenta como sinal do «inferno»:
a fome, a tortura, o arrocho salarial, o desemprego, as doenças
Corpo sem tratamento, o excesso de horas-extras no trabalho etc. É
ai que o Senhor quer ser encontrado, servido e amado, para
1. A Ascensão de jesus
que possamos transformar esse «inferno», fruto do pecado estru-
Na leitura dos Atos dos Apóstolos feita hoje, ouvimos São turado e historizado no sistema capitalista, em «céu», ou seja,
Lucas dizer que Jesus «provou, sem deixar dúvida alguma, que em realidade justa, livre e verdadeira.
estava vivo». Provou aos apóstolos e nós temos a mesma fé
dos apóstolos. Portanto, cremos que Jesus de Nazaré, assassina- 3. Movimentos de ascensão
do pela repressão político-religiosa da Palestina de seu tempo, Há uma definição de inferno dada pelo escritor russo
venceu as forças da morte e ressuscitou. Cremos que, agora, sua Dostoievski, que permanece atual: «Ü inferno é a ausência de
presença abarca toda a natureza e toda a humanidade, além amor». Amar não é apenas querer bem a uma pessoa. É querer
de nossas dimensões de tempo e espaço. Como não temos ca- bem a todas as pessoas, principalmente estes que mais necessi-
tegorias que definam a presença ressuscitada de Jesus, dizemos tam do nosso amor, da nossa doação, da nossa luta: os traba-
que ele «subiu aos céus». Isto não quer dizer que ele está lhadores oprimidos por uma ordem social que procura preservar
«lá em cima», desafiando os astronautas engajados na corrida a divisão dos homens em diferentes classes sociais. Se, de alguma
espacial. Significa que ele está em tudo e E"t11 todos e, sobretudo, forma, nos voltamos para as causas dos trabalhadores ou, como
«no coração dos homens», como falou Galileu - pois é neste tais, assumimos as aspirações de nossa c1asse, estamos fazendo
templo - o nosso coração, o centro de nossa personalidade, o que Jesus fez: subindo do inferno ao céu, isto é, superando

210 211
os sinais de pecado, as forças da morte e implantando essa rea- Domingo de Pentecostes
lidade nova e jnsta que é o prenúncio do Reino que está pro-
metido pelo Pai. Portanto, há em nossa vida um movimento de
•ascensão», todas as vezes que procuramos quebrar as barreiras Pistas Exegéticas
do pecado, da injustiça, da morte, para que os homens tenham
a vida e a vida em abundância, como diz Jesus no Evangelho Para as Pistas Exegéticas das três Jeituras, cf. A Mesa da Palavra,
Ano A, p. 253-258. Para comentários da Terceira Leitura, jo 20,19-23,
de São João ( 10, 10). cf. também 1. e., p. 209-212.

Conclusão
Na carta aos Efésios é dito hoje que Jesus «está acima Tema Principal
de todas as autoridades que existem neste mundo». Eis o grande Com a celebração do Domingo de Pentecostes termina o tempo
desafio lançado pela Igreja primitiva: obedecer antes a Deus que pascal. Hoje é também o último dia da Semana de Oração pela Unidade
aos homens. Para nós, cristãos, as determinações humanas são dos Cristãos. Sugere-se, portanto, à luz do Dia de Pentecostes e do tema
válidas na medida em que não contrariam as exigências de nossa da Semana da Unidade, uma homilia sobre
fé e os imperativos de nossa caridade. Não podemos obedecer
A UNIDADE DA IGREJA
uma autoridade que se pretende mais sábia que Deus e mais
poderosa que o Cristo. A presença ressuscitada de Jesus apare- Sugestões para a Homilia
ce, hoje, nos sinais de justiça, de liberdade, de amor, que vemos
em cada pessoa, nos movimentos sociais, nos povos em busca Intr-Odução
de sua libertação, na ânsia de uma vida melhor. E isso está
acima de tudo mais, pois de nada valem as leis, as normas e os Escdndalo da divisão e busca da unidade
regulamentos, se eles não contribuem para reduzir as injustiças 1. Em nosso bairro hâ várias igrejas: a nossa igreja ca-
e tornar o povo - principalmente os oprimidos - livre e mais tólica, uma ou mais igrejas de «Crentes». Nós, os cristãos, cons-
feliz. truimos igreja ao lado de outra igreja. Isto na melhor das hipó-
Frei Betto
Belo Horizonte, MO teses. Porque às vezes construimos igreja contra igreja. Quando
os «crentes» abrem um ponto de pregação, um templo para
começar um «trabalho», achamos que devemos fazer alguma
coisa para neutralizar a influência deles. As vezes tem sido assim.
Os «crentes:. têm construído igrejas ao lado das nossas, para
salvar os coitados dos católicos do inferno que os espera e para
mostrar-lhes Jesus o Salvador.
Quem são eles para nós? Quem somos nós para eles? Somos
irmãos? Irmãos separados, divididos? Somos desconhecidos uns
para os outros? São eles, para nós, hereges, causadores de
divisões, adversários, concorrentes? Somos para eles: adorado-
res de Maria, dos Santos, que não conhecem a Bíblia?
2. Desconhecimento e indiferença, inimizade e concorrência,
ou até simpatia, compreensão mútua, amizade, de qualquer
forma, a divisão entre os cristãos «Contradiz abertamente a von-
tade de Cristo e se constitui em escândalo para o mundo, como
também prejudica a santissima causa da pregação do Evangelho
a toda criatura» (Decreto conciliar sobre o ecumenismo, n• 1).

212 213
Realmente, como o mundo pode crer que Jesus veio para lebrada em janeiro (18 a 25 de janeiro: memória da Cátedra
unir o que estava disperso pelo pecado, se os seus próprios dis- de Pedro • em Roma e da conversão de Paulo), em outros
cípulos estão divididos entre si? Como o mundo pode crer que países, como o Brasil, a Semana da Unidade é feita nos dias
Jesus veio acabar com a inimizade, se os seus discípulos são que antecedem ao Dia de Pentecostes (Ascensão a Pentecostes).
«irmãos separados», quando não algo pior? Inicialmente as intenções da Semana visavam mais a volta
3. Em contraposição, na história do cristianismo sempre tem dos irmãos separados ao seio da Igreja Católica; hoje em dia
havido movimentos de união. Hoje em dia é bastante forte esta pedimos antes que todos os cristãos (nós mesmos incluídos)
busca de unidade entre os cristãos, e por toda parte há grupos possam crescer na unidade que o Senhor quer para a sua Igreja.
de cristãos que se dedicam à causa da unidade. 3) O tema para a Semana. - Desde 1967, organismos
Cristãos conscientes do pecado da divisão se têm perguntado: ecumênicos da Igreja católica e de outras Igrejas cristãs indi-
- apesar de pertencermos a Igrejas diferentes, o que po- cam um tema especial para a Semana da Unidade. Assim, por
demos fazer juntos para anunciar a Boa-Nova a toda criatura? exemplo, para o ano em curso, foi escolhido o tema: «Colocai-
- apesar das nossas divisões, o que podemos fazer juntos vos a serviço uns dos outros, para a glória de Deus».
em favor de um mundo mais justo, mais fraterno, mais habitável? Este tema é inspirado na 1• carta de Pedro, cap. 4,7-11.
- qual é a unidade que (ainda) existe entre nós, irmãos O autor da carta exorta as pequenas comunidades cristãs, espa-
divididos, e o que podemos fazer para crescer naquela unidade, lhadas num mundo hostil e sujeitas a grandes dificuldades, a
que o Senhor oferece à sua Igreja? procurar o seu sustentáculo na comunhão mútua,
Estas são as perguntas fundamenlais que coloca diante de - permanecendo vigilantes na oração,
nós o movimento da unidade, geralmente chamado movimento - mantendo a mútua e constante caridade,
ecumênico ( oikoumene: terra habitada, mundo inteiro). - exercendo a hospitalidade,
colocando a serviço, uns dos outros, os dons recebidos.
Corpo 4) Um programa de ação em favor da unidade. - Sem
1. Colocai-vos a serviço uns dos outros, para a glória de Deus dúvida, estas exortações do Apóstolo Pedro contêm um progra-
(terna da Semana da Unidade de 1979) ma de unidade (koinonia) dentro da nossa própria comunidade,
1) A unidade como dom de Deus. - A unidade é um dom ou entre as comunidades da nossa Igreja.
que Deus oferece à sua Igreja. Apesar de todas as divisões ela E se nós, cristãos separados, convencidos de pertencermos
continua a existir. Mas as divisões a tornam imperfeita, obnubi- todos ao Corpo do Senhor, tentássemos tomar estas exortações
lada. Importa, portanto, caminhar para a plena unidade, que o de Pedro como programa de ação, no bairro, na cidade, onde
Senhor quer para a sua Igreja. Sendo dom, graça, o caminhar vivemos uns ao lado dos outros? Se começássemos a orar juntos,
para a plenitude na unidade está a exigir, antes de qualquer ou a interceder uns pelos outros; a nos amar de verdade, como
ouira ação, aquilo que o Concílio chama a alma de todo movi- irmãos (sem o adjetivo «separados»); a receber os outros como
mento ecumênico ou o ecumenismo espiritual (ver Decreto con- irmãos, a compartilhar os dons que cada uma das nossas Igre-
ciliar sobre o ecumenismo, no 8): jas recebeu do Senhor? O Papa joão Paulo II falou disso na
- constante renovacão e reforma da Igreja, na fidelidade audiência geral do dia anterior ao início da Semana da Unidade
ao Senhor; · na Europa.
- conversão interior;
2. cPara que o mundo crei~
- oração pela unidade.
A unidade da Igreja não é um fim em si. Como a Igreja
2) A Semana da Unidade . •- Para conseguir esta plena toda, ela deve estar a serviço da salvação do mundo. Jesus
unidade em Cristo, a nossa Igreja e outras Igrejas Cristãs de- orou ao Pai assim: «Pai. .. que eles sejam um ... para que o
dicam uma semana especialmente à causa da unidade. Para
mundo creia» (Jo 17,21).
muitas Igrejas, já é um costume de muitos anos. Em alguns
países a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos é ce- • Pela reforma litúrgica , esta festa foi transferida para 22 de fevereiro.

214 215
O movimento em favor da unidade dos cristãos deve incluir,
como aliás sempre tem incluído, o mundo com os seus proble-
Solenidade da SS. Trindade
mas, a luta pelos injustiçados, os marginalizados, a luta pelo
reconhecimento real dos direitos humanos, a luta contra o ra- Pistas Exegéticas
cismo, e todas as outras formas de dominação (como a do
homem sobre a mulher). A luta em favor de um mundo habitá- Primeira Leitura: Dt 4,32-34.39-40
vel, que dá dimensões universais ao movimento ecumênico, é
um vasto terreno para uma ação conjunta de Igrejas e grupos «lahve é Deus e não há outr0»
cristãos e um poderoso meio para descobrir novos caminhos Contexto literário de Dt 4,32-34.39-40. Esta passagem, que a Igreja
para a plenitude da unidade em Cristo. nos apresenta como uma parte da Palavra de Deus celebrando a festa
da Santíssima Trindade, deve ser situada e lida no contexto maior
3. Unidade dos Cristãos e ação do Espírito Santo
de todo o Dt 4, Porque Dt 4 forma uma unidade em si· ele não revela
ser uma continuação com o que lhe precede, Dt 1-3, e ~em com o que
É muito significativo celebrar a Semana da Unidade em lhe segue, sobretudo Dt 5-26, a assim chamada lei deuteronômica. Este
capítulo, mesmo tendo atualmente uma posição singular no livro do
conexão com o Dia de Pentecostes. Deuteronômio, compõe com Dt 1-3 a moldura introdutória à lei deute-
J) O Espírito os une num só corpo. - O Espírito Santo ronômica. A temática central de Dt 4 pode ser resumida neste par de
palavras: Dom e dever ou proposta de Deus e a resposta do homem.
desce sobre os discípulos que estavam reunidos no mesmo lugar,
perseverantes na oração, com Maria, a Mãe do Senhor. E quan.do A época do surgimento de Dt 4,32-34.39-40. Esta parte bem como todo 0 Dt 4
ê atribuído à fonte literária deuteronomista". Dt 5-26, no entanto, pertencem em
os discípulos recebem a força do alto, eles começam a . anunciar termos gerais à fonte literária deuteronõmica. Dt 4, portanto, deve ter surgido no
tempo em que os Jsraelltas sofriam as conseqiiênclas do exi!Jo babiJõnico (cf.
as maravilhas de Deus a pessoas de raça e cultura diferentes; Perlitt, p. 32-36; Rad, p. 7). Esta constatação é multo linportante, pois situa
mas de tal forma que cada um os ouve falar na sua própria historicamente os redatores desta fonte Uterãria bem como seus endereçados que,
como exl1ados, estão longe de sua pátria, morrendo de saudades de seus familiares
e amigos, e impossibilitados de viverem intensamente sua fé e sua re1igJão em
língua. . terras estrangeiras. Estes exilados lsraeUtas estavam prnfundamente chocados com
Reconhecendo que Jesus é o Senhor, os convertidos se fazem tudo que experimentavam. Muitos calram num fataUsmo muito prejudicial e outros
não raramente, apostatavam da ft! em labve. !l sob este pano de fundo hlstõrJcÓ
balizar e são acrescentados ao corpo qu~ é a Igreja. Na uni- do povo de Israel que devemos ler e interpretar a nossa passagem Dt 4,32-34.3{)..40
bem como toda a catequese de Dt 4 que ê tardiamente exilica.
dade do Corpo do Senhor, acabam (ou (!evem acabar) a.s o~o­
sições de raças (não há mais judeu nem grego), dommaçoe-s Comentário de Dt 4,32-34.39-40. Logo de inicio se percebe que os
sociais (não há mais escravo ou livre) e de servi tu de de sexo teólogos deuteronomistas - visando sempre explicar a causa da ca-
tástrofe dos dois reinos israelitas ( cf. 2Rs 17) - fazem com esta pas-
(nem homem nem mulher), porque todos são um em Cristo. sagem uma catequese sobre lahve, o Deus de Israel. Nos vv. 32-34 o
2) O Espírito, princípio de unidade .na multiplicidade de pregador deuteronomista convida seus contemporâneos a uma medita-
~ão sobre o seu passado. Nesta contemplação dos tempOs de outrora
dons. _ O Espírito Santo suscita uma multiplicidade de dons no ele conclama seus ouvintes exilados a retrocederem o mâximo possível
Corpo do Senhor, que é a Igreja, mas ao mesmo tempo f:l~ é na história, isto é, até ao tempo da criação do homem por Jahve;
o princípio de unidade; porque tudo vem do mesmo Espmto. l"" ••
e ele os pergunta se de uma extremidade dos céus até a outra acon-
teceu e se nuviu algo tão· poderoso como eles jâ constataram com lahve;
cu se um povo como os israelitas conseguiu ouvir a voz de Deus do
Conclusão fogo sem perecer; t>U se jâ aconteceu sobre a face ·da terra que
mn Deus se aproximou de tal maneira de um povo, escolhendo-o,
Nesta Eucaristia estamos novamente reunidos, como os dis- preferencian<to-n entre todos os povos; e, além de tudo isto, se existe
cípulos estavam. No meio de nós está 9 Senhor ressuscitado, um povo como o de Israel que desde o seu berço experimentou tão
de perto a ação efetiva e libertadora de Deus, isto é, salvando-o da
como narra o Evangelho de hoje. Novamente Ele nos concede ()pressão egípcia com mão forte e braço estendido, conduzindo-o e
o seu Espírito, para que nos possamo.s· colocar a serviço do protegendo-o em toda a sua história por meio de provas, de sinais
perdão e da reconciliação. Cristãos reconciliados para sermos maravilhosos, de prodígios, lutas... Que questionamento sério, que ca-
instrumentos de reconciliação no mundo. tequese clara e direta para provocar nos israelitas exilados urna opção
jlOr lahvel
P. Fr. Félix Neefjes, O.F.M. Por isso, a partir desta contemplação do passado salvífico e prenhe
Rio de Janeiro, RI -da ação amorosa e gratuita de Iahve para com o povo israeHta, não

216 217
há outra salda e conseqftência: cSabe agora e grava no teu coração Bibliografia: R a d, O. V., Das jünfte Buch Mose. Deuteronomium, ATD 8,
Oi.Sttingen 1968; Per 1 i t t, L., Bundestheolol!ie im Alten Testament, WA1ANT 36,
que Jahve, ele é o Deus em cima nos céus- e embaixo sobre a terra Neukirchener Verlag 1959; Me e a r t h y, D. J., Treaty and Covenant, An Bib1
e não há mais outro> (v. 39). Quando se lê este versículo no hebraico 21, Roma 1963.
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S.
percebe-se a força de expressão que ele contém. Após o termo lahve
o redator deuteronomista parece que faz uma pausa para enfatizá-Jo e Porto Alegre, RS
acrescenta o pronome pessoal «Ele»; e antes do termo elohim ( = deus,
divindade) ele coloc~ o artigo definido para anunciar assim que so- Se!l'!fllla Leitura: Rm 8,14·17
mente lahve é Deus, que ele é o único Deus e fora dele não existe
mais nada que possa ter o atrjbuto divino; e isto nem lã em cima Este trecho da carta aos romanos pode ser considerado como o seu
nos céus e nem sob e sobre a terra. Em vista desta compreensão centro. Nele chega ao cume o ensinamento paulino, 'nós somos filhos,
de Deus resulta conseqüentemente que as únicas leis e prescrições cli- Deus é nosso Abbá-Papa)•. O que distingue o cristianismo das outras
vinas são aquelas que os iSraelitas conhecem e devem observar. Uni- religiões pode-se resumir nessa afirmação. As religiões falavam da pa-
camente o cumprimento fiel delas propiciará para eles e para gerações ternidade divina enquanto criador, fonte de vida, não enquanto fonte
futuras toda a sorte de bem e uma vida ltinga na terra que Jahve, de amor e misericórdia. O judaísmo conheceu este amor de Deus, mas
o grande Deus de Israel, quer dar outra vez. Aqui neste v. 40 se per- perdera-se no emaranhado de leis e questiúnculas, lembrando mais o
cebe com toda a clareza a situação histórica do teólogo deuteronomis- temor que o amor de Deus. O Evangelho que revelou o Pai indo ao
ta e de seus contemporâneos que é o exílio babilônico. Este justamente encontro do !ilho pecador arrependido (Lc 15), mostrou um relacio-
aconteceu porque os israelitas rejeitaram Iahve e não pautaram suas namento de filho adulto e livre e não mais de escravo e senhor, entre
vidas nas suas orientações. E toda esta catequese visa apresentar Iahve Deus e o homem.
como aquele que não mudou de idéia, que não fechou as portas para Mais que um simples mestre interior, o Espirito é o princlpio da
seu povo. Uma conversão deles, expressa na observância de seus prin- nova vida no homem (Rm 5,5), e não creio que se deva disc~tir o
cípios, levará lahve a realizar um segundo êxodo e dar outra vez a que é, ou quem é este Espirito. Sabemos que a _in-habitaçã? da Trmdad:
terra de Canaã como moradia de seu povo. Para despertar justamente em nossos corações é que nos faz filhos, entao o Esplr1to Santo esta
es~a fé e ~sta esperança nos seus ouvintes os catequistas deuterono- em nós pelo batismo e por conseguinte também sua !orça e inspiração.
nustas enfatizam as grandes obras de Jahve no passado de sua história. Essa presença é um dom da bondade de Deus e não mérito nosso.
A b•rit e os deuses estrangeiros. O !ermo.chave da teologia deu- De lato a qualificação Espírito «de Deus• não deixa nenhuma düvida
teronomista para explicar a razão do exílio dos israelitas na Babilônia quanto à origem do espír,ito que está em nós.
e para mostrar o caminho da reconquista da Terra Prometida é a b'rit. Sente-se do texto que estamos diante do Espírito de Deus e do
Este termo hebraico, normalmente traduzido no português por aliauça no espírito que nos guia os passos, ou seja, nosso espírito embebido pelo
sentido de pacto, acordo, tratado, não tem no AT um significado unf- Espírito de Deus que nos guia e é fonte de ação. De um lado o '
voco como geralmente é encontrado em exposições teológico-dogmáticas, Espirito Sauto e de outro o efeito dele em nós: a adoção como lilhos
0

na liturgia e na catequese. Sobretudo na fonte literária deuteronomista de Deus e não escravos. A negativa da frase não significa que antes
o termo b'rit tem um significado muito rico. Não me I! posslvel apre- os homens tivessem recebido de Deus um espírito de escravidão, mas
sentar aqui as p1urifonnes nuanças que a Vrit tem, mas apenas referir que o recebido agora é diferente do anterior. De fato o espírito re~e­
o tenno «aliança> com a veneração de deuses pagãos ou com o culto bido tornara-se de escravidão, porque os homens deturparam o sentido
exclusivo de Jahve como Dt 4,32-34.39-40 e seu contexto imediato nos da lei tornando-se dela escravos. Ser filho significa ser livre diante
sugerem (cf. Perlitt, p. 36-38). de Deus, mas ao mesmo tempo reconhecê-lo como Senhor do qual tudo
A b~rit, portanto, relacionada com a veneração de outros deuses provém.
é o meio eficaz para os teólogos deuteronomistas explicarem o motivo Para exprimir esta filiação, Paulo usa o termo do direito pagão,
do exílio. Como a graude maioria dos israelitas, vivendo na Palestina, não conhecido dos judeus: «adoção», que integra totalmente o adotado
colocou lahve de lado e o degradou em segundo plano em favor do na família, da qual ele _recebe o nome, a herança e o privilégio . de
culto das divindades pagãs, eles foram exiladlli\ justamente para aquelas 1· chamar o pai de familia, · papai. O lato de .pert~ncer. ª? .povo escolhido
terras e aqueles povos cujos deuses adoravam. Os teólogos deuterono- levaria a esta adoção (Rin 9,4), mas na v1vênc1a histor1ca desta voca-
mistas chamam esta atitude idolátrica dos israelitas de quebra da b'rlt. ção a lei causou a morte. Assim que na Nova Aliança não basta mais
E, por outro lado, a veneração exclusiva de Jahve significa fidelidade 1
a pertença carnal para conferir a filiação e a dignidade de filho de
à b'rlt. E nesta total adesão a lahve se encontra para eles a única Deus. E necessário renascer pelo Esplrito (Jo 3,5). O que Jesus é por
condição da reconquista da Terra Prometida. natureza o homem é de direito em vista da adoção.
A catequese do teólogo deuteronomista é. clara e convincente. De- Filh~s que somos clàmamos abbá. O termo abbá é um dos ara-
pende da geração dos israelitas exilados e hoje de nós se quisermos maísmos presentes n~ Novo Testamento, e deve ter impressionado de
nos converter- a Iahve, o Deus da misericórdia, que jamais abandonou tal modo os ouvintes, acostumados a serem tratados como servos,
.µguém e é eternamente fiel (v. 31) ou adorar deuses leitos pela mão que !oi conservado na sua língua original. E diflcil dizer se é fruto
do homem com material perecível como madeira ou pedra, que não de alguma tradição litúrgica ligada à oração do Pai-Nosso, o que
podem ver, nem ouvir, nem comer e nem cheirar (v. 28)ª de certo podemos dizer é que esta palavra em Rm e GI é um eco

218 219

/
da tradição que teve origem nas palavras de jesus ao nos ensinar Tercelra Leitura: Mt 28,16-20
a rezar (Mt 6,9) e no Getsêmaoi (Me 14,36). Esta linguagem familiar
e terna, Cristo a usara dirigindo-se a seu Pai e nosso Pai, e é essa e. . . em nome do Pai e do Filho .e do Espírito Santm>
que Paulo utiliza, passando da segunda pessoa para a primeira,
incluindo-se portanto, para quebrar o monolitismo teológico judaico que 1. No primeiro Evangelho encontra-se repetidas _vezes o procedi-
desconhecia tal termo. mento literário que se chama inclusão. O Evangelho todo está incluído
O fiel então levado pelo espírito de filiação clamaria ( cf. Lc 1,46: entre as palavras iniciais biblos geneseõs (Mt 1,1), alusão ao Livro
Magnificat), Abbá. Acho porém que se deva dar ênfase ao verbo com de Gênesis (cf. Gn 2,4; 5,1) e as palavras finais <até o fim ou a
consumação do mundo» (Mt 28,20) .. jesus encerra o Seu ministério
o sentido de «proclamar». O Espírito dentro de nós nos leva a pro- na Galíléia (cf. 26,32; 28,7.10), onde o inaugurou (cf. 4,13ss). O Seu
clamar e a anunciar alto e bom som que Deus é nosso Pai. Como primeiro e último pronunciamento profereAos do alto de urna montanha
Cristo proclamou, ao confirmar que era o Filho de Deus (cf. Lc 22,70), da Galíléia (cf. 5,lss; 28,16ss).
e foi perseguido e processado, também nós ao proclamarmos tal ver-
dade corremos o risco de sermos incompreendidos e perseguidos, so- Esta localização do primeiro e último pronunciamento de Jesus em
frendo como ele sofreu por ter-se declarado tal. uma montanha reveste-se de um sentido teológico especial. Não se trata
de uma indicação topográfica, mas de uma encenação típica para uma
O Espírito então se une ao nosso espírito (Bj) para testemunhar revelação. Há muitos exemplos no Antigo Testamento. O primeiro evan-
essa nova realidade. Em GI 4,6 é Ele próprio que clama. Não se trata gelista retomou este motivo com grande vigor. O lugar do importante
de duas testemunhas (cf. TOB), mas do Espírito que testemunha aos ensinamento inicial é a montanha de 5,1 que deu à doutrina aí profe-
homens essa verdade fundamental pela mediação do espírito do homem, rida o nome de cSermão da Montanha». A «montanha» ganha novo
pelas ações do homem, pelo e no homem, dando-lhe a ousadia e a relevo como lugar típico de revelação em 15,29, cuja encenação se
coragem de proclamar e testemunhar sua fé (cf. !Cor 5,20). Nós somos assemelha até nos detalhes com 5,1. Como aí, a cena de 15,29-31 é
instrumentos do Espírito, damos espaço para ele, deixamos que ele esboçada com esmero para sublinhar a importância do que se segu·e.
fale aos homens por nós. No primeiro caso segue-se o Sermão da Montanha (cc. 5-7), no se-
Após demonstrar que de fato somos filhos, Paulo retoma o tema gundo a Multiplicação dos Pães (15,32-39). De um lado a revelação-pela-
da primeira frase, e afirma que somos herdeiros. No Antigo Testa- palavra do doutor de Jsrael, novo «legislador» como Moisés; do outro
lado a revelação-pela-ação do salvador que nutre Seu povo como
mento a herança designava a terra prometida (Df 4,21) e não incluía Moisés no deserto. A Transfiguração de jesus na montanha (Mt 17,1-9;
em si a morte de alguém. No Novo Testamento a herança é o reino cf. Ano A, p. 452*) revela-O maior do que Moisés e Elias, os maiores
(Mt 25,34) e ? vida eterna (Mt 14,29). Cristo pela ressurreição recebeu do Antigo Testamento. No remate do Evangelho a montanha aparece
tudo isso do Pai e o dá aos seús irmãos que se uniram a ele pelo uma última vez para sublinhar a importância das derradeiras palavras-de-
batismo e com ele sofreram por causa da mensagem proclamada: «Deus revelação a respeito da autoridade de jesus e de Sua presença na
é nosso Pai», e que por isso mereceram a ·ressurreição e a herança. Igreja e a respeito da missão da Igreja que consiste em fazer de todos
Há uma coriexão profunda entre sofrer e ser glorificado, mas não os povos discípulos de Jesus, batizando-os e ensinando·os a observar os
que soframos, para ser glorificados. A glória é_~ dom e como tal não pode ,Seus mandamentos.
ser condicionada. O sofrimento é conseqüência do anunciar e viver o 2. As derradeiras palavras de jesus assumem também o procedi-
anúncio, Deus é Pai. Como Cristo humilholl-se (Kenosis) também o mento literário da inclusão:
homem passa por sua Kenosis, como Jeremias e Jó, para chegar à
glória. C: Toda a autoridade me foi dada no e é u e na te r r a.
B: Ide, pois, fazei todas as nações discípulos,
Assim o Espírito que habita em nós nos faz herdeiros (cf. !Cor A: batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
6 9-11 1· Gl 4,21-31; Rm 8,15 e 21), mas por enquanto temos só o penhor B': ensinando-os a observar tudo o que vos mandei.
clcor 5,5). o direito à herança plena teremos com a nossa ressurreição C': E eis que Eu estou convosco todos os dias até o fim do m u n d o.
(!Cor 15,50). Isso porém não deve ser motivo de preocupação pois
a adoção é ·irreversível e não só um fato jurídico por si revogável, Coordenam-se em redor da sentença trinítãria e sacramentológica
como o prov~ a alternância dos termos filho e._ prole, utilizada por Paulo central (A) enunciados eclesiológicos (B e B') e cristológicos (C e C').
(vv. 19 e 21). Neste último pronunciamento jesus disse tudo. Esta palavra volta quatro
Somos· filhos e herdeiros da promessa, nossa esperança é imorredoura. vezes nas frases cristológicas (C e C') e eclesiológicas (B e B').
O ce~tro da derradeira proclamação ou do «:testamento» de Jesus consiste
Bibliografia: K. B ar t h, The Epistle to the Romuns, Londres 1968; F. j. na missão de batizar em nome da SS. Trindade. «Tudo~ estã concen-
L e e n h a r d t, Epistola aos romanos, São Paulo 1969; l';l. J. La g r a n g e, trado nisso, tanto a autoridade (C) e a assistência (C') de jesus, como
épitre aux romalns, ParJs 1950; O. K-u se, La Iettera 'ai romanz, Roma 1968.
a missão da Igreja (B e B').
Pe. Carlos Alberto da Costa Silva, S.C.j. Quando todos serão introduzidos no mistério da SS. Trindade e
Paulista, PE viverão eternamente no seio do Pai, corno filhos no Filho, graças ao
novo principio vital que é o Espírito Santo, este mundo (C'), isto é,

220 221
F

Corpo
todo o universo (o «céu e a terra»: C) terá cumprido a sua m1ssao
de fornecer um habitat pro-visório aos homens e à humanidade e poderão
desaparecer (e!. Mt 13,39.49; 24,3; 5,18). Todos nós, um só. - Somos? - Seríamos, se não fosse
Começando o seu Evange1ho com uma referência ao Livro de Oê- pelas barreiras e pelas separações, divisões, conflitos, guerras,
r nesis (e à origem dos céus e da terra e da humanidade, cf. Gn 2,4; ódios, desuniões. . . Seriamos um só, se não fôssemos, nós, os
5,1) e encerrando-o com uma referência ao fim ou à consumação do grandes construtores de muros e paredes, que nos separam e
mundo, o evangelista ensina que Jesus de Nazaré deu novos rumos
à história da humanidade e dos homens. Estes novos rumos têm suas
afastam uns dos outros. Se as nossas cidades não fossem a
raízes em Deus, que Lhe conferiu autoridade para isso. Jnvestido de grande contradição à visão de jesus e à visão de Deus. Pois a
pleno poder divino «no céu e na terra~. Jesus autoriza a Igreja para contradição existe: A cidade de Deus, visão de unidade con-
continuar esta missão, assistindo-a continuamente com a Sua autoridade. sumada. A cidade dos homens, espetáculo de eterna divisão.
As frases ec1esioiógicas enunciam tanto as raízes corno os rumos No meio da Alemanha, no coração da Europa, situa-se a
da autoridade e da missão da Igreja. As raízes estão em Jesus glori-
ficado. Não somente graças a um mandato transmitido há vinte séculos.
cidade de Berlim. No coração de Berlim, e cortando a cidade
Toda a atividade eclesial tem sempre sua origem no Senhor glorificado de ponta a ponta, está, desde há mais de 25 anos, o famoso
que a acompanha e assiste, na caminhada através dos séculos. Os rumos muro, que separa 3 milhões de cidadãos de outros 2 milhões
da missão de Jesus e da Igreja consistem em última análise na par- de cidadãos. O muro impede familiares, amigos, conhecidos de
ticipação de todos na vida divina e trinitária. Tudo (C-B e B'-C') se visitarem e até de se verem livremente. Do lado oriental, o
converge para isso (A). Esta imersão de todos no mistério da SS.
Trindade realiza-se não somente batizando, mas fazendo os batizados governo comunista «limpou» uma grande área, tirando todas as
verdadeiros discipulos, levando-os a uma ortodoxia (B) e uma orto- construções, a fim de que ninguém possa nem chegar perto do
práxis (B'). Deste «batismo~ nascem comunidades cristãs ( .ue conhe.. muro. É preciso ter estado em Berlim e ter falado com os
cem a mensagem de jesus (B) e a põem em prática (B'). berlinenses, para poder avaliar um pouco o trauma social que
Bibliografia: Cf. A Alesa da Palavra, Ano A, p. 247-249, onde se encontra ontra significa esse muro.
Pista Exegética de Mt 28,16-20.
Mas o muro de Berlim não é único. Ele tem seu prolonga-
Raul Ruijs, O.F.M. mento na assim chamada «Cortina de ferro», a barreira infran-
Petrópolis, RJ queável, que divide a Alemanha Oriental da Ocidental. E ele
tem seu prolongamento na «cortina de bambu», que separa o
Sugestões para a Homilia povo chinês do resto do mundo, e em todas as outras cortinas
e muros. Quantas cidades nossas, e sobretudo determinados
Introdução bairros das nossas cidades, não são uma grande rede de muros
e paredes de separação? Andando pelas ruas de muitos bairros,
- Batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito só o que se vê, é muro e mais muro. Espetáculo triste, realidade
Santo (Mt 28,19). e símbolo.
- Eu e o Pai, somos uma coisa só (jo 10,30). Realidade, pois os muros e as paredes são necessários,
-·- Peço-te, ó Pai, que todos sejam uma coisa só, como tu, para proteger as casas e os quintais, a propriedade e o lar,
Pai, estás em mim e eu em ti; que eles 'estejam em nós, para contra assaltos e invasões. E quanto mais se tem, em tennos
que o mundo creia que tu me enviaste (Jo 17,21). de casa, de quintal, de dinheiro e de luxo, tanto maior a ne-
- Eu neles, e tu em mim, para que sejam consumados na cessidade de proteção, e tanto mais alto o muro, a cerca e a
unidade e para que o mundo reconheça que tu me enviaste grade, e mais pesados os cadeados e os trincos dos portões.
e os amaste como tu me amaste (jo 17,23). É claro e evidente: a realidade é esta!
Realmente: que nação, por grande que seja, tem um deus Quando, porém, se pergunta por que a realidade é assim e
tão perto dela como nosso Deus de nós, sempre que chamamos por que é precisa toda a proteção, revela-se o simbolismo dos
por Ele? (Dt 4,7). Deus perto de nós. Deus um de nós. Deus muros e das paredes. É que os muros de alvenaria e de cimento
um só conosco. Nós, um só com Deus, naquela união-unidade annado são símbolos e produtos de outros muros. São produtos
do Pai e do Filho e do Espírito Santo. dos muros de uma ordem econômica e social injusta, que favo-
rece uns e discrimlna, oprime e marginaliza os outros. Estes

222 223
1
muros ajudam os protegidos a acumular sempre mais a sua Deus perto de nós. Será que vai ser uma presença ameaça-'
porção dos bens materiais: dinheiro, terra, casa e conforto de dora, porque «O Senhor, nosso Deus, é um fogo devorador»?
vida, e assim, por uma lógica inerente, fazem indispensáveis (Dt 4,24; cf. Is 33,14; Hb 12,29). Ou será como na visão de
os muros e divisões físicas, como defesa contra os que não têm. João em Palmos: « . • . a tenda de Deus com os homens: Ele
Muros e mais muros. Muros de preconceitos de raça, de habitará com eles, eles serão o seu povo, e ele, Deus-com-eles,
classe, de convicção religiosa, de formação cultural e de graus será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos,
acadêmicos; preconceitos de toda a espécie, mas que se funda- pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem
mentam quase sempre nas divisões de ordem social e econômica. dor haverá mais. Sim! as coisas antigas se foram» (Ap 21,3-4),
O muro de Berlim e a «Cortina de ferro» são uma realidade, os muros e as divisões, as desuniões e as separações. E ficou
física e humanamente generalizada no nosso mundo, na «Cidade o abraço e o íntimo do coração do Pai e do Filho e do Espírito
dos homens». Santo.
Levanta-se, aqui, a pergunta, se estas considerações são Conclusão
apropriadas para a festa da Ssma. Trindade. «Santíssimo» não
significa três vezes santo? Santo,. santo, santo, Senhor Deus A festa da Ssma. Trindade significa o apelo da intimidade
dos exércitos. Os céus e a terra estão cheios de sua glória! de Deus a todos os homens de boa vontade. A resposta não
E como é que nós falamos em muros e divisões sociais e eco- pode ser apenas um louvor desencarnado, mas o louvor da
nômicas? Não é quase sacrílego, profanar deste modo o «Santo entrega de nossas armas e defesas, o desmantelamento dos muros
dos Santos»? e das paredes entre nós: em casa, na família, no bairro, ena
Com efeito, não temos muito o costume de ligar a econo- grande sociedade nacional e mundial. A fim de que todos sejam
mia e a ordem social aos mistérios da intimidade de Deus, e um, e a fim de que a humanidade se torne uma verdadeira co-
a própria palavra «santíssimo» parece sugerir algo de muito munidade. E que esta nossa comunidade seja com o Pai e com
aéreo e elevado, que não pode ser misturado com a profanidade seu Filho Jesus Cristo (ljo 1,3) e com o Espirita Santo. Amém.
do mundo. No entanto, a profanação não está propriamente na
reflexão, e sim, na realidade do nosso mundo. Por isso também, Pe. A. van den Berg, C.M.
Belém, PA
em vez de entregar-nos a e perder-nos em elevadas especula-
ções, que espiritualizam e desencarnam o mistério de Deus, pode
ser melhor evocar a grande contradição e tomar consciência da
blasfêmia que vivemos e praticamos na nossa cidade e convi-
vência humana. Esta convivência que é chamada a inserir-se na
unidade do Pai e do Filho e do Espírito, do Deus que está
perto e envolve a cidade humana e procura incluí-la na sua
vida divina, em que não existe divisão, nem muro, mas em que
«Eu e o Pai somos uma coisa só», e em que todos nós have-
mos de tornar-nos uma coisa só, no Pai e no Filho e no Espí-
rito Santo. Dentro deste esforço, deste apelo, deste chamado-
convite divino estamos nós, e vivemos a nossa cidade humana
dilacerada e dividida.
Festa da Ssma. Trindade. Devemos glorificar e louvar ao
Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, sim. Mas todo louvor será
uma mentira e uma blasfêmia, se deixarmos continuar a con-
tradição. Se não nos esforçarmos, seriamente, por quebrar os
muros, pequenos e grandes, a fim de deixar-nos invadir pela
força unitiva do mistério de Deus.

224 225
Solenidade do SS. Sacramento Por isso que nesta paS.agem não se fala desta ou daquela prescnçao,
mas da soma de tudo que era prescrito ao povo de· 1srael e que devia
do Corpo e Sangue de Cristo ser o conteúdo sagrado de Seu compromisso religioso com lahve. E ·a
revitalização da Lei de Deus é uma estrutura fundamental e um prin-
Pistas Exegéticas cípio teológico do movimento de reforma deuteronôntlco/deuteronomista.
Isto se encontra descrito de modo solene e amplo ·em 2Rs 22s. Aqui
Ptlmelra Leitura: Ex 24,S.S também encontramos a evolução do livro da torá para o livro da «b'rib
como a passagem das _palavras e leis de lahve para o livro da b'rit
«Faremos tudo lfJ que Jahve disse e lhe seremos obedienteS> em Ex 24,3.4aa.7. E a melhor maneira de revalorizar a Léi de Deus
para os teólogos deuteronõmicos era ligá-la com o Sinai, pois ele era
Conte"!o literário de Ex 24,3-8. Esta passagem se encontra atual- chão mui~o sagrado como lugar da revelação de Jahve. Ouvir, portanto,
mente no livro d~ llxod? envolvido por Ex 24,ls.9-11. Estas duas partes, a Lei de Deus, santific~da desta maneira, e concordar com ela, pondo-a
no entan!~, se_ diferenciam por um outro grupo de pessoas, por dife- em prâtica, é praticar a b'rit, isto é, uma vida pautada na orientação
r!'l'tes des1gnaçoes de D~us e pelo· diferente lugar de atuação das pessoas de Iahve. Motivar os israelitas do séc. Vil aC a esse estilo de vida
:!adas !!elas· Já a partir desta constatação parece precipitado unir estas era o objetivo básico dos teólogos deuteronômico/deuteronomistas.
uas urudades, Ex :i4,ls.9-11 e Ex 24,3-8, sob um titudo: Realização A segunda camada, Ex 24,3atJb·6.8, COI\leça com a expressão ena
da . «all"f'Çtl> no Smai ou atribuir estas duas partes a fontes Ji!e- dia seguil)te pela manhã> que alude a uma continuação, sem ficar
rár~as diferentes que, no entanto, abordam o mesmo assunto (O termo claro se é com Ex 24,ls ou com os vv. 3 e 4. Em todo o caso Moisés
«3!iança> sempre apar~ce grifado, pois ele nem sempre abrange o con- nesta camada começa de manhã a construir um altar ao pé do monte e
tendo do termo hebraico b'rit que tem vârias nuanças). certamente erigiu doze ; colunas perto ou em torno · do altar para re-
presentar as doze triheis, isto é, a totalidade do povo ·de Israel.
grantl :;eJ~~~sª a1iiaJ~Xn: 4• 3~:Stã~e~d9 1J~çP!~ ne ~Tofu~~as p3-es8quisas de dois
0
3 No v. 5 jovens israelitas e não sacerdotes são encarregados para
a fontes UterârJas pré-de 1
ser atribulda nd
$ o • 4>A 24, não pertence
u eron m1cas. Es1a passagem, portanto, certamente pode
Kutscb, p. fis.~?ºPe~utfes, àfoo!~ôãe)s llterãrJas deuteronômica/deuteronomista (cf.
oferecer a Jahve holocaustos e sacriflcios.
a. seguir, • , • P· • Isto, no enta~to, será fundamentado togo
B Importante ressaltar que neste verslculo não se fala de sacrifJcios da "aliança".
Aliás em todas as fontes llterãrias da tradição -do AT nunca aparece o termo
Coment~rlo d~ Ex 24,3-8. Lendo-se com :atenção esta passagem, sacrlilclo da "aliança". E também é preciso enfatizar que esta ação sacrifical não
tem nada a ver com a realização da "aliança" como comumente se interpretam os
po.de~ entao perceber logo que ela se compõe de duas camadas. A sacrificlos desta cena cuttuat e o rito do sangue nos vv. 6 e 8. A explicação geral
pruneira Ex 24,3.4aa.7 que tem como tema a lei e a «aliança> e a do v. 5 é a seguinte: Moisés tomou uma metade do sangue e a colocou em baclas
e a outra metade ele derramou sobre o altar que represei:)ta Deus. A primeira
segunda Ex 24,4ajl-6.8 que descreve uma cena sacrifical e ta'mbém metade do sangue, assim se interpreta normalmente o v. 8, Moisés aspergiu-a sobre
emprega o termo «aliança>. o povo dizendo: Eis o sangue da "aliança" que Deus faz convosco. :a desta Inter-
pretação que surgiu a compreensão da aliança no sentido Qe um pacto, tratado,
. A primeir_a cam~da inicia de modo inesperado, pois no v. 3 se acordo de Deus com o homem. Mas, cuidado! vamos com calma ler o que está
escrito em hebraico nos vv. 6 e 8 para não fazermos "eisegese", isto é, lnterca1ar
diz que «M01sés vem>, sem poder descobrir donde ele veio Assim no texto blblico nossas idéias. Talvez que toda a compreensão do sangue da aliança
~oi_no Moi~s é aqui intro"duzido, há na perlcope do Sinai ape~as uma é Introduzida aqui sem que haja base para isto no texto bibllco.
uruca alusao, Ex 19,7.Sa, onde ele também aparece de modo direto.
E tanto nesta passagem como em Ex 24,3 Moisés surge com a finalidade Lendo com atenção o v. 6 encontramos a expressão· cmetade do
11e apresentar ao povo «Iodas as palavras de Jahve ... • e acolhe dele sangue. . . e metade do sangue». Esta distribuição1 do sangue pode
sua resposta e seu juramento. Isto, aliás, é repetido no v. 7. sugerir dois parceiros. ·Um seria Jahve representado pelo aliar sobre
o qual Moisés derrama metade do sangue. A metade do sangue que
foi colocada em bacias é em todas as interpretações esquecida em favor
do v. 8; mas neste versículo não se fala nem de uma e nem de
outra metade do sangué1 mas simplesmente do sangue que Moisés toma
para aspergir o povo. Por isso de metade do sangue só se laia no v. 6
e não no v. 8. A aspersão de sangue, enfim, tem aqui um significado
ou uma função além do rito do sacrifício, fundamentando talvez uma
cerimônia da aliança? Perlitt, um grande perito nesta: questão, responde
assim: O rito de sangue descrito no v. 6 pertence : somente ao ritual
do sacrifício como o altar e a nada mais (cf. Perli!t, p. 199). A ação
Tudo isto Já r~vela que esta passagem não pode ter surgido na do sacrifício, portanto, ·que começou com o v. 4af}, na qual a aspersão
época em que a Lei de Deus eslava em via de ser colecionada codifi- de sangue é um rito normal de certos sacrifícios israelitas, estã con-
cada e pr~posta para ser praticada, mas manifesta o te~po em clulda no v. 6. E assim se abrem as portas para explicar o v. 8.
q~e a Lei, Já h~ !empo codificada, necessitava de uma dignidade reli- O v. SbP «em vista de todas estas palavras» tem, ·totalmente evidente,
gmsa como. o direito de Deus. A Lei precisava ser revalorizada. Ela apenas uma ligação com os vv. 3 e 7 e não com a· ação do sacrifício.
fora esquecida e posta de lado no tempo dos teólogos deuteronõmicos. Esta parte, no entanto, não pode ser separada de Sbà. porque a expres-

226 227
são hebraica 'karat bsrlt al' =cortar uma «aliançm> em vista de, é
- 8,4: «Se ele estivesse na terra: nem mesmo sacerdote seria>.
comum e fixa no AT. O v. 8b então, «eis o sangue da bsrlt que lahve
faz conosco em vista de todas estas palavras», é um,a interpretação - 6,20: <Onde (santuário eterno) Jesus entrou por nós como pre-
clássica de uma antiga ação sacrifical com os meios lingüísticos e cursor, Pontífice eterno».
nocionais do v. 7 que não provém do tempo de Moisés, mas de Josias. Estas citações dão a impressão de que Jesus só no céu conseguiu
Assim os teólogos deuteronômicos também relacionam o termo b~rit o sumo sacerdócio. Entretanto, a interpretação tipológica do ritual da
com o culto sacrifical israelita, relendo todas as tradiçfies do passado expiação .CLv 16) s~ admite a conclusão de que Jesus, já sumo sacer-
à luz da teologia da l?rlt. Assim a expressão sangue da b•rlt tem dote, se nnolou a S1 mesmo na cruz e atravessou os céus até o trono
para Kutsch o mesmo significado que o livro da b8rit no v. 7, a saber: de Deus. Seria absurdo pretender que a paixão e morte de jesus não
assumir o compromisso de viver de acordo com as palavras de Jahve foram sacrifício sacerdotal, o que se refuta com textos da mesma
(Kutsch, p. 87s). Deixar-se aspergir pelo sangue da b'rit, então, sig- carta, a saber:
nifica a mesma promessa do povo no v. 7 de forma oral, isto é, - 9,26: «Ê certo que apareceu uma só vez ao final dos tempos
comprometer-se a praticar tudo o que foi prescrito por Iahve. para a destruição do pecado pelo sacrifício de si mesmo».
- 9,28: «Cristo se ofereceu uma só vez para tornar sobre si o!;
Bibliografia: N o t h, M., Das zwelte Buch Mose. Exodus, ATD 5 Oõttlngen pecados da multidão>.
1968; Per 11 t t, L., Bundestheologie im Altem Testamerrt, \VMANT 36! Neukirchener
Verlag 1969; K u t s c h, E., Verheissung und Oesetz, BZAW 131, Ber ln 1973. - 10,5--14: «Ao entrar no mundo, Cristo diz: "não quiseste sacrifício
nem oblação (do VT), mas me formaste um corpo. . . Eis que venho,
Pe. Pedro Kramer, O.S.F.S. ó Deus, para fazer a tua vontade' (SI 39,7ss)... Foi em virtude desta
Porto Alegre, RS vontade de_ Deus que temos sido santificados de urna vez para sempre,
pela oblaçao do corpo de Jesus Cristo. . . que ofereceu pelos pecados
Segunda Leitura: Hb 9,11-15 u!11 . único sacrifício e logo em seguida tomou lugar para sempre à
Contexto. A carta aos Hebreus oferece-nos uma slntese do NT em confronto '!ir_e!ta de Deus. . . por uma oblação só Ele realizou a perfeição de-
com o VT, sublinhando a mensagem nova de Cristo, superior à antiga aliança. f1n1tiva daqueles que receberam a santificação>.
Cristo é superior a Moisés e aos anjos. Como sacerdote transcende o sacerdócio
vétero-testamentário. O novo santuário, a . nova aliança, superam de longe os de ·Deste trecho transparece claro que Cristo «já veio>, «jã aparecen>,
antigamente. A eficácia do sacrifício de jesus é definitiva. O VT é apenas cjã se apresentou~ na qualidade de sumo sacerdote. Hb não quer apenas
sombra do NT. !alar da ascensão ao céu, mas também interpretar teologicamente toda
Nosso texto (9,11-15) apresenta o ministério sacerdotal de Cristo a existência de jesus. Seu sacerdócio, em contraste com os ritos exter-
nos céus. Após ter falado dos sacrifícios mosaicos1 reporta-se ao sacri- nos do VT, traz os bens efetivos e reais (10,1). Em concreto, seriam
fício de Jesus. Mesma terminologia, panorama distinto i - aquela, no as promessas melhores do NT (8,9), a remissão dos pecados1 a co-
NT, adquire muito do metafórico. Este assunto se defronta com a munhão definitiva cr;>m D~us. jesus pode oferecer-nos tudo isso, porque
carnalidade do culto antigo. A pessoa de Cristo operou transformação exerce um sacerdóc10 mais excelente, que não se consuma no âmbito
total no sacerdócio e na Lei (7,12), realizou mediação sacerdotal para terrestre, mas em tabernáculo maior, mais perfeito, não feito por homens,
os bens espirituais. Em conseqüência, desde o inicio, outro seria o não pertencente ao plano finito. A obra de Cristo faz ressaltar a imensa
âmbito de seu ministério sumo-sacerdotal. Historicamente Jesus viveu superioridade de seu sacrifício face ao levítico. Os cbens futuros>
na terra, morreu na cruz e depois subiu ao céu. Assim sendo, Hb (9,11), vindouros, são os messiânicos (B,6). O ctabernáculo mais exce-
consideraria a morte de Jesus na cruz como um fato que teve lugar lente e mais _perfeito» (v. 11) é o celeste, do qual o mosaico era apenas
fora do santuário celeste, tendo por finalidade única conseguir o Sangue sombra ou figura (8, 1-5). Assim como o sumo sacerdote israelita atra-
necessário para a entrada no céu. Muitos intérpretes de Hb opinaram vessando o «santo>, penetrava no csanto dos santos:) aspergid~ com
que jesus Cristo se tornou sacerdote só no céu, onde oferece incessan- sangue de animais, assim Cristo, atravessando os céus' (v. 11) inferio-
temente a Deus o seu Sangue derramado na cruz. Todavia, semelhante res, entra no verdadeiro santuário, onde mora Deus, com a aspersão
posição não parece fazer justiça à importância da morte de Jesus nem de seu próprio sangue (v. 12).
à argumentação da Carta em apreço. Não é fáci1 transpor Lv 16 (rito da expiação: o sumo sacerdote atravessava
Vejamos as passagens relativas ao ministério sacerdotal de jesus: o tabernáculo anterior e penetrava no santo dos santos) para a pessoa e atos de
- 4,14: «Temos um grande sumo sacerdote que penetrou nos céus, Cristo. jesus( pela sua morte, entrou no verdadeiro "saoto dos santos" de Deus
{cf. 9,24; 0,12.20). Que é este "tabernáculo do santuário celeste" que Jesus
Jesus, Filho de DeuS». atravessou/penetrou? Como nas parãboJas, não se confunda imagem com realidade.
_ 5,10: «Porque Deus o proclamou sacerdote segundo a ordem de A Idéia de um recinto (Lv 16) não corresponde necessariamente em Cristo a
um lugar sagrado qualquer. . . Não se Imaginem pois "regiões tn/eriores do Céu"
Melquisedec». ou_ "áreas lnacessiveis aos sentidosn. A imagem 'de uih tabernáculo "não feito por
- 7,27: «Tal é o Pontífice que nos convinha: santo ... e elevado mao humana, não deste mundo" qualifica teologicamente a figura histórica de Jesus.
Os Santos Padres assim Sl? exprimem ao ensejo desse texto um tanto obscuro· o
acima dos céus que se imolou a si mesmo urnã vez para sempre». que o primeiro tabernáculo anterior do VT não podia fornecer - a condição bá~lca
- 8, l : «Temos um sumo sacerdote que está assentado à direita para a entrada no autêntico "santo dos santos" do céu - agora já ficou resolvido
pelo "tabernáculo maior e mais perfeito" da vida de· Jésus S João Crisóstomo
do trono da majestade divina nos céus>. Interpreta "tabernáculo" como sendo o corpo/humanidade d~ Cristo. Caetano vê
- 8,2~ «E ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo, eri- nele a Igreja antes da ascensão. Cristo não põde entrar no "santo dos santos"
sem sangue (9,7); contudo sua morte1 sacrJflclo cruento, :produziu uma reparação
gido pelo Senhor, e não por homens». eterna e apagou todos os pecados da numanldade ontem, hoje, amanhã. Além disso,
o Sangue de Cristo nos purificou a consciência de todas as obras "mortas", ante-

228 229
rtores ao batismo; o Sangue de Cristo pode purificar, com os mérltas do sacrl-
ficio de Crista, o Jntlmo da consciência com uma renovação interior de vida, restau- rdria entre os relatos; a da datação da última Ceia; a questão se a
rando a vida divina da graça no hamem. Assim o homem se habilita a servir ao
Deus vivo com um culto agradável qual o de Cristo no céu e de todo o corpo
última Ceia era ou não uma ceia pascal. As teorias sobre a ascen-
mistico. E através de Cristo Sacerdote que a liturgia recobra todo seu valor. dência literária combinam Marcos e Mateus de um lado, Paulo e Lucas
de outro lado, enquanto a versão de João, com a narração do lava-pés,
Não consta claro que o texto, aqui, tenha presente a remissão dos representaria uma terceira corrente. A-5 análises e comparações dos
pecados que pesam na consciência dos cristãos e prejudicam o culto relatos dos sinóticos levaram à hipótese de que, em um estádio pré-
divino. Certo é que pelo batismo houve um novo come"Ço e que o fiel literário, tenham existido duas correntes de interpretação da última
recebeu a capacidade de servir ao Deus vivo. Isso implica em que o Ceia, uma que acentuasse mais o caráter pascal da mesma, outra que
Sangue de Cristo pode sempre purificar-nos das coliras mortas>. No insistisse mais na sua natureza eucaristica. Nos nossos evangelhos si-
VT tocar um defunto contaminava ritualmente o individuo (Nm 19,11-22). nóticos encontrar-se-ia uma fusão destas correntes. A primeira, que
Ora, o defunto que nos contamina somos nós mesmos. Esta entrada de apresenta a última Ceia como uma ceia pascal, influenciou também a
jesus Cristo, inversamente do sacerdócio hebraico, faz-se uma só vez cena da preparação da última Ceia, no caso a primeira parte da
e para sempre, obtendo-nos uma redenção eterna (v. 12). Argumentando leitura, Me 14,12-16 e os textos paralelos, MI 26,17-19; Lc 22,7-13.
ca minore ad maius:P se diz: se o sangue de animais era capaz de Dentro do próprio re1ato da última Ceia estas duas correntes de inter-
obter uma pureza carnaljJegal, tanto mais o Sangue de Cristo, versado pretação reconhecem-se mais 'facilmente na versão de Lucas. Ela divide-
na cruz, será capaz de produzir pureza interior/espiritual. Hb mais se em· duas partes. Primeiro fala-se em «:comer a Páscoa» (Lc 22,15-16)
que deter-se na diferença de efeito (pureza legal/interior) pensa na e «beber do fruto da videira» (Lc 22,17-18) e, depois, do pão (Lc
diferença de vítima (animais/Cristo), diferença infinita, que dá força 22,19) e do cálice (Lc 22,20) eucarísticos. As mesmas correntes são
ao argumento. A expressão «pelo Espírito Eterno> (v. 14) pode aludir reconhecíveis em Marcos e Mateus. Mas a primeira em uma forma
tanto ao Espírito Santo que movia a Cristo em seu agir (Lc 4,1; 4,14; menos completa, somente mencionando-se ela em ligação com o «beber
Mt 4,1; 12,28) como também, mais provavelmente, à sua natureza divina, do fruto da videira» ( cf. Me 14,25; Mt 26,29) e, em contraste com
o que empresta ao sacriflcio um valor eterno. Lucas, depois da interpretação eucarística do pão e do cálice (cf. Me
O v. 15 volta ao conceito de «novo testamento:=- para, logo mais 14,22-24; MI 26,26-28).
(vv. 16-17), fazer ponderações juridicas. «Diathl!ke> em grego pode
significar «aliança> (sentido religioso) e também <testamento> (sentido Estas constatações suscitam a questão da autenticidade destas cor...
jurídico), expressão da última vontade de alguém. Hb explora com rentes de interpretação. Ambas as interpretações são de Jesus mesmo,
proferidas na mesma ocasião, ou em diferentes ocasiões que posterior-

r
habilidade tal ambivalência para demonstrar que a Nova Aliança só
passou a valer com a morte de Cristo. Como só pode haver partilha mente foram combinadas? Ou pode-se tratar de elucidações e formula-
após o falecimento do testadorJ assim Cristo devia antes morrer para ções litúrgico-teológicas diferentes do mesmo gesto de Jesus? Ao ce-
que tivéssemos direito à herança prometida. Cristo é também mediador lebrar a última Ceia ele interpretou antecipadamente - como antes
da Nova Aliança precisamente porque se ofereceu ao Pai na cruz. Pa- a Sua mensagem e Sua ação e comportamento - também a Sua paixão
rece absurdo que Deus possa morrer, - mas não será este absurdo e morte como constitutivas da vinda do Reino (Me 14,25 e par). Para
a «loucura da cruz»? Deus não se fez homem para destruir pela que a Sua mensagem e ação, a Sua paixão e morte não perdessem
morte aquele que mantinha o domínio sobre a morte (Hb 2,14)? Nem este valor constitutivo da vinda do Reino, mas continuassem a a!uar
adianta distinguir: Cristo morreu corno homem, não como Deus. Hb através da memória vivida na história das pessoas e comunidades que
faz morrer Jesus como quem, pessoalmente, estabeleceu o testamento nelas - e n'Ele - acreditarem, legou-lhes-as - e a Si rne.smo -
de Deus. A morte do test~dor produz efeito perene. Não é algo transi- em uma celebração, moldada à maneira daquela celebração que, através
tório. A teologia litúrgica de Hb visa apresentar a morte sacrifical de dos séculos, se provou constitutiva do povo de. Deus a que pertencia,
Cristo na cruz como evento perene e que produz fruto de salvação a saber, a celebração da Páscoa. Também esta, comemorando a ação
para sempre. libertadora de Deus no passado, não esgotou nesta memória a sua vir-
Bibliografia: F. .1. S c h ler se, Epistola aos Hebreus, trad. de W. Pires
tualidade, mas sempre de novo depositou no coração dos crentes e do
Martins, Vozes, Petrópalis 1970; O. K u s s, La lettera agll ~brei, trad. de O. povo a esperança messiânica da vinda do Reino. Instituindo a celebra-
Rlnaldi, Morcelllana, Brescla 1966; .i\l. N J i:: ola u, Carla a los Jlebreosf La Sagrada ção de Sua memória na eucaristia, Jesus conferiu-lhe toda a virtua-
Escrltura, NT/UI, BAC, Madrid 1962; L. Turra d o, Blblia comentaaa, VI, BAC,
Madrid 1965. lidade da celebração pascal.
Pe. Matheus F. Oiuliani, S.A.C. Os fatos constitutivos lembrados e celebrados na Páscoa Judaica per-
Santa Maria, RS manecem, porém, muito aquém dos fatos constitutivos lembrados e ce-
lebrados na Eucaristia Cristã. Por isso a celebração eucarística não
Terceira Leitura: Me 14,12-16.22·26 somente na sua forma mas também no seu conteúdo podia absorver
«Este é. meu sangue da Aliança . .. » - os eventos pascais constitutivos tanto do antigo como do novo povo
de Deus, da Antiga e de Nova Aliança.
No Novo Testamento encontram-se reminiscências da última Ceia de Como no Novo Testamento encontram-se quatro ou cinco versões
jesus com Seus discípulos nos quatro evangelhos e J Cor 1J. Há várias da última Ceia, nenhuma delas. totalmente idêntica, assim a Igreja
questões muito discutidas a respeito. Por exemplo, a da dependência /ite- de hoje, enriquecendo a liturgia da Missa com várias Preces Euca-
230 231
rísticas, reconhece que o sentido 1otal do que se comemora somente o que são e se fazem nossa própria carne, nossa própria vida
poderá ser atingido através de várias formas de celebração da mesma. e nosso próprio esp!rito. Eles se fundem com a nossa própria
Bibliografia: Em português, além de comentários, por exemplo, J. J e r em 1 as, realidade. É o exemplo, quem sabe, mais elucidador da perfeita
Isto e o meu corpo, São Paulo 1978; L. O o p p e l t, Teologia do Novo Testamento, união.
Petrópolis-São Leopoldo 1976, p. 223-231 · L. B o f f, Paixão de Cristo, Paixão do
.Afundo, Petrópolis 1978, p. 46-49; verbeÍes em Dicionário Enciclopedico da Blblla,
Vocabulário de Teologia Blbllca, Dicionúrio de Teologia Blblica, Dicionário de Ora, Deus encarnado quis ficar sempre conosco. Não exte-
Teologia etc. riormente, deixando sinais de sua passagem pela terra. Quis
Raul Ruijs, 0.F.M. ficar vivo e tão unido à nossa vida quanto unido está o ali-
Petrópolis, RJ mento que ingerimos e que se transforma em nossa própria
vida. Por isso Jesus celebrou uma ceia na qual nos disse as
Tema Principal memoráveis palavras que sempre de novo repetimos na santa
A VIDA Só É VIDA, QUANDO É FEITA DOM E ENTREGA' missa: «Tomai e comei, isto é o meu corpo»; «tomai e bebei,
isto é o meu sangue». Jesus, pela eucaristia, se faz nosso próprio
corpo; nós, pela eucaristia, nos tornamos corpo de Cristo. É
Sugestões para a Homilia assim que somos associados a Cristo e é desta forma que Cristo
se une a nós, fazendo nascer a sua Igreja.
Introdução
2. Vida só é vida quando é entrega
Deus possui. uma pedagogia curiosa: quando nos quer co-
municar as verdades mais sublimes, se serve de exemplos mais O alimento só é alimento quando é entregue e consumido.
corriqueiros. Assim todos entendem e sua salvação alcança o A vida humana só é humana, rica, verdadeira quando se faz
' homem. Quando quer mostrar como o seu desígnio de liberta- entrega e dom de amor. É este o sentido que Jesus quis tornar
ção se realiza na história, mesmo quando nem pensamos nele, imorredouro com a Eucaristia: o senti d.o da vida se conquista
nos fala da semente que germina e cresce, pouco importa se sacrificando a vida. A vida só vive quando se dispõe a morrer.
o agricultor dorme ou vela. Quando nos quis revelar a forma É como o grão. Se quer dar vida nova, tem que morrer. Mas
1
íntima e profunda de sua presença em nosso meio, usou o esta morte não é perda, como todos tememos. É ganho. É forma
1, exemplo dos alimentos: eles se fazem nossa carne e nosso san- de garantir a própria vida. Jesus fez de sua vida uma completa
gue: assim Jesus se faz nosso sangue e nossa carne. É a Euca- entrega. Não apenas no momento da última ceia, mas em todos
ristia, como sacramento e como mistério. os momentos da vida. Os Evangelhos estão cheios de exemplos
do amor, solidariedade e entrega de jesus em função dos outros.
Corpo Ele foi um ser-para-os-outros. «Se alguém vem a mim, eu não
o mandarei embora» (Jo 6,37); nunca entendeu sua vida como
1. Comer e beber: expressão mais profunda da união algo a ser vivido só para si, mas sempre como serviço e dom
Quando comemos e bebemos se realiza um dos maiores aos outros. Agora na última ceia, este modo de ser próprio de
mistérios da criação. De um pouco de matéria preparada se Jesus alcança sua expressão suprema. Ele se entrega a tal ponto
alimenta a vida humana, se reproduz e se garante o espírito que se faz pão e se faz vinho para assim poder estar na inti-
presente no corpo. Por isso, comer e beber nunca é um ato banal, midade da vida de cada homem que o recebe; mais ainda, para
mas sempre uma ação sacramenlal. Não nos nutrimos, mas nos poder ser a vida de cada um que o comunga.
alimentamos, preparamos os alimentos, enfeitamo-los e executa- A vida que circula em todo aquele que comunga Cristo é
mos, à mesa, um verdadeiro ritual. A razão reside no fato de vida divina. Por ser divina é vida ressuscitada e imortal. É já
que, inconscientemente, nos damos conta de que com a comida o céu se fazendo presente, é já o Reino de Deus se antecipando
e a bebida · se renova sempre um mistério: por mais alta e dentro da história.
excelente que seja a vida, ela não perde suas raízes materiais Jesus quis ainda que seu corpo e seu sangue significassem
e cósmicas. Dependemos de um pedaço de pão, de um copo de sua última lembrança e expressassem a aliança que Ele fez co-
água ou de vinho. Pão e vinho se transmutam: deixam de ser nosco. A alianç11 é o laço indefectível que une seu amor à

232 233
nossa existência. Nós podemos pecar, nossa vida pode se esva- Segundo Domingo do Tempo Comum
ziar e se perder; mas jesus não rompe jamais a aliança que
Ele fez com nossa existência. A Eucaristia mostra que Ele con- Pistas Exegéticas
tinua se entregando e querendo ser vida de nossa vida, sangue
de nosso sangue. É a aliança perene que, qual arco-íris, se esten- Primeira Leitura: 1Sm 3,3b·10.19
de sobre todos os homens.
«Fala, Senhor, pois o teu servo escutai">
Conclusão Samuel é uma figura-chave na história do povo de Deus do Antigo
Testamento. Viveu e desempenhou um papel de liderança na transição
A vida de Jesus foi de entrega. Só comunga dignamente de da época dos juízes para a época dos reis. Liga entre si a religião
seu corpo e sangue, quem faz de sua própria vida também popular dos tempos passados e dos santuários _populares espalhados
sobre o território das tribos de um lado e 1 de outro lado, a religião
uma entrega. Por isso a Eucaristia separada do amor aos irmãos e o culto oficiais introduzidos mais tarde por Davi e Salomão e sem-
não é a Eucaristia de jesus Cristo. Ele derramou seu sangue pre mais centralizados no templo de Jerusalém.
para salvar seus irmãos. Daí que todo aquele que comunga de Que o próprio povo de Deus do Antigo Testamento tinha consciên-
Cristo deve poder também comungar do irmão, e estar disposto cia desta posição-chave de Samuel na história deriva-se de textos como
a sofrer por causa do serviço aos irmãos. O sacramento implica SI 98(99),6 e Jr 15,1, onde ele é mencionado ao lado de Moisés. De-
riva-se também das várias funções que uniu na sua pessoa ou que a
seguimento de Jesus Cristo. Seguir é querer conformar a própria tradição posterior lhe atribuiu. Aparece, primeiro, corno responsável de
vida com aquela de jesus e estar apto a compartilhar do próprio santuários, onde desempenha funções. cultuais (cf. 7,9; 9,13; 11,15; 13,
destino de Jesus. 8-15). No último texto reivindica-se para ele a competência exclusiva
Leonardo Boi!, 0.F.M. para oferecer holocaustos e sacrifícios pacíficos. O nome de Samuel es-
Petrópolis, RJ tava ligado a vários santuários: de Siló (1,1-4,!), de Rama (7,17) e
de Gálgala (11,14-15), Esta circunstância deve ter aumentado a po-
pularidade e a fama dos mesmos. Em segundo lugar se lhe atribuiu a
Orações da Missa
No Missal Romano, Missa própria dasta festa: Paulinas,
{
1
função de «juiz». Também esta função ele desenvolveu em vários lu-
gares (Betel, Gâlgala, Masfa e Rama: 7,15-17). E ocasionalmente soube,
como os juízes do Livro doS juízes, reunir o povo e os combatentes
do povo na luta contra os filisteus (cf. 7,2-14). Em terceiro lugar, Sa-
p. 408s; Vozes, p. 335s. Duas Missas Votivas da SS. Eucaristia: muel é apresentado como profeta. Como tal atribuem-se-lhe os títulos
Paulinas, p. 911-913; Vozes, p. 751-753.
Dois Prefácios próprios: Paulinas, p. 455s; Vozes, p. 381s.
Cf. o Prefácio de Quinta-Feira Santa: Paulinas, p. 258s; Vozes,
' de «homem de Deus> (9,6-10), de «Vidente> e de <profeta> (9,9; d.
19,18-24).
A narração de que se tiraram alguns versículos para a leitura de
hoje mostra vários elementos próprios do gênero literário da vocação
215s, e o da Oração Eucarística V. de profetas. Monloubou os analisa no estudo citado na Bibliografia.
Os cc. 1-2 mostram o ambiente em que Samuel nasceu e foi criado.
Nasceu de pais justos que o encaminharam para o serviço de Deus,
«internando-o> no santuário (e. 1). Aí, ele corre o perigo de se tornar
vitima dos abusos que se praticam neste ambiente em que não se ob-
servavam as leis de Deus (2,12ss) e em que a <a palavra do Senhor
era rara> (3,1~. Mas Deus ínterveio pessoalmente e o libertou destas
influências nefastas. A narração da vocação sublinha por três vezes (vv.
5.6.8) que não foi um chamado humano que introduziu Samuel no
serviço de Deus, mas o Senhor mesmo. Este traço encontra-se também
na vocação de Moisés (Ex 3), de Gedeão Uz 6), de Amós (Am 7,15),
de Jeremias (jr l,4ss), etc. Ele realça-se por uma certa inaptidão da
parte do chamado. O menino Samuel custa a entender a origem da
mensagem que recebe porque ceie ainda não conhecia o Senhor e a
Palavra do Senhor não lhe fora ainda dirigida» (3,7). Assim também
hesitou Moisés diante do fenômeno estranho da csarça que ardia, mas
não se consumia> (Ex 3,3). Amós sublinha que deve sua" vocação pro-
fética à iniciativa de Deus, alegando que não era <profeta nem filho
234 235
de profeta>, mas cpastor e cultivador de sicômoros> (7,14). Jeremias Segunda Leitura: teor 6,13c-15a.17·20
sente-se totalmente despreparado para a missão que lhe é confiada (Jr
1,6). Sempre alegam-se contra-indicações humanas contra a vocação di- cOs vossos corpos são membros de Cristo»
vina. «Samuel era ainda criança; Moisés não tinha o dom da palavra
(Ex 4,10-17); Gedeão pertencia a uma familia pequena e sem proje- A l Cor responde a problemas e toma atitudes face a vários abusos
ção (Jz 6,15); Amós, era mais treinado para o trabalho do campo do morais: part:darismos, incesto, litígios perante tribunais pagãos, con-
que para o ministério profético (Am 7,14-15); Jeremias julgava-se in- ceito muito elástico de castidade. A presente leitura' litúrgica concerne
capacitado (Jr 1,16); Ezequiel achava que não passava de um fraco à , castidade, justificando-a teologicamente. -É possível que Paulo, em
'filho de homem' (Ez 2,1; cf. ainda lSm 16,7-11):. (Monloubon, p. 43). Corinto tenha formulado sua doutrina sobre a liberdade cristã com
Este despreparo aparece ainda mais quando o eleito de Deus se en- esta ~pressão: «Tudo me é licito, mas nem tudo' aproveita. . . mas
contra diante do objeto de sua missão. O pequeno Samuel linha medo não me deixarei levar por coisa alguma» (v. 12). Em 3,21 dissera:
de contar ao sacerdote Heli o conteúdo da revelação noturna (3,15). -e- tudo é vosso, vós, porém, sois de Cristal>. Aos Gálatas dirá: «F~s­
Encarregado de instigar os hebreus à liberdade e de convencer o fa- tes chamados à liberdade; mas não a tomeis por pretexto para servir-
raó a que renunciasse à mão-de-obra barata que ele ·explorava, Moisés des à carne» (OI 5,13).
ressentiu-se demais da falta de êxito e de força (Ex 5,22s; 6,12). Amós Não é fácil viver ,a liberdade. O homem não se conforma com
havia de criticar o sacerdote responsável e a dinastia:, reinante no pró- possíveis restrições a ela, quer radicalizá-la. E como sofre- ao ver que
prio «santuário real, no templo do rei> (Am 7,13). Jeremias defronta- de uma liberdade demasiada cai para uma escravidão deprimenteJ Em
va-se com «todo o pais, os reis de Judá, seus chefes, seus sacerdotes Corinto, a doutrina sobre a liberdade caiu em terreno propicio: os
e todo o povo do paiS> (Jr 1,18), enquanto Ezequiel se encontrava gregos viviam certo dualismo. Dum lado professavam certo espiritua-
«rodeado de espinhos e sentado sobre escorpiões> (Ez 2,6). lismo, desprezando o corpo. Por outro, estavam acostumados a gozar
Como no caso de !saias (6,1-6) Samuel ,é chamado em um san- a vida. Conciliavam os prazeres do sexo com o e'spirito de maneira
tuário e Amós recebe uma visão importante em um santuário (Am estranha. Paulo tenta sublinhar a vida sensível, apontando-lhe a ca-
9,1-4). O menino Samuel estava a serviço de um sacerdote, enquanto ducidade. O alimento é para a vida, a vida para Deus. O sexo tanto
Jeremias e Ezequiel eram, eles mesmos, sacerdotes. Os três receberam mais, já que a nutriçãi> é algo mais que simples satisfação de uma
o encargo para proclamar o castigo inevitável daquilo que estimavam necessidade. Não se pode ficar no plano meramente sensível sob preço
e amavam. Samuel tinha que anunciar a condenação da familia sa- de tornar-se um animal de estimação.
cerdotal de Heli (3,12-14). Jeremias devia anunciar que o santuário de A pessoa, que não empenhar todo seu personalismo humano na sua
Jerusalém, reduzido a uma «caverna de ladrões» (7,11), seria destruído. atitude para com o sexo, rebaixar-se-á, mais ainda: «0 corpo não é
E Ezequiel, que a Glória do Senhor se retiraria de, jerusalém e do para a impureza: ele é para o Senhor, e o Senhor· para o corpo» (v.
templo, profanados pelos pecados de Israel (Ez 9-11). 13c). Se cventre~ conota a vjda animal, ccorpo» compreende o homem
A condenação e a ameaça pertencem à mensagem dos grandes pro- em sua dignidade e suas potencialidades pessoais, é a· expressão per-
fetas (cf. lSm 3,11-14; Am 7,1-8,3; Is 6,lOs; Jr 20,8; Ez 2,10; etc.). sonal -do homem. É a. finalidade última de todo nosso ser: pertencer
Mas, mais importante do que este dado - o conteúdo negativo da totalmente ao Senhor (cf. Rm 14,7). <0 Senhor para o corpo (= pes- •
Palavra de Deus -, é o próprio fato de que esta Palavra ressoa de soa)~ . . . indica a entrega pessoal do Senhor a nós na eucaristia, com
novo e encontra porta-vozes de tal modo que possa desenvolver a sua o que se confirma a reciprocidade corporalmente.
mlssão na história do povo de Deus. Destaca-se isto nas frases com
que se encerra a narração da Vocação de Samuel (lSm 3,l!l-20). Em Antes, Paulo, falando do «alimento» e do «Ventre», disse: cDeus
Amós (3,3-8), Jeremias (15,16; 20,8-9) e Ezequiel (;!,3} fazem-se ob- destruirá um e outro». Agora, referindo-se ao «corpo (= pessoa)», diz:
servações semelhantes. Graças à fidelidade à Palavr,a que Deus lhes «Deus, como ressuscitou- o Senhor, também nos ressuscitará a nós ... »
dirigia, Samuel e os demais profetas tornaram-se aqueles agentes da com toda a nossa corporeidade, confirmando para sempre a união ates-
tada agora pelos sacramentos. Abusar desta corporeidade é pecar contra
lJ
história de Dens com seu povo, que deram à religião blblica o seu
caráter próprio e essencial, a saber, o de dar ouvidos à voz de Deus
que fala. A Palavra de Deus que se lhe revela leva o profeta ao
a nossa vocação primacial. Nem é simples abuso sexual, mas uma in·
gerência nos direitos do Senhor, como se fora o corpo do Senhor. Pela
mesmo tempo a transmitir esta palavra, ou, então, a transformá-la em castidade pertencemos corporahnente a Cristo. A pertinência total ao
ação. Por ;sso as narrações das vocações proféticas são relevantes para Senhor determina fundamentalmente a nossa autocoµsciência A forni-
/,/\:> entendimento da essência da vocação cristã. Porque cada cristão é cação no cristão é ultraje de Cristo, já que seu corpo (= pessoa) é
, chamado a escutar a Palavra de Deus e a pô-la em prática. membro de Cristo (v. 15). Fornicação aqui é a prostituição. Os gre-
go$ eram, via de regra, monogâmicos. A esposa administrava o lar
Blbllograjla: Os comentãrJos de A. van den B o r n e J. C. Tu r r o (em: e os filhos legítimos, não era lá tão valorizada como pessoa humana,
WC); L. Mo n 1 o-u b ou, La vocation de Samuel (1Sm 3,3b-10.19) em: AtlS Il/33
(1970) 40-45; C, Me: s t .e r s, A Jmplantação 1!a Monarquia. O t!onflito entre Pê podendo não bastar a um marido realizado. Achando seu matrimônio
e Realldad~ em: Pa1av1a de Deus na História dos Homens, Volume J, Petrópolis dêficiente, o esposo procurava compensações com meretrizes ou nu. ho-
1971, p. J-1-26; A. N e b e r, L'Essence du Prophétlsme, Paris 1955.
mossexualismo. Sendo nosso corpo membro de Cristo, quem procura me-
Raul Ruijs, O.P.M. retriz faz de um membro de Cristo membro de meretriz, confronta
Petrópolis, RJ Cristo com a meretriz.

236 237
''
No matrimôniO cristão, a doação mútua dos esposos deve ser ver- Terceira Leitura: ]o 1,35·42
dadeira entrega a Cristo. Vinculando a sexualidade diretamente a Cristo,
Paulo preparou uma visão personal da mesma. Ao homem depravado «Encontramos o Messias>
(«carne» em sentido pejorativo) opõe o «homem que se torna um
espírito com o Senhon. A carnalidade da só carne, na qual o homem J. Explicação
deturpa a sua dignidade pessoal, jogando-a na lama, opõe-se o reto
uso do corpo, porque conduzido pelo Espirita Santo. Há então um só O presente texto é a primeira parte do episódia de Jo 1,35-51, que
corpo e um só espírito ('Ef 4,4), uma perfeita e mútua comunhão narra a vocação de Pedro e André, Filipe e Natanael. O episódio todo
com C~isto (v. 17). é constituído conforme o principio da «transmissão de convite». Jesus
encontra joão; este co1oca dois de seus discípulos.. em contato com
O corpo dos batizados é templo do Espirita Santo (w. 18-20). Jesus; seguem-no (1,35-39). Um deles, André (1,40), .convida seu irmãa
Logo, não· pode pactuar com a fornicação, que, é um pecado contra o Pedro (1,41-42). Depois, jesus encantra Filipe (v. 43) e este convida
próprio corpo, falta que Paulo esconjura. Hál outros pecados contra Natanael. A atuação de André, convidando Pedro, e de Filipe, convi-
o corpo (suicídio, embriaguez ... ), mas a fornicação é praticada no dando Natanae1, é estritamente paralela. Possivelmente, o evangelho re-
corpo e com o corpo, sendo mais corporal ou carnal, já que na prática corde estas cenas com tanto carinho, porque prefiguram a missão dos
sexual corpo e espírito, corpo e pessoa, cor~ e individualidade estão primeiros cristãos, que depois da morte de jesus de~iam levar o con-
mais simultaneamente envolvidos do que em qualquer outra atividade. vite adiante, de pessoa a pessoa, como ainda nós hoje.
O instinto do pudor nos mostra como as expe,riências sexuais marcam A primeira parte deste conjunto (como também a segunda, que
a personalidade! No meretrlcio não se compra apenas um corpo: ven- não analisamos aqui) divide-se em duas cenas. Na primeíra (v. 35-39),
de-se o próprio, solapa-se a consciência do seu valor pessoal. O pecado o Batista mostra aos seus disclpulos jesus como <O cordeiro que tira
carnal não fica só na carne. Os diretores de consciência garantem que o pecada do mundo» (v. 35; cf. 29). O título de cCordeiro:o é própria
os pecados da carne enfraquecem as faculdades superiores: inteligên- do ambiente do 49 Evangelho (aparece, num outro sentido, também
cia e vontade. - no Apocalipse). Parece ser iospirado por Is 52,13-53,12, quarto canto
Paulo, a fogo e ferro, quer retificar o falso conceito grego de do Servo de Javé, texta primordial para a formação da cristologia da
«corpo» O corpo do batizado é templo do Espírito Santo (v. 19). Ao Igreja primeva. Neste canto, a Servo de Javé é comparado com um
Espírito Santo cabe a propriedade tlpica de inabitar em nós, visto que, cardeiro levada aos tosquiadores (Is 53,7); ele carrega os pecados dos
por natureza, Ele, é a autocomunicação de Deus em pessoa. Onde está homens (53,5-6), É possível que já em Is o rito do bode expiatório
o Espírito, ai está Deus (12-14; Rm 5,5; GI 4,6). O batizado pertence (Lv 16), rito de purificação do povo, inspirou em parte esta imagem
integralmente a Deus em corpo e alma. Já não se pertence. Como tal e a sua combinação com o perdão dos pecados. O importante é ver
não pode fazer com seu corpo o que quiser;. Não é por acaso que o sentido salvífico expresso nesta imagem. O Batista revela jesus nãa
nos tornamos propriedade exclusiva de Deus: fornos resgatados por alto como um esplendoroso rei davidico nem como Filho de Deus, embora
preço, entreganda por nós seu próprio Filho, o qual se entregou à morte este título, tão caro ao 4° Evangelho, caberia bem depois de ]o 1,34
cruenta por nós, em resgate (IPd l,18s). (e!. Me J,11 par). O Batista revela o sentido fundamental de Jesus
como Salvador, pois a revelação de Deus em jesus Cr.isto é, antes
Os corlntios sabiam dos escravos que eram libertados mediante uma de tudo, uma revelação no amor do Crucificado, plena realização da
soma depositada num teinplo, ficando agradecidos a quem os resga- figura de Is 53. Isto é também característico do evangelha de joão:
tava.. Paulo aproveitou a imag.em. Portanto, nós, uma vez resgatados, não é meritmente um «evangelium gloriae», como alguns intérpretes que-
deverlamos glorificar a Deus de alma e corpo, já que a redenção se 'rem, mas um ú'.evangelium crucis gloriosi». É na atuação soteriológica
processou também· corporalmente. O corpo, santificado pelos sacramen- de jesus, realizando a figura de Js 53, que vemos revelarªse toda a
tos, pode e deve glorificar a Deus em todas as nossas atividades: dirnensão messiânica e escatológica de jesus. Observe-se, porém, que,
trabalho, lazer, sono, esporte ... Sendo livres, corremas a perigo de nos na seqüência do episódio, também os outros títulos messiânicos de je-
deixarmos dominai por impulsos desordenados, caindo em práticas ver- sus aparecem, quase como uma profissão de fé dos primeiros discJ-
gonhosas que nos' deprimem e rebaixam. No helenismo, de um sensua· pulos: o Messias (v. 41), aquele de quem falam as Escrituras (v. 45),
lismo solto passou-se a uma atitude hostil ao corpo (rnaniquelsmo). o Filho de Deus e Rei de Israel (v. 49), o Filho do Homem (v. 51).
No Cristianismo, 'graças às verdades da criação e redenção, o corpo O que atesta a índole programática deste episódio: é uma proclamação
é revalorizado· em· seu justo termo: nem divinizado) nem menosprezado. de jesus Messias conforme todos os gostos. ,
A narração da vocação de André e seu companheiro desconhecido
Bibliografia: Cf. 111 Domingo do Advento (2' leitura), acima, p. 13. é muita diferente daquilo que conta Me 1, 16-20. É POl>Sivel que o acon-
tecimento tenha sido transmitido na tradição oral de duas maneiras
Matheus P. Oiuliani, S.A.C. bastante diferentes.. Mas além de serem «tradições v3.riantes>, as duas
Santa Maria, RS narrações têm também interesses teológicos e querigmáticos diferentes.
Em Me, a história é construida em redor do dito sobre os «pescadores
de homens>; este dito e,xplica toda a maneira de encenar o aconteci-
mento. Em jo l,35ss, o· teor é bem diferente. A história é construida

238 23~
! sobre a idéia da busca do Messias. Em Me, jesus é quem procura e
chama os discípulos. Em jo, são os discípulos que, encaminhados pelo
Batista, procuram jesus. Daí a pergunta de jesus no v. 38: «Que estais
2. Lugar na liturgia
O presente evangelho serve para abrir a leitura da vida pública
de Jesus durante os domingos comuns do ano litúrgico. Embora seja
procurando?» Ao procurar corresponde o encontrar: «Encontramos o
Messias» (v. 41), cEncontramos aquele do qual Moisés escreveu na o evangelho de Me que fornece a leitura continua no Ano B foi esco-
~id_o este episódio do evangelho de jo para abrir a série, po~que cons-
Lei> (v. 45). O tema do encontrar é destacado ainda pelo fato de o
autor utilizar este termo também para a «transmissão de convite» de
André a Simão Pedro, de jesus a Fi1ipe, de Filipe a Natanael (vv.
41.43.45). Em vez de narrar a «vocação dos discípulos por jesu~ como
f titui o elo entre a festa do Batismo do Senhor (omitida este ano, por
coincidência com a Ep;fania) e a atividade pública de Jesus na Gali-
léia, que, nos domingos seguintes, será apresentada mediante as lei-
Me 1,If1c.20, J_o l,35ss narra «O encontro do Messias pelos discípulos», turas de Me. O episódio joanino é especialmente adequado para enca-
encontro que Se rea1iza em reação de cadeia. Deve-se reparar também
que os discípulos, à pergunta de jesus «Que procurais?» não respon- f beçar a narração da vida pública, porque coloca em plena luz o que,
em Me, só aos poucos a,Parece: a significação messiânica e salvífica
dem «0 Messias», pois joão já lho indicara como tal. Respondem: «Onde
estás permanecendo?» (grego menein, morar, permanecer)~ Querem es-
t de Jesus.
Com este evangelho relaciona-se, naturalmente, a primeira leitura do
tar com ele, lá onde ele está. É o rnenein, o permanecer com e em jesus dia, a vocação de Samuel. Contudo, deve-se observar que no caso de
que será comentado por jesus na hora da sua despedida do mundo Samuel se trata de uma vocação no sentido tradicional, semelhante à
(cf. sobretudo Jo 14,lss.10; 15,lss). Quem encontra o Messias, perma- dos profetas Isaías, Jeremias e Ezequiel, enquanto o episódio evangé-
nece com ele. Jo justifica narrativamente este «ficar com ele» pela hora lico realiia um gênero literário próprio, aproximando-se mais da reve-
avançada: a «décima hora» é quatro da tarde. lação do que da vocação.
; Johan. Konings
Voltando agora o olhar para trás, notamos que o terna de cen- 1 Porto Alegre, RS
contrar o Messias» completa de maneira sucedida o episódio anterior,

~
o testemunho do Batista, mostrando que ele não era o Messias (1,6-8.

·I
19ss), mas testemunha do Messias (l,15.23.29ss). Todo o 1' cap. de Jo
gira em re~or da questão: «Quem é o Messias?l>. Não é o Batista, mas
este encaminha para ele; é o Nazareno - nome desprezado pelos ju-
deus do I século (de tal modo que o judeu verdadeiro, Natanael, tra-
duz este desprezo na observação do v. 46) - a quem os discípulos
l
'
Tema Principal
A VOCAÇÃO DO HOMEM É DEUS

'i
1 encontraram (v. 45).
.. Assim, Jo l,35s_s é um encontro com o Messias. Nos evangelhos si-
noticos, o reconhecimento de jesus como Messias sucede aos fatos da
t Sugestões para a Homilia
Introdução
sua pregação na Galiléfa (Me 8,27ss par). A estruturação diferente do
4~ evangelho faz com que este reconhecimento se situe na primeira pá-
gina. Há uma coincidência interessante com o evangelho de Mateus.
Este introduz, na cena da profissão de fé em Jesus como Messias, por
I
;
O tema central deste domingo é a vocação e o nosso se-
guimento, em resposta, ao Filho de Deus. Ao nascer, o homem
nasce para o desafio e missão de transformar a própria vida
Pedro (Mt 16,l3ss = Me 8,27-30), a mudança do nome de <Simão fi- numa plenitude. Esta plenitude, a Bíblia afirma, chama-se Deus.
lho de Jonas>, em «Pedro> (Mt 16,17s). O 4° evangelho realiza a :Ues-
ma associação aqui, em 1,42: a mudança do nome de Pedro coincide E o caminho para chegar a Ele chama-se jesus. Os discípulos
com o encontro do Messias (jo traz, além do grego petros, também o do evangelho de hoje tudo abandonaram para segui-1'0 e Si-
ar3!11aico kefa; e diz «filho de João» em vez de «Jonas», o que indi- mão recebeu um nome novo que significa missão e predileção.
caria um contato com a forma oral da tradição, presente em Mt 16).
Olhando bem, notamos que o evangelho de Jo é completo desde
a primeira página. O reconhecimento de jesus como Messias e os prin- Corpo
cipais títuJos cristológicos estão aí. Muito mais do que uma narração
progressiva, embora tenha a aparência disto, o 49 evangelho é um l. Deus procura o homem
contínuo aprofundamento. ·Os discípulos representam os que procuram
o Mess!as e, encaminhados um pelo outro, o encontram em jesus. O
v~".d~deITo «chamado> é o leitor do 4° evangelho. Ele é convidado para Na primeira leitura, Deus chama a Samuel na inconsciência
d1ng1r seu olhar para o Cordeiro e, seguindo-o descobrir a sua mo- \ do sonho e o chama por três vezes. Não lhe foi fácil distinguir
rada e ficar com ele, ficar com ele num sentido multiforme: na co- a voz de Deus, assim como, muitas vezes, para nós, que vive-
m'!"idade ~os que crêem nele, _mas també~ lá onde ele está agora, mos mergulhados nas múltiplas solicitações da vida, também não
pois ele foi preparar um lugar 1unto ao Pai, onde há muitas moradias
(mona, e!. menein, Jo 14,2; cf. 17,24). Este é o sentido último do con- o é. Mas Deus insiste, não se cansa e nem abandona aqueles
vite para ver em jesus o Messias. a quem quer salvar. No caso de Samuel, foi preciso que Heli,
240 241

1:
um velho sacerdote já com os olhos enfraquecidos e mal po- vive e busca os caminhos de Deus é sábio e prudente, pois sua
dendo ver (cf. lSm 3,2), lhe abrisse os olhos para a presença casa repousa sobre a rocha de Sua palavra que é fiel. O que
do Senhor. E Deus, então, lhe confia a ingrata missão de anun- vive como se Deus não existisse, entregue aos próprios sonhos,
ciar a destruição da casa. de Heli, cujos filhos procediruµ mal e é louco e insensato, pois seu destino, sendo obra de suas mãos,
desonravam o templo e o nome do Senhor (cf. cap. 2). se torna frágil e perecível. Deus é o grande e definitivo desa-
Uma das verdades mais fundamentais dos Livros Sagrados fio da vida. Tão grande quanto a felicidade de acreditar n'Ele
é a busca do homem por parte de Deus. Deus não só chama é a dificuldade de ser-Lhe fiel. Se Ele é imprescindivel para a
o homem do «caos do nada» para a vida, mas o vocaciona salvação eterna, é, no entanto, dispensável dentro da lógica da
para uma vida de união intima com Ele. Coloca-o num paraí- «cidade dos homens». Aqui é que a busca de Deus, tanto quan-
so e com ele se compraz em passear por entre as árvores. O to graça, ne torna também esforço continuado e cruz, que o
homem, como sabemos, virá posteriormente a perder esta inti- homem deve abraçar, aceitando nela morrer.
midade natural com seu Deus, por causa de seu pecado. Deus, Deus não é só o Deus de todas as consolações; é também
no entanto, não o rejeita para sempre, mas visita-o em sua o Deus .das supremas exigências. E por isso, talvez, que a me-
tenda ( cf. Abraão), faz com ele uma aliança de fidelidade e diocridade dos nossos comportamentos prefere transformá-1'0
salvação ( cf. o Povo Eleito) e, finalmente, para ensinar-nos o num «bom vizinho» com o qual nada se quer ter de mal, mas
caminho da verdadeira vida, Ele mesmo vem armar sua tenda com o qual também nada se quer ter de muito bem. Temos
na terra dos homens (cf. Jo 1,14). alergia a uma convivência profunda que seja de vida e morte.
A vocação na Bíblia é um chamado para os caminhos san- O exemplo de Jeremias talvez seja o mais gritante em toda a
tos de Deus e para uma vida de união com Ele. Quando o história sagrada, se o de Jesus não fosse o mais eloqilente. Je-
povo se faz surdo a esta vocação, Deus suscita homens espe- remias amaldiçoou o dia em que nasceu, porque Deus, que o
ciais a quem confia uma missão religiosa e libertadora. O seduzira; se lhe tinha transformado em motivo de gozação cons-
enviado se reveste da força de Deus e fala ao povo em Seu tante e de vergonha (Jr 20,8.17). O profeta sentia a Deus co-
nome. Proclama Seus cam.inhos e um ano de graça, reacende a mo um fogo devorador que se lhe encerrara nos ossos. Luta
fidelidade devida a Deus por causa da aliança feita com Ele, por livrar-se dele, sem, no entanto, consegui-lo. Sente-se, en-
denuncia o mal e a injustiça que dividem as pessoas e obscu- tão, vencido e se revolta com o sentimento da derrota (cap. 20).
recem os planos de Deus, anuncia castigos para a purificação O exemplo de Cristo é igualmente contundente: Só quer fazer
dos pecadores, prega a conversão, promete a salvação e recon- a vontade do Pai, mas esta decisã_o o arrasta para Jerusalém,
firma a fé do povo no poder de Deus. O profeta é a voz da onde sofrerá na mão das autoridades civis e religiosas de seu
consciência onde, momentáneamente, dorme inconscientemente a povo. Mas ele, como diz o evangelista, seguiu resolutamente em
vocação do homem para a santidade de Deus. · frente e afastou Pedro, que lhe embargava o caminho, com pa-
O acontecimento com Samuel, descrito na primeira leitura, lavras ásperas. Tanto Jesus quanto Jeremias não fugiram da
é significativo. Cada um de nós pode estar dormindo, esquecido vocação de encontrar em Deus a razão de sua morte e a fonte
da vocação que tem. Mas Deus não dorme e nem pestaneja; de sua salvação.
Ele continua a nos chamar e procurar. Importante é que o ho- Os apóstolos do Evangelho de hoje buscaram a Jesus, que
mem seja sensível à sua voz e não deixe de suplicar: «Fala, São João afirma ser o Filho de Deus, e lhe perguntaram: «Onde
Senhor, que o teu servo escuta!» moras?» Jesus apenas responde: «Vinde e vede!» Deixa, por
conseguinte, a eles a liberdade de segui-lo ou não, sem estimu-
lar-lhes a curiosidade com perspectivas mirabolantes. Na base
2. O homem na busca de De11& da vocação está um ato de fé absoluto e despojado. O homem
é chamado a apostar em Deus e em Deus somente, sem co-
A vocação do homem - dissemos - é Deus e sµa san- nivências, sem arranjos, sem meios-termos, sem bocejos. O ho-
tidade. A Ele devemos . responder com todo o coração ,e alma, mem, praticamente, deve morrer para si mesmo, crucificar sua
ou, como diz São Paulo aos Coríntios, «glorificá-1'0 com o carne, tomar sua cruz, abandonar tudo e obedecer fielmente à
nosso corpo» ( 1Cor 6,20). Segundo a Escritura, o homem que voz de Deus. Neste caminho, se ele encontrar a morte, encon-
242 243
trará também - é esta a grande promessa de Deus - a ver- Terceiro Domingo
dade e a vida, a salvação, a alegria e a paz.
Pistas Exegéticas
Conclusão Primeira Leitura: Jn 3,1·5.10

O homem é fundamentalmente um ser à imagem e seme- «0 Senhor teve pena de seu povo»
lllança de Deus. Esta natureza se transfigura quando a pessoa
O Livro de Jonas é aproveitado uma só vez no novo lecionário
abraça a vocação para a qual está destinada, ou seja, fazer do litúrgico dominical e festivo. Não deve seu nome ao autor, mas ao per-
Reino de Deus sua razão de viver. Viver para o amor d'Ele. Se sonagem principal da narrativa. Não se trata de uma narração histórica,
o homem faz de Deus o seu amor, Deus, muito antes, quand9 mas de uma parábola. A datação é difícil, mas supõe-se que tenha
éramos ainda pecadores, já fizera de nós seu sonho de eter- sido escrito mais ou menos quatro séculos antes de ·Crlsto. «0 tema
principal é a universalidade da saivação. De um lado o livrinho torna-se
nidade. Deus ama o homem e nele encontra graça e compla- assim um protesto contra o particularismo judaico, representado por
cência. Quer viver na nossa intimidade e destina-nos à Sua casa Jonas que, primeiro, tenta subtrair-se à sua missão entre os gentios
onde já nos prepara um lugar. A vida é o lugar onde se joga e, no fim, se. revela um grande egoísta. De outro lado dá-se clara-
e prepara o Reino dos céus. Cristo é o exemplo do homem mente a entender que as decisões divinas de destruir os pagãos sem-
pre são condicionais; pagãos que se convertem, como os ninivitas, mui-
perfeito. que se fez obediente ao Pai até a morte e morte de tas vezes são melhores do que os próprios judeus. Como teólogo, o
cruz e passou pela vida fazendo o bem a todos. Nós somos autor focaliza muito bem o domínio mundial de Javé, mas sobretudo a
chamados a segui-1'0, abandonando o mal e o mundo das tre- sua vontade sa1vifica universal, que, em última análise, é misericórdia»
vas, para que em nós se façam vivos e patentes os traços e a (Deden, DEB, p. 826s).
estatura do Filho de Deus e nosso irmão, Cristo Jesus. Viver O autor desenvolve esta doutrina a partir do credo central, citado
em 4,2; Deus é cum Deus compassivo, clemente, Iongânimo, rico em
assim é viver acordado, longe da inconsciência dos sonhos e bondade e pronto a renunciar aos castigoS». Este credo aparece pela
fantasias carnais. primeira vez na auto-revelação de Deus a Moisés em Ex 34,6. Mas
Frei Neylor j. Tonin, O.F.M. ganhou um lugar fixo na celebração da penitência do Antigo Testa-
Petrópolis, RJ mento (cf. Jl 2,13b; SI 85(86),15; 102(103),8; 144(145),8; Ne 9,17). Com
ajuda de outros textos bíblicos (Ez 26·28 em jn 1; jr 36 em jn 3;
!Rs 19 em jn 4; Jn 2 é um florilégio de textos dos Salmos), o autor
estende este credo também aos pagãos: também para com eles Deus
·é um Deus compassivo, etc. Especialmente a comparação entre Jr 36
e Jn 3 vem ao caso, uma vez que a leitura é tirada de Jn · 3.
Em ambos os textos encontra-se a mesma idéia fundamental de
uma ameaça condicional (Jr 36,2-3 e Jn 3,8-9). Constata-se o mesmo
desenvolvimento dos fatos: Deus ameaça (Jr 36,7b e jn 3,4; cf. 1,2);
proclama-se um jejum (Jr 36,9 e jn 3,5); a notícia disto chega até ao
rei e seus servos (Jr 36,12-20 e Jn 3,6). Mas enquanto o efeito da
mesma consiste em endurecimento em jerusalém (Jr 36,24) que é cas-
tigada (Jr 38,29-31), em Nínive ela provoca manifestações externas (Jn
3,6-Sa) e internas (Jn 3,8b) de penitência e de conversão e por isso
é salva da execução da ameaça (Jn 3,10; cf. 4,11).
Estas e outras comparações que se poderiam fazer mostram que
o livrinho não é uma estória popular, mas obra de um homem letrado
que, trabalhando no seu gabinete, se valeu de seu Conhecimento das
Escrituras para expor uma tese determinada.
O que motivou o autor a apresentar esta tese do modo que o fez,
- isto é, em forma de parábola e aludindo continuamente a textos
sagrados já existentes? «Em primeiro lugar o livrinho é um protesto
contra o particularismo judaico, cujo expoente é Jonas. Não somente
porque ele tenta subtrair-se de sua missão junto aos pagãos, mas an-
tes de tudo por causa de sua atitude egoísta em e. 4. Na hora em

244 245
que ele mesmo gozou da misericórdia de Deus, ele esgotou..se em ações cOs que têm mulher, sejam como se não tivessem> - não e re-
de graças (cf. 2,2-10). Mas quando os ninivitas são contemplados por nunciar ou ficar indiferente às relações matrimoniais normais; trata-se
ela, ele se queixa e resmunga (cf. 4,1-2). ti claro que atrás de Jonas de um principio geral : não ser escravos delas, a ponto de não já po-
estão os judeus nacionalistas que impacientemente esperam o c::Dia do der viver sem elas. Deve haver um espaço para a liberdade, - o que
Senhor>, em que finalmente tomar-se-á vingança dos povos pagãos. O Paulo mais vezes sugere, por exemplo, quando aconselha a abstenção
exílio babilônico os tinha ainda endurecido nesta antipatia. E as hu- matrimonial temporária e de comum acordo para fins de oração. A si-
milhações que se lhe seguiram pioraram-na ainda mais. Onde ficou a tuação de casado ou não casado é, sob vários aspectos, diferente, to-
execução de todas aquelas profecias que os profetas proferiram contra davia o que importa para Paulo é o essencial: a opção especificamente
os pagãos? Contra esta onda antipagã no século V levantou-se uma cristã, a ser feita por todos, manifestando a grande novidade da exis-
contracorrente universalista muito forte. Os livros de Rute, ]ó e Jonas tência cristã, não obstante o estado de vida de cada um. A vida cristã
são expressões da mesma. não deve impedir a matrimonial e vice-versa. A seguir faz analogia
Além disso o livrinho é uma exortai;ão à conversão. O contraste com outras vivências: «Os que choram, como se llâO chorasseID>. Pode
proposital entre Jn 3 (penitência do rei de Nlnive e dos seus prlncipes) ser a frustração como casado ou qualquer tipo de angústia no viver.
e Jr 36 (impenitência do rei joaquim e dos seus ministros) indica Ele não proíbe as lágrimas, pois também chorou (Rm 12,15; Fl 3,18).
que o autor em certo sentido quis envergonhar seus patrícios, pondo- «Os que se alegram, como se não se alegrassem»: não se inveja a
lhes diante dos olhos o exemplo dos ninivitas (cf. Mt ll,2ls; J2,41s). euforia dos alegres e felizes. Ambas, angústia e alegria, são humanas.
Do mesmo modo os judeus de seu tempo, que são mais culpados do O cristianismo está longe da cataraxia» (= indiferença, insensibilidade)
que muitos pagãos, deviam antes ter receio de sua própria sorte do que dos estóicos. Paulo mostra-se aqui bem afim às bem-aventuranças. Hã
sonhar castigos que afligem os pagãos> (Deden, comentário, p. 182s). uma tensão entre presente e futuro, entre situações concretas e a sal-
vação prometida. Todos, porém, estão convidados à fé e à esperan-
Blbllo!Vafla: D. D e b e n, Comentário; J d e rn, verbete "Jonas (Livro)", em: DBB, ça na Promessa.
p. 82~; A. P eu 111 e t, verbete "Jonas (le Livre de)", em DBS JV (1949)
1104-1131. «Os que compram, como se não possuíssem: os corhttios possuíam
tato comercial, inclusive os cristãos. O Apóstolo não lho prolbe, sob
Raul Ruljs, O.F.M. condição de evitar toda fraude, conservando certa liberdade (cristã), a
Petrópolis, RJ qual deverá afetar toda a sua vida. Não se trata de fazer do cristão
um alienado da realidade. «Os que usam deste mundo, como se dele
não usassem>. . . porque o tempo é curto. «Mundo» incluiria tudo que
Segunda Leitura: teor 7,29-31 é a vida sócio-político-cultural, os relacionamentos, os bens. Não es-
tranhe o cristão se nem tudo nesta vida vai bem: os insucessos po-
cO tempo se fez curto> dem ser admoestação da Providência divina no intuito de estimular o
desapego, lembrando que <uma só coisa é necessâri"" (Lc 10,42). Quem
O capitulo VII desta Epistola ocupa-se com o matrimônio e o celi- vive em função do Reino, da parusia, não deve depender de perdas e
bato. A presente leitura pretende dar uma justificativa escatológica a lucros nos valores deste mundo passageiro.
estes estados de vida, pecuJi.armente ao dos que renunciam voluntaria- Distanciar-se do mundo, naquele tempo, era necessãrio. Depois, acon-
mente ao matrimônio. O Apóstolo é claro e incisivo: exige de tQdos - teceu o contrário: o cristão não dá o justo valor às realidades ter-
casados ou não - o espírito de continência diante da realidade paru- renas, não se engajando com o próximo necessitado. O Concilio Va-
slaca. O v. 31b - «... a figura deste mundo passa> - continua e ilus- ticano ensina que não se podem omitir os cuidados materiais, buscando
tra o v. 29 - e.. . o tempo é breve». Não se quer aqui resolver o com diligência e fidelidade o progresso terreno retamente entendido como
problema do conhecimento ou crença que Paulo teve da proximidade promoção do Reino (OS 36s, 39, 44, 72).
do juízo, da parusia. Interessa muito mais a mensagem que Paulo quer, Contudo, hoje, surge o velho perigo: apreço demasiado às reali-
através de sua crença, transmitir à Igreja. Palavras dentro de certo pres- dades terrestres, descambando-se para a secularização, pragmatismo, na-
suposto ou situação podem valer sempre e em qualquer circunstância.· Com turalismo e materialismo. De tanto enaltecer o matrimônio, esquece-se
a virgindade consagrada; - de tanto proclamar a liberdade, perde-se
a vinda de Cristo, o mundo parece viver como antes, mas algo mudou. o sentido da obediência livremente assumida; - de tanto canonizar os
No tempo que medeia entre a 1• e a 2' vinda do Senhor o mundo está bens deste século, esvai-se o amor da pobreza evangélica. PauJo visa
em tensão, .como entre duas tenazes. E isto que se quer significar com a um certo equilibrio. Estes vv. se identificam com o espírito das bem-
o termo: «breve~. aventuranças, dos conselhos evangélicos: nem todos são chamados à
Paulo, nos vv. anteriores, dera mais realce à virgindade do que ao prática destes últimos de maneira radical, mas não pode haver ninguém
matrimônio, em virtude dos compromissos e ansiedades ligadas ao eg... que não partilhe, ao menos um pouco, do espírito daqueles. As pala-
tado conjugal, que impedem a entrega total e radical ao serviço do vras de Paulo são menos que um preceito, entretanto significam mui-
Senhor, razão última do celibato. Para não semear inquietudes, o Após- to mais.
tolo prossegue dizendo que, se a virgindade é melhor, contudo não é Bibliografia: Cf. Segundo Domingo i!o Ano B, 2• Leitura, acima p. J3.
um prec-eito, - que o matrimônio não é mau, mas sua estrutura nem
'sempre facilita a união com Deus. Dirige-se aos solteiros para que em Matheus F. Giuliani, S.A.C.
sua opção tenham presente a precariedade dos bens desta vida. Santa Maria, RS

246 247
Terc~lra Leitura: Me 1,14-20 exatamente umà caracter!stica do Reino de Deus. Talvez pareça egolsta:
por que não deixar participar as multidões do·i mundo todo? Isto tor-
«0 tempo está realizado, o Reino de Deus cheg- nar-se-á claro depois da leitura das parábolas de jesus (Me 4): o Reino
de Deus Segue o método da semente; cresce sem ninguém se dar con-
1.' Explicação dos vv. 14-15 ta. O antigo e novo povo de Israel tinham experiência de ser um «pe-
queno resto», testemunha entre as nações; ser pequeno não -era problema
Geralmente, Me 1,14-15 é considerado como o começo da atividade para eles; o que importava era serem autênticos e fiéis; o resto da
pública de jesus, especialmente, na Galiléia. Isto, porém, não deve fazer obra era lá co\n Deus. Isto nos ajuda para entender o que é o Reino
esquecer a ligação com· o contexto precedente, o batismo (onde jesus de Deus. Não ·.é um csistem~, nem o sistema• em que o judaísmo se
recebe o Esp!rito profético) e a sua retirada no desertá (pelo impulso deveria tornar ·o centro do mundo (messianisrito nacionalista do AT),
do. mesmo Esp!rito). jesus realiza, na sua atuação, a plenitude do pro- nem o sistema da Cristandade; o Reino de Deus não tem nada a ver
fetismo. Plenifica o profetismo-de-milagres, estilo Elias-Ells2u (o reve- com tais «grandezas». O Reino de Deus é a força humilde mas ifresis-
zamento do Batista por· jesus lembra o revezamento de' Elias por Eli- tivel da vontade de Deus. Observe-se que jesus não costuma chamar
seu, 2Rs 2,9.15; a respeito de joão Batista como novo Elias, cf. co- Deus de •Rei» (o que combinaria com «reino»), mas de Pai! O Reino
mentário ao evangelho ·do 3' Domingo do Advento); pleni!ica também de Deus é o amor paterno de Deus tomando conta dos homens. Ora,
o profetismo-de-pregação (pénitencial e escatológica), estilo dos pós-exl- isto não é possível por um evento mundial, que se impõe à humani-
Jieos. O v. 14a assin-ala · este revezamento, que convida a uma comp~a­ dade toda, um'à revolução ou coisa semelhante, mas somente pela se-
ção entre o último profeta do AT (João) e jesus de Nazaré, profeta mente da -conversão. Note-se também que jesus, embora anuncie a re-
do Reino de Deus. Mais adequadamente que Mt, que coloca já na boca velação do Reino para esta geração (Me 13,30), não tem pressa nem
de joão a pregação do Reino de Deus (MI 3,2, dil. de Me), Me não curiosidade para saber a data (13,32). Pois a certeza de que Deus serã
menciona a pregação do Reino de Deus por parte de joão. Para Me tudo em iodos,·- que não haverã mais outra coisa, basta. Podemos apren-
(e Lc), o núcleo da mensagem do Batista é a conversão; seu batismo der alguma coisa diSto ai: não devemos estar àpressados em fazer mui-
significa exatamente isto (Me 1,4-5; e!. Lc 3,3; Mt 3,6). A Logienquelle, tas coisas para fazer chegar o Reino; isto é lã com Deus. O importante
fonte comum de Mt e Lc, nos conserva, inclusive, um: impressionante é que, o pouco que fazemos, seja da qualidade do Reino; então ele
testemunho do anúncio do julzo exterminador por João" (Mt 3,7-10 = jã acontece, de fato! Não adianta estabelecer uma Cristandade no mun-
Lc 3,7-10). Em comparação com isto, aparece muito bem ·a novidade do pela pressa, as armas e a Inquisição; Deus não tem nada a ver com
da pregação de jesus, em Me 1,15; noviàade que o torna único e isto; nem devemos pagar violência com violência em nome do Reino
irreversivel entre os profetas: a proclamação da presença (êggiken, che- de Deus: isto só é atrasá-lo. Mas ele começa de verdade aqui· e agora
gou) do Reino de Deus e da salvação. É a Boa-Nova, conservada em onde o homem se converte para viver conforme as Bem...aventuranças;
termos mais extensos no Sermão da Montanha de MI 5-7 e Lc 6,20ss. ainda que for num canto perdido do mundo ...
Porém, no evangelho de Me não aparece desde o começo toda a sig-
nificação salvifica da atividade de jesus; aparece gradativamente (por
exemplo, 7,37 etc.). O evangelho de Me é prenhe de um mistério que 2. Explicação de vv. 16-20
só aos poucos se revela. A expressão de 1115 é típica; neste sentido.
Parece .um anúncio do Dia de Javé, e por isto o Anunciador pede con-
versão (cf. o Batista).· Mas na segunda parte, diferentemente do Ba- No v. 16 ·começa uma nova situação no tempo e no espaço. Po-
tista, Jesus pede fé, e fé numa Boa-Nova/ E este termo,. Me o emprega rém, quanto ao conteúdo, existe uma ligação Intima entre vv. 14-15 e
com convicção, pois ele -é o único dos evangelistas que iDtitula seu ~de­ vv. 16-20: a adesão radical dos pescadores do Lago de Oenesaré (Mar
poimento» 'sobre jesus com este termo (Me 1,1). Assim, os vv. 14-15 da Galiléia) é a ilustração da conversão por causa do Reino e do
realizam uma surpreendente proximidade entre a exigên_Cia da conver- Evangelho (só Me conserva este último termo na palavra do seguimen-
são e a alegria do Reino. Converter-se, no sentido de Me· 1,15, é aceitar to, Me 8,35 e 10,29 e par). 1) Não é uma ,conversão de penitência
com confiança (= fé) a alegria do Reino que chegou.'. em cinzas e jejum, mas a alegria de seguir jesus. 2) Não é a adesão
O leitor moderno pode estranhar que jesus foi proclamar uma no- a uma entidade abstrata, o «Reino de Deus S.A.>; mas adesão a
ticia tão importante não apenas num país de 20.000 Km' (menos que uma pessoa.
o Sergipe), mas nem mesmo na capital deste país, porém na região É mister observar que esta vocação ainda não é propriamente a
marginal que era a Galiléia. As vezes não é bom perguntar por que vocação de capóstolos», pregadores; esta vem $omente em Me 3,13ss e
a história acontece como acontece. Afinal, é lã que o pequeno rebanho 6,6ss. Trata-se: aqui da adesão do disclpulo que segue seu mestre aon-
se reuniu depois ·da morte de jesus (cf. Me 14,27; 16,7). Mas é útil de for; na base disto, serão escolhidos1 mais tarde, para «ficarem com
ter diante dos olhos o que significa o conteúdo da mensagem de jesus; ele> (3,14). ,
o próprio conteúdo torna toda a propaganda supérflua, pois trata-se do A narrativa desta vocação é duma simplicidade impressionante; só
Reino de Deus. Este não depende de notoriedade humana.- Pelo contrário, narra o essenCia1, para emoldurar um dito de jesus: cVjnde após mim,
Deus tem uma certa preferência para intermediários insignificantes, por- e far-vos-ei pescadores de homens>. Dito caracterizado pelo gosto do
que estes não colocam seu orgulho no lugar da obra de Deus (cf. paradoxo que marca todos os ditos de jesus; pois em Jr 16,16 os «pes-
Mt 5,3ss par; 11,Mss par). Acontecer num canto perdido do mundo é cadores de hoinenS> são os inimigos que devem castigar o povo infiel.
248 249
Não se pode excluir que Jesus tenha aludido à atividade escatológica Tema Principal
destes cpescadores de horne11S>; somente, seu modo de agir serâ dife-
rente. Quanto à narração, começa mencionando que Simão e André são
pescadores (por enquanto, de peixes). Segue o dito paradoxal de jesus. UMA VOZ PROFÉTICA LEVANTA-SE. TRAZ NO SEU BOJO
Depois só uma frase para dizer: eles deixaram tudo e o seguiram (v. 18). O REINO DE DEUS. OS TEMPOS E OS HOMENS
Quanto a Tiago e João, Me nem menciona a palavra de Jesus, mas em E A SOCIEDADE MUDAM-SE
compensação acrescenta um detalhe pitoresco: deixam seu pai no barco
com os jornaleiros e eles, os filhos, se mandam ... (v. 20). Reconhece-se
aqui não somente o sabor de tradição oral da primeira comunidade Sugestões para a Homilia
cristã, mas ainda a palavra de Jesus dizendo que segui-lo significa dei-
xar pai e mãe (Me 10,29 par; cl. Mt 10,37 par). Introdução
A narração tem valor querigmático: mostra o impacto da novidade
de Jesus. Não que os evangelhos exigem que todos sigam a Jesus como A presença do Reino
os dois pares de irmãos, mas de toda maneira, os que mais tarde se-
rão «:enviados,. (= apóstolos) acolheram a mensagem do Reino de
modo exemplar. É um ideal que alguns conseguirão alcançar e que é A primeira palavra que o Evangelho de Marcos atribui a
apresentado desde o inicio do escrito de Me para ilustrar a força mis- jesus é uma palavra profética. Já o momento histórico no qual
teriosa que saia de Jesus: a força do Reino. Observemos também a se faz ouvir gera a expectativa de que ela o seja: João vem
maneira nova em que Jesus chama os discípulos: não são estes que de ser preso e o silêncio de ser imposto ao derradeiro profeta
procuram seu Mestre, como era costume no padrão rabínico. É o Mestre
que procura seus discípulos. E estes nunca serão seus substitutos como dos tempos da preparação. É mister que uma nova voz se faça
entre os rabinos era costume. Só um será o Mestre (cl. Mt 23,8). ouvir e esta não tarda; ao contrário, soa ainda mais audacio-
sa e proclama a iminência do Reino: proclama-o tão próximo
que o faz crer presente. Com eleito, a sua proximidade é uma
3. Lugar na Jlturgla proximidade perfeita e uma proximidade perfeita é já uma ver-
dadeira presença.
A palavra-chave que une este evangelho com a 1' leitura é: con-
versãD. Contudo, existe uma grande diferença para com a conversão
dos ninivitas: 1) A conversão dos ninivitas é negativa; só serve para Corpo
escapar ao juízo; a que jesus pede é a conversão 4positivaJ. à alegria
do Reino. 2) A conversão dos ninivitas expressa-se em jejum e cinza; 1. As exigências do Reino
a do evangelho em seguimento generoso. 3) O Deus da ameaça (em
Jonas) deixa-se implorar para mudar seu plano; o Deus da salvação Ora, diante do Reino iminente e face à palavra que o
o realiza gratuitamente, quando o tempo se completa; depois vem a proclama, duas atitudes são exigidas: a conversão e a Fé. A
contribuição do homem: acolhê-lo.
Observe-se que no presente evangelho a vocação de Pedro e An-
primeira consiste em profunda trans!ormai;ão interior e pode-se
dré é narrada de modo diferente do domingo anterior. Não adianta dizer que nela o homem encontra a própria identidade para
entrar numa tentativa de discussão ou de harmonização (por exem- além de todos os marcos limites e valores até então alcança-
plo, Jo 1,35ss seria a primeira vocação, Me l,16ss a segunda, mais dos. Nesse sentido, é ela o marco inaugural da Fé que constitui
especifica). Ambas as tradições, de Me e de ]o, esquematizam a his- um confiar-se o próprio ser, a própria pessoa à verdade do
tória; sua reconstrução científica é impossível. O modo certo para ler
estes textos é procurar a mensagem de cada um no contexto de seu Deus cuja palavra se reconhece nos lábios do profeta. Estas
evangelho, prescindindo do que dizem os outros. duas atitudes, tão profundas que se tomarão dois movimentos,
hão de conferir à profecia um alcance universal e uma supera-
Blbllografia: Oerat: Comentãrios de Se h m J d, J. (Com. de Ratisbon~ 1 2);
Scbwetzer, E. (N.T. Deusch, 1); Trtltfng, W. (N.T. - Com. e mensa- ção que o restante do Evangelho há de proclamar.
gem 2/1); Taylor V.; Wansborougb, H. (New Cath. Commentary); Maly,
E. 1. {S. Jerónimo); N f n e b a m, D. E. (Pellcan "Oospet Comm.); tb. H a e n eh e n,
E. Der Vleg jesu, 2• ed., Berlln, DeOruyter 1968. Especifica: T t 111 f n g W. O
An6nclo de Cristo nos Evangelhos Sinóticos, Paulinasi_ S. Paulo 1978; 37ss;
B o r n k a m m, O. jesus de Nazaré, Vozes Petrópolis 1Y1D, 60ss; K o n 1 n g s J. 2. A llOCafão ao Reino
Jesus nos Evangelhos Slnóticos, Vozes, Petrãpolis 1977, 22ss; M f n .e t te d e T 11-
1 e s s e, o. Le secret messianlque dans l'évangile de Alarc, Cerf, Paris 1968, 40s.406.
Mas a palavra profética é sempre uma palavra que abre um
Johan Konings caminho: e é no caminho aberto pelo anúncio inaugural de je-
Porto Alegre, RS sus - por seu evangelho 1 - que Marcos situa o chamado, a
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vocação dos primeiros discípulos. Esta vocação é simbolizada Consecutivamente, crer é abrir-se à iminência do Reino, tor-
pela figura do pescador, a evocar as grandes águas e, nelas, a nando-o presente na medida em que nosso engajamento com
possibilidade da vida e o risco da morte, mas também as na- o Cristo atualiza em nós o seu anúncio. É claro, não nos é fá-
ções, que, mais e mais, hão de ser divisadas como carentes da cil, como não o foi aos discípulos, dar à nossa Fé uma forma
palavra e perder o estigma de inimigo mortal. adequada à exigência do Cristo: todavia, é sempre possível
Mas, nas palavras de Jesus, tornar-se pescador é ainda um reassumir a imagem do pescador que trabalha o mais profundo
efeito remoto: imediatamente, trata-se de converter-se e crer e das águas, pois estas são a massa humana que a opressão
estas duas palavras assinalam dois momentos de uma supera- alienou e em meio às quais também estamos imersos.
ção. Primeiro, a superação de um mundo estruturado no intimo
da consciência do homem: a presença do que lhe é exterior e o
domina em sua intimidade. Este momento é a conversão; não Conclusão
mais a dos ninivitas face a uma catástrofe iminente, mas, face
à iminência do Reino, a conversão que visa a universalidade da A mediação da conversão e da Fé tem o poder de tor-
libertação. O segundo momento, a Fé, é em verdade toda uma nar presente o Reino sempre iminente.
história e, dela, diz-se aqui apenas a palavra inaugural, que se
abre a um futuro que ela não delimita mas cria. Pe. Benjamin de Souza, O.S.B.
São Paulo, SP

3. A Fé cria o presente do Reino

Deste futuro, o Evangelho constitui a Iniciação e os discí-


pulos, cuja conversão se pressupõe, os primeiros iniciados, os
primeiros a crer, isto é, a se lançar adiante, confiantes. De
fato, são eles as nossas primícias na Fé e, por isso, é sempre
possível buscar inspiração em sua experiência: a de uma Fé
que cresce na medida em que assume as suas contradições e
ousa transgredir as limitações ditadas pela cpnvenção ou pela
segurança.
No Evangelho, o gesto de deixar tudo e seguir denota a
conversão e colhe a Fé. Mas a Fé arrebata em seu interior a
conversão e, com ela, revolve o homem, criando nele e por ele
o presente do Reino.

4. Engajamento pelo Reino

Em nossos dias, a conversão se articula a partir de uma


situação que, conservando grande parte da injustiça que sem-
pre caracterizou a ordem instituída da sociedade, tem de pecu-
liar haver elevado esta ordem a uma racionalid~de quase per-
feita e, por isso, arrogar-se o direito de impor a sua injustiça
em nome da razão e da ciência, fazendo do cidadão oprimido
agente de opressão. Converter-se é, neste quadro, desarticular
o homem que uma sociedade, cuja lei é a dominação, estruturou
dentro de nós.
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